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Na B3, tecnologia e pessoas andam de mãos dadas em direção à IA

Área de recursos humanos atua para disseminar conhecimento, mobilizar liderança, capacitar funcionários e conter receios, como o medo da substituição

Giovanna Wolf
10 de junho de 2024
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Apesar das origens da inteligência artificial (IA) estarem no século XX, foi somente no final de 2022, com o lançamento do ChatGPT pela OpenAI, que a tecnologia passou a dominar o debate público. Como era de se esperar, essa mesma bolha estourou dentro das empresas. O departamento de tecnologia, antes detentor das soluções de IA, viu o interesse e o uso daferramenta se espalhar por diferentes áreas, do jurídico ao comercial. Ao mesmo tempo, as companhias passaram a ser pressionadas por avanços tecnológicos para não ficarem para trás, enquanto os profissionais questionavam se seriam substituídos por robôs. 

Diante dessas mudanças, a B3 viu na área de pessoas a chave para destravar a inovação. Com cerca de 3 mil funcionários –, sendo metade deles na área de tecnologia – a bolsa de valores brasileira entendeu que precisaria de uma estratégia multidisciplinar para implementar IA, liderada pelos times de tech e de recursos humanos. 

“Como vamos preparar as pessoas dentro da empresa para usarem IA? Como lidar com áreas que terão alto grau de automação? Quais serão os novos cargos criados e como trabalharemos a faixa salarial deles? O time de pessoas é essencial para todas essas questões”, afirma Marcos Albino, superintendente de arquitetura de TI, governança e inovação da B3.  

Hoje, um time de 33 pessoas, que reúne diferentes áreas, é responsável por acompanhar projetos conduzidos por inteligência artificial na B3, além de estabelecer padrões e boas práticas de uso. Uma das iniciativas é o B3GPT, uma plataforma interna que disponibiliza recursos de IA generativa sem colocar em risco a segurança de dados da empresa. 

“Não se trata somente da velocidade de implementação, mas como se coloca em prática. Temos que avaliar se a ferramenta é ética, se ela está sendo produtiva e quais são as respostas dos times”, destaca Manuela Alves, superintendente da área de pessoas da B3. Na entrevista a seguir, Manuela e Marcos comentam como suas respectivas áreas atuam em conjunto na implementação da IA. 

Como recursos humanos e inteligência artificial se relacionam na B3?

Manuela: Inteligência artificial não se restringe à tecnologia. É um tema que envolve risco, ética, gestão da mudança, treinamento, entre outros aspectos – muitas áreas precisarão se articular para garantir o uso de forma ampla e integrada à companhia, considerando inclusive valores e cultura. Dentro disso, vejo grande responsabilidade do RH, principalmente na parte de desenvolvimento das pessoas, de atuar para os colaboradores aderirem, se capacitarem e entenderem como usar as ferramentas da melhor forma possível.

Marcos: Costumamos dizer que o RH é um co-líder na iniciativa de implementação de inteligência artificial na B3. A IA generativa é uma revolução, como foram as máquinas industriais e a internet – o que naturalmente traz receio para as pessoas, que temem serem substituídas. Como vamos preparar as pessoas dentro da empresa para usarem IA? Como lidar com áreas que terão alto grau de automação? Quais serão os novos cargos criados e como trabalharemos a faixa salarial deles? O time de pessoas é essencial para todas essas questões. 

De que forma isso se desenrola na prática?

Manuela: No ano passado, estruturamos um projeto interno para se aprofundar em inteligência artificial. É uma equipe multidisciplinar –que inclui a área de recursos humanos – responsável por desenhar e acompanhar uma estratégia única de atuação em IA na companhia, de forma transversal. Na parte de pessoas, temos uma frente muito importante de democratização da IA, ou seja, de capacitar os colaboradores para que eles entendam como e por que usar a tecnologia – afinal, há muitos mitos e verdades circulando por aí. Há também um trabalho de aproximação, de tirar a IA do técnico e trazer para o dia a dia. Percebemos que muitas pessoas nem entravam na discussão porque parecia algo distante. 

Marcos: Chamamos esse time multidisciplinar de “centro de excelência” – é ele que define padrões e boas práticas em IA. Em projetos estratégicos conduzidos por IA, o time de pessoas entra junto e atua com programas de capacitação e preparo para liderança e para os times. Caso a caso, aprendemos coisas novas, vemos o que precisamos mudar e retroalimentamos nosso modelo de gestão. 

Como surgiu a ideia de unir várias áreas? Por que o departamento de tecnologia não poderia fazer esse trabalho sozinho?

Marcos: Antes, a IA era tratada como um tema unicamente de tecnologia, e observamos que as coisas não caminhavam. Tínhamos 99 iniciativas de IA na empresa e somente duas foram para a produção de fato – sendo que uma delas foi aposentada porque o modelo perdeu a acurácia e o time envolvido não tinha conhecimento suficiente para treinar novamente o sistema. Definitivamente, era um caminho fadado ao fracasso. Aí tivemos o insight de olhar e pensar que, na verdade, o fator primordial do sucesso da implementação são as pessoas. A nossa área de recursos humanos é preparada para temas de tecnologia – eles conseguem discutir com a gente e atuar de forma estratégica. Temos treinamentos dentro da empresa, e no centro de excelência há muito compartilhamento de conhecimento.

