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Como a startup Marfin implementou e abandonou a semana de quatro dias

Empresa de tecnologia para marketing digital adotou sistema inovador em 2021, mas teve de voltar atrás por queda na produtividade e mau atendimento a clientes; executivo, porém, não descarta volta ao modelo após ajustes de comunicação e jornada

Bruno Capelas
3 de janeiro de 2024
semana de quatro dias
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Trabalhar menos para produzir mais, em níveis equilibrados entre trabalho e qualidade de vida. Essa é uma das ideias centrais de uma das principais tendências de futuro do trabalho surgidas nos últimos anos: a semana de quatro dias. Testada por empresas de diferentes tamanhos, a inovação no modelo de trabalho tem sido apregoada como uma forma de reduzir problemas com saúde mental e ansiedade causadas pelo trabalho nos dias de hoje. Mas nem sempre ela funciona – como conta a história da Marfin, startup de inteligência digital voltada para o mercado de marketing digital.

Entre o começo de 2021 e o final de 2022, a empresa adotou a semana de quatro dias como benefício para seu time, de cerca de 30 colaboradores, deixando as sextas-feiras livres. Por algum tempo, a ideia deu certo – o time estava mais satisfeito e ficou mais fácil de reter e recrutar talentos. Porém, nem tudo foram flores: a qualidade do suporte aos clientes caiu, ficou difícil fechar novos negócios e muitos membros do time perderam o foco e passaram a atrasar suas tarefas. “Antes de implementar o programa, fizemos um teste de maturidade do time, mas na prática, o teste não bateu com a realidade. Acho que faltou comunicar o que se esperava das pessoas”, comenta o CEO da empresa, Ivan Cordeiro Junior, que divulgou o abandono do projeto em um texto recente no Linkedin.

Veja também: Semana de quatro dias e o futuro do trabalho, um papo com Andréa Janer e Gian Martinez

Em entrevista à Cajuína, Ivan conta como o projeto foi implementado, quais foram seus benefícios e porque a semana de quatro dias foi abandonada – segundo ele, apenas temporariamente. “Nosso plano é voltar no segundo trimestre de 2024, mas com mais maturidade”, diz o executivo. Para ele, mais importante do que saber o modelo certo é testar possibilidades. “É legal fazer estudos, mas não adianta ficar só na discussão. Quando você testa, há duas saídas: ou você ganha, ou você aprende”, diz ele.

Ivan, para entendermos o contexto: qual é a sua trajetória até montar a Marfin?

Eu sou do Paraná e fiz escola técnica no Ensino Médio, comecei a trabalhar com 16 anos. Fiquei na indústria de óleo e gás até meus 25, quando passei a estudar marketing digital e atuar como consultor e redator freelancer. Fui construindo uma carteira de clientes e aos poucos decidi montar uma agência. Em 2019, percebi que nós deveríamos virar uma empresa de tecnologia, usando IA e tecnologia própria para atuar com serviços de marketing digital, e foi aí que nasceu a Marfim.

De lá pra cá, já captamos duas rodadas de investimentos. Além disso, a Marfin nasceu da ideia de que eu e meus sócios queríamos criar um lugar de trabalho onde a relação com o trabalho fosse diferente – na indústria, eu precisava acordar 5h30 da manhã todo dia para fazer uma tarefa que podia ser totalmente remota, e isso me incomodava bastante. Antes da pandemia, a gente já nasceu como uma empresa remota, tratando as pessoas como adultas e responsáveis. É por isso que estou sempre olhando estudos, entendendo novas formas de trabalhar. Para saber se dá certo, preciso testar. Minha filosofia é que a gente não perde nada se testar algo novo: ou se ganha, ou se aprende.

Como vocês decidiram adotar a semana de 4 dias na empresa?

