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Como funciona a Lei de Equidade Salarial no Brasil

Tema já era obrigatório na CLT, mas ganha força com texto sancionado em julho; para especialistas, RH tem a missão de ir além da remuneração e transformar a cultura das organizações, superando o modelo ultrapassado que ainda vê gênero como base de cálculo

Caroline Marino
24 de agosto de 2023
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Era 1963 quando a primeira Lei de Igualdade de Pagamento foi assinada nos Estados Unidos, pelo presidente John F. Kennedy. De lá para cá pouca coisa mudou: continuamos lendo notícias de homens que ganham mais do que mulheres em todas as áreas e segmentos. Isso acontece mesmo quando ambos desempenham as mesmas funções e estão equiparados em competências, a despeito de inúmeras pesquisas que mostram o potencial feminino para o fomento dos negócios. Só para citar uma: se a remuneração das mulheres fosse equiparada à dos homens, isso injetaria R$ 461 bilhões na economia brasileira, diz estudo do Instituto Locomotiva.

Por aqui, o assunto está em pauta há algum tempo, mas sem resultados efetivos. Apesar de a obrigatoriedade estar prevista nas normas da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ela é frequentemente descumprida. Além disso, em 2022 a disparidade salarial voltou a subir no país, atingindo 22%, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na prática, uma brasileira recebe, em média, 78% do que ganha um homem, desempenhando a mesma função.

Na prática, uma brasileira recebe, em média, 78% do que ganha um homem, desempenhando a mesma função.

Em julho deste ano, mais um passo foi dado para tentar resolver esta disparidade: o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou uma lei que torna obrigatória a igualdade salarial nos casos de função idêntica e trabalho de mesmo valor, independentemente não só do sexo, mas também de etnia, raça, origem ou idade. É um reflexo do movimento por mais diversidade e respeito no ambiente de trabalho, bem como o compromisso do Brasil para atender a Meta 8 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU), focada na promoção do trabalho decente e do crescimento econômico dos países membros. O empregador que descumprir a lei terá de pagar multa equivalente a dez vezes o valor do novo salário devido. Em caso de reincidência, será aplicada a multa em dobro. E mesmo com pagamento da multa, a pessoa discriminada pode entrar com pedido de indenização por danos morais.

“O sistema jurídico brasileiro já possuía dispositivos legais para assegurar a igualdade salarial entre homens e mulheres. No entanto, ao longo do tempo, essas normas têm sido violadas, o que levou a mais um movimento legislativo com o objetivo de promover a efetivação do direito à igualdade e provocar uma transformação no ambiente corporativo”, explica Priscilla Caldeira Carbone, sócia de Direito Trabalhista e ESG do escritório de advocacia Madrona Fialho. Mas ela reforça que a mudança legal é apenas um dos mecanismos. “A transformação cultural é o que realmente fará a diferença no combate às discriminações de gênero”.

Margareth Goldenberg, do Movimento Mulher 360; Priscilla Carbone, do Madrona Fialho; e Tatiana Sadala, do @TodasGroup

A base está na cultura

Fica claro que a equidade de gênero vai além da equiparação de salários. Na visão de Margareth Goldenberg, gestora executiva do Movimento Mulher 360 e especialista em direitos humanos e mundo corporativo, a principal questão é compreender a natureza sistêmica da desigualdade salarial. “Esse gap é um dos sintomas de uma doença grave: nossa cultura patriarcal e machista. Essa cultura leva à iniquidade de oportunidades entre homens e mulheres e à carga desproporcional das mulheres com a economia do cuidado, bem como preconceitos e vieses que impedem processos equitativos em todo ciclo de vida da profissional, da atração e recrutamento ao desenvolvimento, promoção e retenção”, afirma. “A correção da diferença salarial é fundamental? Claro. Mas sozinha não vai mudar a realidade desigual que as mulheres têm no mercado de trabalho.” Para a especialista, a raiz do problema só será resolvida com um trabalho profundo de transformação cultural nas empresas, na mentalidade dos gestores e nos processos de gestão de pessoas.

“A correção da diferença salarial é fundamental? Claro. Mas sozinha não vai mudar a realidade desigual que as mulheres têm no mercado de trabalho.”

