Com papel central na concepção dos valores do C6 e na contratação dos primeiros colaboradores, líder responsável por time de 3,8 mil pessoas fala sobre trajetória, filosofia organizacional e uso de IA no RH

Em meio a uma onda de reduções de investimentos em diversidade por organizações multinacionais, novos termos têm surgido no vocabulário da área. Opositores à sigla DEI (diversidade, equidade e inclusão) têm tentado criar uma nova abreviatura: MEI (mérito, excelência e inteligência), como se equidade e performance fossem pólos distintos. Outros, por sua vez, buscam reduzir a polarização ao abraçar ideias como “meritocracia inclusiva” ou “meritocracia diversificada” – caso da consultoria americana McKinsey, por exemplo.
“A visão de meritocracia inclusiva é uma saída para tirar o tema político e trazer para a conversa pessoas que torceram um pouco o nariz para a pauta de diversidade”, diz Laura Salles, fundadora da plataforma PlurieBR. Professora da Saint Paul Escola de Negócios, a especialista tem sido uma das principais divulgadoras do conceito aqui no Brasil, escrevendo artigos e dando palestras sobre o assunto. Para ela, o termo busca reforçar a ideia de que diversidade não significa “nivelar por baixo” – pelo contrário.
Se a sociedade é desigual, como se avalia o mérito para pessoas diferentes e diversas?
Na entrevista a seguir, Laura explica como o termo surgiu e porque ele pode ser um aliado dos RHs em tempos de polarização – um fenômeno social, mas que não está alheio às organizações. Ela também ressalta a importância de, junto ao discurso, trazer dados que comprovem os resultados de programas e ações de diversidade. “Não dá para só apelar para o bom senso e para a humanização. É [preciso mostrar] o resultado que um público mais plural vai gerar para a empresa”, diz.
Antes de tudo, é preciso dizer que não é uma ideia minha. Tudo começa com o movimento que vem dos Estados Unidos, com muitas organizações usando a sigla MEI (meritocracia, excelência e inteligência) para se contrapor à DEI (diversidade, equidade e inclusão). Vi muitas organizações se dividindo, numa polarização maluca de quem acha que diversidade é tema de esquerda e meritocracia é tema de direita. Acho que é importante resgatar o conceito de meritocracia – e aqui me apoio no livro A Tirania do Mérito, do Michael Sandel. É um livro que explica bem como funciona a cabeça americana quando se fala em mérito – e que muitas organizações foram corrompidas por uma ideia de meritocracia que se confunde com politicagem. Em meio a isso, muitas empresas começaram a renomear seus programas, embutindo palavras de maneira sutil para mostrar que diversidade e inclusão continuariam sendo pilares fundamentais para a cultura, sem serem contrárias ao mérito. A McKinsey, por exemplo, fala em meritocracia diversificada. É uma ideia em que elas continuam a olhar para o mérito, mas também entendem que nem todos partem do ponto de partida. Por que valorizar alguém que chega a 9,5 de performance, mas saiu do 8 – em detrimento de alguém que saiu de 2 e chega a 9. A lógica de reconhecimento de mérito precisa ser repensada? É uma lógica em que não se olha só para o resultado final, mas para os contribuidores, para as questões de interseccionalidade de cada pessoa. É um movimento intencional de revisão de políticas, mas que também diz que o mérito é para todos. Afinal, se a sociedade é desigual, como se avalia o mérito para pessoas diferentes e diversas? Afinal de contas, esses conceitos não são contrários.
Além de falar de uma questão de reparação histórica quando se fala de ações afirmativas, dizer que há busca por perfis diversos não nega o reconhecimento de que o mérito é importante.
Existe uma visão comum de que olhar pelo viés do mérito deveria desconsiderar qualquer outra questão, como se ele fosse absoluto. Além disso, aqui no Brasil, muita gente passou a ver questões afirmativas como um favorecimento velado. É daqui que vem o discurso que cotas ou vagas afirmativas nivelam por baixo o processo seletivo – o que não é verdade, muito pelo contrário. Além de falar de uma questão de reparação histórica quando se fala de ações afirmativas, dizer que há busca por perfis diversos não nega o reconhecimento de que o mérito é importante. Isso nunca foi desconsiderado, mas por uma visão às vezes simplista do tema, ou pela politização, é sempre difícil disputar espaços. Muita gente acha que a diversidade substitui o mérito. E isso causou essa falsa dicotomia, essa falácia. Por outro lado, acho que a visão de meritocracia inclusiva é uma saída para tirar o tema político e trazer para a conversa pessoas que torceram um pouco o nariz para a pauta de diversidade.