Estou sempre estudando, buscando coisas novas, e, em 2021, eu tinha acabado de ler um livro chamado “Um Novo Jeito de Trabalhar”, do Laszlo Bock, ex-VP de RH do Google. E ele falava um pouco sobre o experimento do Google de liberar 20% do tempo das pessoas para projetos pessoais. Além disso, havia já vários estudos mostrando aumento na produtividade e na satisfação com o trabalho em testes da semana de 4 dias. Levei para meus sócios e investidores, discutimos prós e contras e resolvemos testar a ideia. Também ouvimos bastante o time, em torno de 30 pessoas na época, para saber como implementar – seria melhor cortar a segunda, a sexta, a quarta ou reduzir a jornada para 6 horas? Decidimos que seria melhor não ter a sexta-feira e começamos o teste no segundo trimestre de 2021.

Por que a sexta-feira foi escolhida?

Pela característica da rotina das pessoas naquele momento, para elas fazia mais sentido ter uma sexta-feira tranquila. Uma pausa no meio da semana não fazia sentido e uma redução de jornada ia ser bem difícil pra gente, porque temos pessoas em locais e fusos horários diversos, clientes com horários diferentes.

Como foram os primeiros meses de teste?

Foram bem tranquilos. No começo, percebi que algumas pessoas não estavam aproveitando o recurso, porque não era natural para elas, mas aos poucos elas foram se adaptando. Nosso combinado era seguir o que havia no livro – no Google, eles usam 20% do tempo para projetos pessoais dentro da empresa. Foi assim que nasceu o Gmail, por exemplo. Minha sugestão era que as pessoas poderiam descansar na sexta-feira ou aproveitar esse tempo para tirar atraso de algum projeto ou criar algo novo. Não ia ter reunião, nem trabalho normal – tanto que na reunião final da quinta-feira, eu dizia “bom descanso para quem vai folgar e bom trabalho para quem quiser trabalhar.” Foi produtivo: diversas funcionalidades do nosso produto surgiram dessas sextas-feiras. Mas a sexta-feira era de fato livre, não tinha problema nenhum a pessoa descansar naquele dia. Eu pedia que todos tivessem bom senso.

Ficou mais fácil recrutar?

Ficou muito mais fácil. A Marfin é uma startup pequena, mas conseguimos trazer gente de grandes empresas, como Uber e Amazon, por conta desses benefícios – combinando trabalho remoto, semana de 4 dias, benefícios e um salário competitivo. Também conseguíamos reter bastante as pessoas. Estamos falando de 2021, uma época de salários inflacionados em tecnologia, mas tivemos casos de desenvolvedor que recusou salário três vezes maior por conta do equilíbrio de vida pessoal e profissional. Mas eu sempre incentivava as pessoas do time a fazer entrevistas: acho que cada profissional tem que estar atualizado com o mercado, sabendo o seu valor, porque as coisas podem mudar muito rápido.

E quais foram os efeitos negativos nesses primeiros meses na semana de 4 dias?

Uma das coisas que nós notamos foi que tivemos uma aumento no tempo de resposta para clientes, algo que sempre tinha sido muito elogiado e começou a cair nas mensurações de NPS que nós fizemos. Além disso, percebemos que a eficiência se manteve, mas a produtividade caiu ao longo do tempo. E tivemos algumas dificuldades para fechar novos negócios – muitos clientes apareciam na sexta-feira, mas só eram atendidos na segunda ou na terça, e isso desestimulava o interesse.

Uma das coisas que nós notamos foi que tivemos uma aumento no tempo de resposta para clientes, algo que sempre tinha sido muito elogiado e começou a cair nas mensurações de NPS que nós fizemos.

Quando você percebe que o teste não está dando certo?

Aconteceram alguns casos em que eu via que a performance de algumas pessoas não estavam andando, com tarefas não sendo entregues. Acredito que era um problema individual e não do programa, uma questão de bom senso mesmo. Quando eu trabalhava na indústria, era normal resolver um problema no fim de semana, dar uma esticada. E achei que as pessoas fariam o mesmo, mas não aconteceu. Antes de implementar a semana de 4 dias, fizemos um diagnóstico de maturidade do time, identificando a personalidade e a cultura das pessoas. Na prática, porém, o nível de maturidade da pesquisa não batia com a realidade. Acho que faltou comunicar e deixar mais claro o que se esperava das pessoas de segunda a quinta. Além disso, começamos a gerar muito atrito com os clientes, especialmente em questões de suporte. Eu não comuniquei corretamente aos parceiros e clientes que não estaríamos trabalhando na sexta-feira, e por vezes aconteceram problemas graves, que precisavam ser resolvidos urgentemente.