Vocês podem dar exemplos de iniciativas desse time multidisciplinar?

Marcos: Elaboramos recentemente um projeto nas centrais de atendimento em que analisamos a transcrição das conversas para avaliar o serviço e sugerir melhorias. Por exemplo, se na ligação o analista sugere que o cliente acesse o site da B3, sem citar o endereço, a IA pode pontuar que o atendente precisa ser mais específico. Nesse caso, o time de pessoas atuou em conjunto com a gente já que é uma grande preocupação do time de atendimento a possibilidade de a IA “roubar” seus empregos. Em engenharia de software, também temos usado IA para escrever códigos de software — o RH ajuda aqui também, porque o próprio engenheiro fica inseguro com a possibilidade de substituição. 

Manuela: Não se trata somente da velocidade de implementação, mas como se coloca em prática. Temos que avaliar se a ferramenta é ética, se ela está sendo produtiva e quais são as respostas dos times. Isso é feito ouvindo as pessoas desde o começo, construindo a solução em conjunto, mobilizando a liderança, comunicando de forma transparente e dando ferramentas para que as pessoas possam conhecer a estratégia macro da companhia. 

O que vocês dizem para esses colaboradores que têm medo de serem substituídos pela tecnologia?

Marcos: Na empresa como um todo, seguimos o mantra de que a IA é um copiloto – ela serve para  aumentar a sua inteligência,  a fim de que você possa produzir mais e ter mais tempo para pensar em estratégia. Delegando trabalhos operacionais para a tecnologia, cada um poderá focar no seu desenvolvimento, com mais tempo para crescer. 

Como é o uso do ChatGPT dentro da B3?

Marcos: Temos uma plataforma interna chamada B3GPT. Com o boom do ChatGPT, todo mundo queria usar a ferramenta, mas havia um risco de expor informações da empresa em plataformas públicas. Como atuamos em um mercado altamente regulado, rapidamente tiramos o acesso ao ChatGPT e lançamos, no segundo semestre do ano passado, uma plataforma própria – o sistema é da Open AI (empresa dona do ChatGPT comum), há acesso à base de dados global, mas as informações inseridas pelos colaboradores da B3 ficam armazenadas em uma base local. Ao todo, são cerca de 40 mil acessos por mês, de diferentes departamentos. Além do recurso de perguntas e respostas, há funções como leitura de PDFs – a área jurídica, por exemplo, usa essa opção para analisar contratos jurídicos, enquanto o time de regulamento de fundos aproveita a tecnologia para analisar se determinado fundo está obedecendo os regulamentos exigidos. 

O RH também usa IA?

Manuela: Há cerca de dois anos começamos a usar machine learning (aprendizado de máquina, na tradução do inglês), principalmente para pesquisas internas e diagnósticos – enxergamos uma possibilidade de investir nosso tempo na construção da estratégia e não na leitura de milhares de páginas de comentários. Começamos também a testar IA generativa no ano passado. Temos usado a tecnologia para atração e seleção, em algumas posições – nas nossas vagas de estágio, por exemplo, no início do processo. É uma forma de os recrutadores terem mais tempo para abordar mercado, conhecer candidatos e se aprofundarem nas estratégias e desafios dos gestores que têm posições abertas. Outra iniciativa legal surgiu em um hackathon realizado internamente: uma das ideias vencedoras foi uma IA desenvolvida para atuar no onboarding de funcionários, tirando dúvidas básicas das pessoas. 

Está em alta uma grande discussão sobre o viés e a falta de transparência da inteligência artificial em processos seletivos. Como vocês avaliam a ética da IA na atração e seleção?

Manuela: Estamos fazendo testes, e usando apenas em algumas posições. Não utilizamos nenhuma plataforma de terceiros. A IA é filtrada pelo time de atração e seleção – nossa ferramenta leva o candidato para o primeiro funil, mas quem continua o processo e as entrevistas são pessoas do meu time. Esse funcionamento é importante para seguirmos nossa premissa de diversidade e inclusão

Quais conselhos vocês dariam para empresas que estão adotando IA?

Marcos: A IA não é mais algo imaterial – ela vai viver junto com as pessoas como se fosse o novo Excel. Se você não fizer uma transformação que seja colaborativa, que chame todas as áreas para construir em conjunto, não vai dar certo. Diferentemente de antigamente, quando os outros departamentos delegavam para a área de tecnologia, agora a IA generativa está nas mãos da empresa toda. As companhias devem ter uma estratégia construída de forma colaborativa, em que todos entendam para onde ir, como usar as ferramentas e quais são os riscos envolvidos. 

Manuela: É importante saber que nem tudo vai funcionar para todo mundo, em todos os momentos e em todas as culturas. É papel da liderança estar atenta a esse ponto, ter pensamento estratégico, definir objetivos e se atualizar sempre. Se isso não for feito, há o risco de querer incorporar todas as tecnologias que aparecem, que muitas vezes não fazem sentido. Conversar com as pessoas é um ótimo caminho para começar a desenhar uma estratégia, seja ela de IA ou qualquer outra. 

Giovanna Wolf é jornalista formada pela USP. Foi repórter de tecnologia e inovação do Estadão, e passou pelas redações das revistas Época e Casa e Jardim. Atuou em relações públicas como sócia-diretora da agência Ovo Comunicação.