É uma tarefa que pode levar um tempo maior do que o esperado. Tatiana Sadala, presidente e cofundadora da plataforma de crescimento profissional feminino @TodasGroup, ressalta que transformar questões culturais é um processo complexo e longo, mas essencial para o avanço. “É preciso um trabalho contínuo de conscientização, educação e ações concretas para superar as barreiras existentes, tantas vezes invisíveis para muitos. Programas como equidade salarial e de aceleração da carreira feminina no contexto das barreiras enfrentadas são vitais”.

Primeiro passo: processos iguais para todos

As empresas têm muito trabalho pela frente e o RH deve ser um dos grandes mobilizadores dessa mudança. “Não se trata de ‘a partir de amanhã é lei e vou equiparar os salários’”, reforça Maria Candida Baumer, sócia da consultoria People & Results, especializada em carreira e cultura empresarial. De acordo com ela, é necessário dar um passo atrás e equiparar todo o processo de gestão de pessoas, como o recrutamento e seleção.

“A companhia deve contar com uma seleção bem feita, buscando o que precisa independentemente do gênero, assim como deve promover se baseando em entrega, competência e perfil. Não deve achar que se equiparar salários e cumprir a porcentagem de mulheres na liderança, já fez a lição de casa e está tudo bem”, diz Baumer. Segundo ela, é sair da lógica do “eu olho e compreendo diferente por conta do gênero para focar no ser humano” e suas particularidades. Ela dá um exemplo: quantos homens também têm filhos? Quantos levam na escola? Quantos têm questões de saúde? Quantos buscam mais equilíbrio entre vida pessoal e trabalho?

Para iniciar essa jornada, a companhia precisa entender se está posicionado os cargos de forma igualitária, como explica Katia Ackermanndiretora de desenvolvimento da Produtive, consultoria de recolocação. “Se a empresa entende que tem posições mais propensas aos homens, já começa a discriminação”, diz. Para ela, é fundamental mudar o modelo mental em relação às capacidades e especificidades de gênero. “Todos são iguais desde que recebam os mesmos estímulos de treinamentos, comunicação e suporte”.

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Katia Ackermann, da Produtive; e Juliana Brito, da Concentrix

Outro ponto importante é levar em conta a estrutura de salários da organização. Isso porque muitas companhias ainda balizam o valor do salário de uma pessoa com base em remunerações anteriores ou pedidos de aumento. “Sabemos, por exemplo, que as mulheres pedem menos aumento, assim como podem vir de trabalhos com remunerações mais baixas. Ao acolher o que vem do mercado, fica mais difícil mudar a distorção histórica”, afirma Katia. Isso quer dizer que se o salário de um gerente na sua empresa é de R$10 mil e você encontra uma mulher que pede R$7 mil e um homem R$11 mil, mesmo com competências e experiências similares, o correto é oferecer o que está no plano estratégico.

Head da comunidade de RH e líder da frente de diversidade e inclusão (D&I) na startup Comp, focada em remuneração, Fernanda Markiewicz concorda com Katia. Segundo ela, quando a companhia identifica que há diferenças é importante analisar por que elas existem e se realmente têm ligação com o gênero. “Tem a ver com as mulheres pedirem menos aumento ou os líderes ‘preferirem’ contratar homens? Nesses casos, a empresa precisa agir para reverter a situação e proporcionar a igualdade”, explica. No entanto, alerta Markiewicz, a disparidade pode ter relação com o tempo de casa de cada um ou ligada à região em que o profissional atua? Nesses casos, ela explica que as políticas podem variar conforme as regras estipuladas por cada empresa. “Há companhias que pagam salários diferentes a um diretor que trabalha na unidade de São Paulo e um que atua em Cuiabá, por exemplo”, explica. Markiewicz reforça que essa análise é crucial, pois cada companhia pode explicar como funciona a política de promoções e méritos ao submeter o relatório de transparência salarial previsto na lei.

