Publicitária de formação, Anna Moreno Damico nem sempre trabalhou no universo do RH – na primeira década de sua carreira, vale dizer, ela ocupou posições na área de Marketing em empresas como PwC e BCG. A mudança para o RH veio acompanhada de outra transição: a imigração para os Estados Unidos, onde mora desde 2018 e cria cinco filhos, entre 10 meses de idade e os 8 anos de idade. “Desde nova, sou ambiciosa e quero construir uma super carreira, mas não queria abrir mão disso para ter filhos”, diz a executiva, que entende que sua caminhada faz parte da maneira singular como enxerga o RH.
Atuando como head global de relações humanas da Boston Consulting Group, ela acredita que a principal mudança do RH nos últimos anos foi o fato de que “os funcionários ganharam voz de verdade”. Na conversa a seguir, ela fala sobre como a área de gente das empresas fez parte dessa mudança, pondera sobre o papel da tecnologia e defende uma nova visão de liderança.
Não há mais espaço para liderança autoritária ou preconceituosa.
Os últimos cinco anos foram muito marcantes para o universo do trabalho. Qual a principal mudança do RH para você nesse período?
Para mim, o que mais mudou foi que os funcionários ganharam voz de verdade. Antigamente, eles eram ouvidos em processos mais formais, como ouvidorias ou denúncias. Havia receio de reclamar ou de pedir alguma coisa. Home-office era algo para emergências. Nos últimos cinco anos, mudaram os canais de comunicação para que as pessoas compartilhassem angústias, aspirações, problemas. O RH teve um papel fundamental nesse processo, aproximando líderes e liderados, permitindo mais sugestões. É algo que tem a ver com a pandemia: ali, ninguém sabia o que fazer – e muitos líderes tiveram a genialidade de se mostrar vulneráveis. Todo mundo foi trocando pneu com o carro em movimento. A pandemia facilitou esse momento de colaboração, que permaneceu quando as empresas voltaram ao presencial – “volte se você se sentir seguro”. Como em todo processo, vimos algumas coisas saírem do controle nessa flexibilização e sinto que a liderança teve de voltar a colocar algumas normas para os escritórios funcionarem e as empresas voltarem a ter produtividade. Sinto que foi um grande aprendizado. Hoje, vejo as pesquisas de clima discutindo abertamente perguntas como “você se vê na empresa daqui a um ano?”. Eram perguntas que antes as pessoas tinham medo de verbalizar.
Há quem diga que essa voz dos colaboradores existiu na pandemia, mas que o pêndulo está retornando para as empresas, como no caso do retorno ao presencial. Como você vê esse movimento?
É uma discussão ótima. Sinto que mudanças de comportamento sempre existiram e sempre existirão outliers. Há tanto quem é movido por bônus e metas quanto as pessoas que só trabalham para ter um salário no final do mês. É legal amar o que se faz, mas tirando todo o romantismo, esta é uma transação comercial: você troca tempo, inteligência e conhecimento por um salário. Se encontrar satisfação, propósito e bons relacionamentos nesse processo, que maravilha. Mas nem sempre é assim – e sinto que as empresas estão aprendendo com isso. Sinto que as lideranças estão mudando. Na pandemia, muitas promoções foram aceleradas: hoje vejo muita gente em cargos de liderança sem a bagagem necessária. Leitura de cenários, resiliência, empatia, são todas habilidades que o tempo traz. E o líder que fala que “é desse jeito e acabou” não está pronto para essa cadeira. Cada colaborador trabalha com um estímulo diferente – e quem perde são as empresas que não têm canal de comunicação. Não é que todo desejo vá ser implementado, porque o RH não é Papai Noel nem gênio da lâmpada, mas essa comunicação é vital. E os desejos mudaram: hoje, a empresa dos sonhos não tem cerveja no escritório nem pingue-pongue, mas sim é um lugar onde você é ouvido, tem autonomia, desafios e liberdade de trabalhar, sem microgerenciamento.
O quanto a tecnologia auxilia para que as pessoas sejam ouvidas?