Não tem como comparar as realidades de países diferentes. O Brasil é um país com uma diversidade única. Historicamente, os EUA têm cerca de 13% de população negra – de maneira que para eles, pode parecer ser suficiente ter 13% de negros na liderança. Vi uma empresa como o McDonald’s justificar a redução de investimentos lá justamente por ter alcançado essa equiparação. Mas aqui no Brasil, as pessoas negras são mais de 50% da população – o que torna o desafio muito maior. Não é sobre apontar dedos, mas sobre entender que não dá para replicar essa realidade. Além disso, o histórico de ações de diversidade no Brasil é muito recente. Em muitas empresas, essa conversa começou a acontecer em 2019, ou até mesmo durante a pandemia, depois do que ocorreu com o George Floyd. Outro ponto crítico quando falamos de Brasil é que o setor de diversidade foi juniorizado: em empresas de 1,5 mil pessoas, 2 mil, às vezes se contratava uma pessoa com recorte diverso e ela era colocada como token, como símbolo de um departamento. É um problema: em muitos casos, a pessoa não recebeu o apoio necessário – e aí é muito fácil dizer, depois de um ano e meio, que as ações de diversidade não funcionaram. Não basta montar uma área de diversidade: tem que entender como é a estrutura, qual estratégia foi usada, como a área foi montada, qual é a formação das pessoas. E isso passa por uma prática ainda pouco comum no Brasil: olhar para a diversidade a partir dos dados. Não basta só fazer letramento, as empresas precisam medir o impacto da diversidade – seja em rotatividade, em comparação com a recorrência, seja na prevenção de riscos de casos de assédio ou burnout, seja em melhoria de marca empregadora. É preciso medir o impacto financeiro, porque isso é o que vai fazer sentido na cabeça de uma liderança como um CEO.
Esse é o caminho. É assim que as empresas estão avançando e conseguindo justificar seus orçamentos para a liderança. Quando se fala de dados, não há argumentos. Quando a conversa é sobre reparação e cultura, entra-se na ideologia – se não fosse, essa reparação já teria acontecido há séculos nas empresas, mas não aconteceu. Não dá para só apelar para o bom senso e para a humanização. É o resultado que um público mais plural vai gerar para a empresa. Enquanto continuarmos tendo ações da porta para fora para os indicadores de negócio, a área de diversidade vai continuar caindo no lugar de poder ser dispensável por qualquer abalo. Olhar para meritocracia inclusiva – ou meritocracia diversificada – é dizer justamente isso: os dados mostram que a meritocracia existe, mas é preciso repensar esse conceito para atrelar à diversidade. Hoje, um dos indicadores mais difíceis de medir é justamente atrelar diversidade e performance. Ainda não existe uma metodologia que mensure o quanto uma empresa que trabalha a diversidade gera uma melhor performance de cada indivíduo, porque tem milhares de vertentes. Mas já conseguimos saber que diversidade diminui absenteísmo, aumenta segurança psicológica, reduz turnover, reduz riscos de denúncias e aumenta a reputação da marca. São questões mensuráveis e que precisam ser trabalhadas. Meritocracia inclusiva pode ser um meio termo, para fugir do estigma. O importante é continuar olhando para o colaborador e entender que um time plural, numa cultura de inclusão e pertencimento, gera resultado. E isso precisa ser considerado em planos de sucessão, de promoção, de equiparação salarial
Temos conseguido abrir frentes com o público que não conversava sobre diversidade. Pode parecer que é colocar panos quentes nas discussões, mas abrir conversas é positivo. Até porque falar para os convertidos é mais fácil, é mais simples: quem já acredita já sabe que tem resultado. Mas só com quem acredita, infelizmente não conseguimos mudar todo o cenário. Não são muitos os CEOs que falam abertamente sobre diversidade no Brasil, que topam falar sobre cultura inclusiva. Esperamos que esse número aumente devido ao exemplo que já vemos hoje de algumas empresas. Mas sim, para quem resiste à nomenclatura, meritocracia inclusiva pode ser uma luz no fim do túnel.