Leia também: Só o salário não basta: como atrair e reter talentos de alta performance

Alta liderança como propulsor

O compromisso da alta liderança e a atuação dos gestores são essenciais. Há cinco anos, a Danone vem trabalhando para alcançar a equidade salarial: a multinacional passou a exigir que as áreas de remuneração de todos os países reportassem qual era a situação salarial de todos os funcionários, desde o primeiro nível de cargo gerencial. Gerente sênior de RH da Danone Brasil, Giselly Viveiros conta que na época a diferença salarial entre homens e mulheres em cargos gerenciais era de 6%. Para garantir um posicionamento justo e pautado em metas e desenvolvimento, sem qualquer viés de gênero, passou a monitorar indicadores de diferença salarial entre homens e mulheres a cada revisão salarial e fazendo correções nos casos defasados. A mesma análise passou a fazer parte da construção de propostas salariais para candidatos externos. “Assim, ano a ano, o gap foi diminuindo, até acabar em 2022, três anos antes da meta global”, conta.

Segundo Giselly, é importante também sempre debater o tema. “Aqui, fazemos isso por meio do Grupo de Afinidade (D’Elas). Junto com o diretor de operações e coordenador D2D, discutimos planos que endereçam os maiores desafios por diretoria”, explica. Além disso, a companhia conta com ferramentas que apoiam pessoas que decidem viver a parentalidade. Há benefícios e ações como presença de lactários nas unidades e a política de acompanhante de viagens, em que as mães que amamentam podem levar filhos(as) de até 1 ano e 11 meses e uma pessoa acompanhante em viagens nacionais.

A Danone aposta, ainda, na escuta ativa e na medição de satisfação e engajamento dos funcionários. No ano passado, por exemplo, quase 60 mil colaboradores ao redor do mundo foram ouvidos em uma pesquisa, na qual puderam avaliar pilares como cultura, comportamento, benefícios, ambiente de trabalho e liderança. Entre os resultados, foi constatado que o alcance da equidade salarial é um dos fatores que impactam positivamente o engajamento do time.

Igualdade como estratégia

Concentrix, que atua com soluções CX e tecnologia, tem como estratégia de negócios que todos tenham direitos iguais, o que inclui o salário no caso de profissionais que desempenham a mesma função e tenham senioridade similar. Por lá, nunca houve diferenciação de remuneração por gênero. “Isso vem da liderança global e é nosso jeito de trabalhar”, explica Juliana Brito, diretora de pessoas da companhia. O valor é baseado em pesquisas de mercado e está diretamente ligado ao cargo. Porém, tão importante quanto isso, segundo Britto, é a política de gestão de pessoas, seus benefícios e práticas, e a fomentação de um ambiente saudável e de segurança psicológica.

“Antes do processo seletivo começar, perguntamos como a pessoa prefere ser chamada e usamos o nome social nos casos de profissionais trans. Durante a seleção, fazemos perguntas como o horário e local preferidos de trabalhar para conseguir adaptar às necessidades do profissional à vaga”, conta Britto. A executiva dá outro exemplo: se a candidata chega ao processo seletivo com o filho pequeno por não ter com quem deixá-lo, alguém do RH fica com a criança para que ela termine a entrevista. “O mais importante é entender que as pessoas funcionam de formas diferentes e, por isso, ouví-las é essencial”. afirma.

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Giselly Viveiros, da Danone; e Fernanda Markiewicz, da Comp

Além da cultura, a executiva da Concentrix explica que o fato de a empresa contar com uma estrutura organizacional horizontal, ou seja, com menos níveis hierárquicos, os critérios de remuneração ficam mais transparentes e claros para todos. Por lá, não existe gerente 1, 2 e 3. Entre o agente de atendimento até o diretor são apenas cinco níveis. Essa prática ajuda a evitar que as empresas encontrem maneiras de burlar a lei, como contratando mulheres em cargos diferentes de homens, ainda que executem as mesmas funções, como diretor 3 e diretora 2.

O caminho pode ser mais longo ou mais curto, depende do estágio de maturidade da empresa, mas há duas certezas. A primeira é que cumprir a lei é trabalhar a marca empregadora. “Para aumentar a atratividade e a retenção de talentos que ajudam as companhias a crescer é fundamental ter a igualdade e a diversidade como propósitos. Caso contrário, haverá perda de talentos e, consequentemente, de competitividade e resultados”, diz Tatiana Sadala, do @Todas Group. A segunda é que nenhuma metodologia é suficiente sem uma jornada consistente de transformação cultural para que a companhia seja, de fato, um ambiente que enxerga e trata todos da mesma maneira, independentemente de qualquer característica.