Ela é vital, especialmente com relação ao engajamento das pessoas. Primeiro, porque ela é capaz de nos dar reuniões com altíssima qualidade, com clareza de áudio, de vídeo, de velocidade de informação. Outro avanço são os sistemas de compartilhamento de documentos: hoje dá para fazer uma reunião de planejamento em que todos movimentam um documento como se fosse uma grande parede cheia de post-its. Mas ainda acho que nada substitui a presença física: uma boa reunião de brainstorm, para mim, acontece ao vivo. Ali, você interrompe as pessoas, levanta a mão, gesticula, reage diante de uma boa ideia. Na frente da câmera, você controla mais. Por outro lado, compartilhamento de informações e de gestão de talentos são coisas que a tecnologia faz muito bem. Hoje, há ferramentas que auxiliam em processos de avaliação ou de feedback que são impecáveis. Como gestora, tenho 10 liderados e cada um deles recebe feedback de cinco pessoas. No mínimo, a cada ciclo, leio 50 feedbacks. Ter um lugar que organiza isso tudo é muito prazeroso. Outro ponto importante são ferramentas de comunicação, como o Slack: elas me permitem manter o engajamento das pessoas, fazer reuniões one-on-one, com liberdade e abertura. Com as ferramentas certas, o trabalho flui que é uma beleza.
Também vejo que um estilo de liderança baseado em microgerenciamento, autoritarismo e desonestidade não terá mais espaço.
Como você vê o RH daqui a cinco anos?
Minha visão tem um quê aspiracional. No futuro do RH, temas de diversidade não serão mais um problema. Não vamos mais falar sobre cotas ou comitês de diversidade. Também vejo que um estilo de liderança baseado em microgerenciamento, autoritarismo e desonestidade não terá mais espaço. Espero que os RHs sejam mais rigorosos nos ciclos de promoção. Vejo de forma muito crítica a promoção de gerência para diretoria. É um momento crítico: até a gerência, há mais espaço para errar, a margem de erro é maior – e o dano é um pouco menor. Quando se é gerente, é esperado que você tenha autonomia, tome decisões, controle orçamentos e pessoas. Quando se é diretor, porém, você é responsável pelo desenvolvimento das pessoas – e espero que essa promoção seja vista com mais carinho, porque ela é muito delicada. Hoje, vejo muitos diretores mal preparados exercendo uma velha liderança, com muita falta de disponibilidade. Quem está numa cadeira dessa não deveria ter medo de conversas difíceis ou não gostar de dar feedback. Espero que, em cinco anos, esse tipo de liderança esteja quase extinta para dar espaço para quem vem chegando. Pessoas que se sentem mais ouvidas e respeitadas constroem a próxima geração de líderes do Brasil. Não há mais espaço para liderança autoritária ou preconceituosa.
A IA não vai resolver o que um cafezinho de cinco minutos resolve. Enquanto trabalharmos com pessoas, precisaremos de pessoas.
Vou retomar a discussão sobre tecnologia: como ela impactará o futuro, seja no trabalho interno do RH ou na força de trabalho como um todo?
É preciso separar o assunto em vários temas. Quanto a ferramentas, creio que estamos evoluindo num ritmo bacana. Não consumo tudo que é lançado, mas consigo usar bem o que a empresa sugere e influencia. Consigo trabalhar num celular por dias. Já com relação à inteligência artificial, não tenho medo dela. Claro: tudo que é usado com má intenção pode ser perigoso. Moro num país onde compro um cacho de banana e uma arma no supermercado, quem usa determina o propósito. Mas vejo a IA se desenvolvendo muito e sendo útil, especialmente na comunicação escrita. Acredito que o RH vá usar muito na comunicação interna, em discursos para a liderança, em construção de conteúdo. Por outro lado, ela nunca será capaz de suprir o humano em relacionamento. A IA não vai resolver o que um cafezinho de cinco minutos resolve. Enquanto trabalharmos com pessoas, precisaremos de pessoas. Empresas que estão se robotizando talvez não precisem, mas para quem o resultado passa por pessoas, será necessário ter pessoas liderando. Uma IA nunca vai resolver um feedback. Sou adepta do olho no olho e do cafezinho.