O primeiro passo é que o RH precisa ter um bom mapeamento de dados. Parece básico, mas em muitas empresas a área de People Analytics ainda é frágil. É preciso preencher a lacuna dos dados e entender como eles se relacionam. Entender a correlação das questões é importante porque nem tudo é tão visível. Vou trazer um exemplo prático: já vi empresa de 40 mil funcionários questionar que investe em diversidade, mas que o maior índice de turnover está entre as mulheres. Isso não é um problema, mas é um sintoma. Isso pode significar que as mulheres demoram mais para chegar na liderança, que elas tem um maior absenteísmo, que a volta do período de maternidade não está funcionando. E os dados podem ajudar a entender a qualidade do ambiente, a inclusão e o pertencimento de cada grupo. É preciso ir além do dado demográfico quantitativo – ótimo para o relatório de sustentabilidade, mas que não move o ponteiro. É preciso entender como estão os processos, o tempo de permanência, a progressão de carreira. E para começar, o RH deve optar pelos indicadores que podem ser relacionados aos indicadores de negócio mais benquistos na organização. Você pode começar a analisar os dados para diminuir rotatividade, ou porque quer ser a melhor marca empregadora na área, ou porque quer reduzir a taxa de assédio.
Uma coisa importante é fazer uma análise individualizada. Outro é entender a interseccionalidade das empresas. Muitas companhias pecam ao separar o público interno em caixas individuais: um processo para pessoas negras, outro para mulheres, outro para o público LGBTQIA+. Mas o que acontece quando você tem uma mulher negra e bissexual? Quais são as camadas e atravessamentos que ela têm na organização? É preciso olhar para o percurso de todos os pilares: olhar para raça e para gênero, olhar para orientação sexual e para questão etária. Isso vai ajudar a entender que vieses inconscientes acontecem nos processos que barram o sucesso e o mérito desses grupos. Não existe um só caminho, mas existe uma análise aprofundada das pessoas para evitar processos que criam exclusão. Senão, um resultado bom pode esconder um resultado ruim. Às vezes, você pode ter uma taxa de fidelização ótima para mulheres – mas ela pode ser boa só para mulheres brancas. É um exemplo aleatório, mas que mostra especificamente o que acontece quando não se considera a interseccionalidade. Além disso, é chover no molhado, mas é preciso entender como a liderança aplica e transita os processos – como um processo de avaliação de performance. Não dá para achar que só pelo processo ser igual que os resultados vão ser equânimes. É importante considerar, por exemplo, o desvio padrão em um grupo específico — porque ele pode mostrar um viés inconsciente na avaliação de performance.
Tenho otimismo em dois pontos. O primeiro é que cheguemos a uma maior inteligência de dados quanto o assunto é diversidade, equidade, inclusão e pertencimento, realmente transformando esse pilar em algo fundamental para o RH e para toda a liderança. Outro ponto é que a gente tenha uma fiscalização efetiva de leis implementadas. O Brasil está sendo pioneiro em questões legislativas, como a revisão da NR-1 ou a lei de equidade salarial. Podem ser grandes alavancadores para ações de cultura inclusiva, mas é preciso que aconteça com elas o que não aconteceu com outras leis. Se há uma lei, ela precisa ser rigorosa para que as empresas entendam que elas precisam ser cumpridas. Digo isso porque o que acontece com a lei de cotas para pessoas com deficiência é um insucesso de lei, com muitas organizações preferindo pagar a multa a cumprir de fato a cota.
Tem vários. Um que eu acho ótimo é um romance: De Onde Eles Vêm, do Jefferson Tenório, que também escreveu O Avesso da Pele. É um livro que fala sobre a trajetória de uma pessoa que começou a estudar jornalismo na universidade, a partir da lei de cotas, e conta toda essa trajetória até o mercado de trabalho. Analisar uma história como essas nos ajuda a entender o potencial das questões de mérito. Gosto de recomendar coisas que as pessoas queiram ler ou consumir no tempo livre. E aí, acho que tem uma série que vale muito a pena, que é Ruptura (Severance, no título em inglês), que está na Apple TV. É uma série que fala muito de meritocracia, porque ela traz uma hipótese muito interessante: como seria se a gente separasse a nossa vida pessoal de quem somos no trabalho? Ela nos faz questionar muita coisa do ambiente de trabalho.
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