Para aumentar a atratividade e a retenção de talentos que ajudam as companhias a crescer é fundamental ter a igualdade e a diversidade como propósitos. Caso contrário, haverá perda de talentos e, consequentemente, de competitividade e resultados.”

Leia também: Empresas começam a apostar em benefícios corporativos focados em mulheres

Por dentro da lei

Priscilla Caldeira Carbone, sócia de Trabalhista e ESG no escritório de advocacia Madrona Fialho, mostra alguns pontos importantes da nova norma:

– Como já havia a obrigação legal de não diferenciar os salários dos empregados que realizam atividades com igual produtividade e a mesma perfeição técnica, não há prazo para a adaptação das empresas e a aplicação é imediata;

– A diferenciação salarial é permitida apenas em situações muito específicas, como a diferença de tempo de serviço à companhia ou a senioridade, e tempo de trabalho na função;

–  As garantias de proteção contra discriminação por sexo, raça, etnia, origem ou idade não se restringem apenas às mulheres, sendo aplicadas a todos os gêneros, como masculino, transgênero, não-binário, entre outros;

– Empresas que possuem 100 ou mais empregados serão obrigadas a publicar relatórios semestrais de transparência salarial e com os respectivos critérios remuneratórios adotados. Esses documentos devem conter dados anonimizados para comparação objetiva entre salários, remunerações e proporção de cargos ocupados por mulheres e homens em cargos de direção, gerência e chefia. As informações devem incluir, ainda, dados estatísticos sobre desigualdades relacionadas à raça, etnia, nacionalidade e idade;

– A nova lei prevê multa administrativa de até 3% da folha de salários dos empregados, limitada a 100 salários-mínimos (no máximo de R$ 132 mil, atualmente), para as empresas que descumprirem a norma;

– A penalidade prevista na nova legislação não previne a aplicação de outras sanções legais para casos de discriminação salarial e critérios remuneratório entre mulheres e homens, nem afeta o direito do empregado lesado buscar indenização individual por danos morais.

Por onde começar a equiparação salarial

Veja as recomendações de Margareth Goldenberg, gestora executiva do Movimento Mulher 360:

1. O tema deve estar vinculado aos valores e à estratégia de negócio, não apenas ser visto como um assunto do RH. O CEO deve ser um aliado e patrocinador da causa;

2. Compreenda o retrato da diversidade e inclusão na empresa. Para isso, realize um diagnóstico, incluindo pesquisas, para compreender não somente quantas mulheres existem na empresa, mas em que área e função estão. Analise também aspectos como os marcadores sociais e físicos dessas mulheres; a velocidade da jornada de desenvolvimento; oportunidades de crescimento,  índice de turnover, em especial depois da licença maternidade; e qualidade do ambiente de trabalho;

3. Defina um plano e diretrizes estratégicas e os desdobre em um plano tático com a definição das ações afirmativas a serem realizadas em todo o ciclo de vida da colaboradora, como atração, seleção, desenvolvimento, retenção, monitoramento de promoções e aumentos para garantir que não sejam tendenciosos;

4. Estabeleça indicadores de processos e resultados, com metas claras a serem perseguidas para promoção da equidade e inclusão, sempre com um olhar interseccional. Lembre-se que estamos falando de todas as mulheres;

5. Estruture a governança, definindo atribuições e responsabilidades para todas as instâncias envolvidas: recursos humanos, comitê técnico, comitê de lideranças, grupos de afinidade;

6. Conecte-se a movimentos empresariais promotores da equidade e diversidade, influencie sua cadeia de valor e advogue a causa da equidade na sociedade.

Jornalista especializada em carreira, RH e liderança feminina. Passou por publicações como Você S/A, Cosmopolitan e Valor Econômico, além de colaborar para Época Negócios, Você RH e Universal Uol. É coautora de "O mundo (quase) secreto das startups e head de conteúdo da Tempo de Mulher.