Acho que faltou comunicar e deixar mais claro o que se esperava das pessoas de segunda a quinta.

E quando vocês decidiram encerrar o teste da semana de 4 dias?

No final de 2022, nós tivemos que mudar várias coisas na empresa, fazendo uma pivotagem do modelo de negócios. Revisamos diversas práticas e percebemos que a semana de quatro dias estava gerando problemas não-administráveis dentro dessa nova fase. Decidimos pausar com o projeto no início de 2023, para tentar retomar após a fase de mudanças – que envolvia, entre outras coisas, inserir mais inteligência artificial no nosso produto.

Como foi a reação do time?

As pessoas entenderam, pois sabiam que era um teste que poderia vingar ou não. É lógico que é ruim ter de voltar atrás em um benefício que você ganha, mas fui muito transparente com o que estava acontecendo na empresa, mostrando dados e explicando o porquê daquela decisão.

O que você aprendeu com o primeiro teste da semana de 4 dias?

Enquanto líder, percebi que precisava comunicar melhor as expectativas. Havia uma expectativa minha que todas as pessoas fossem aproveitar a sexta-feira para crescer. Mas não: tem gente que queria voltar pra casa, fechar o computador e OK. Mas esse gerenciamento de expectativas e a comunicaão efetiva sobre elas, ficou bem pelo meio do caminho. Para a empresa, aprendemos também que o planejamento não sobrevive ao campo de batalha. Tentamos nos preparar com as melhores informações que havia na época, mas a prática foi diferente. E percebi que precisávamos ser mais flexíveis na implementação, entendendo não só o que o time queria, mas também todo o nosso ecossistema. Olhamos internamente e faltou comunicar e envolver nossa comunidade.

Vocês chegaram a perder clientes durante o teste?

Clientes em si nós não perdemos, mas tivemos muito atrito na relação de confiança. Quando havia problemas, surgiam muitas dúvidas se conseguiríamos resolver – e recuperar a confiança é algo que demora. Mas o maior impacto foi nos novos negócios, porque deixamos muitas oportunidades passarem só de não estarmos disponíveis na sexta-feira.

Você disse que pausou o projeto. Está nos planos voltar à semana de quatro dias?

Está nos nossos planos retomar o projeto a partir do segundo trimestre de 2024, a depender de diversos marcos que estão no roadmap da empresa.

E o que você vai fazer de diferente na retomada?

Precisamos cuidar do atendimento ao cliente. Provavelmente, vamos implementar testes de rodízio ou redução de jornada diferente para quem lida diretamente com clientes. Também penso em usar a semana de 4 dias como um benefício após o período de experiência das pessoas. Ou seja, a pessoa entra e faz o onboarding – no nosso onboarding, tem um checklist que cada pessoa precisa cumprir e leva em média 90 dias. É um modelo de experimento, para entender se as pessoas entendem que é um benefício a ser desbloqueado de acordo com performance e fit cultural com a empresa.

Que conselho você dá para quem está lendo essa entrevista e está em dúvidas quanto à semana de quatro dias?

É importante não ficar só na teoria. É só testando que dá para saber se algo dá certo. Por mais que se planeje todos os pontos possíveis, não existem soluções únicas. Tem muita gente que se considera especialista em temas como a semana de 4 dias e chega com roteiro pronto, mas cada cultura e empresa vai ser diferente. Para implementar algo assim, tem que se ouvir o ecossistema como um todo. É legal fazer estudos e roteiros, mas não adianta ficar só na discussão. Além disso, é importante tratar as pessoas como adultas, entendendo que elas são responsáveis. É o princípio básico da confiança, sem criar barreiras para monitorar ou travar o profissional.

Bruno Capelas é jornalista. Foi repórter e editor de tecnologia do Estadão e líder de comunicação da firma de venture capital Canary. Também escreveu o livro 'Raios e Trovões – A História do Fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum'.