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Como a Latam aumentou a pluralidade no mercado de aviação

Após crise na pandemia, empresa passou a olhar para representatividade em pilares como gênero, pessoas com deficiência e questões raciais; gerente de recrutamento e seleção da companhia aérea fala sobre desafios de aumentar pluralidade em mercado marcado por machismo e forte hierarquia

Bruno Capelas
6 de maio de 2024
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Os últimos anos não foram fáceis para o setor de aviação – com a pandemia, muitas empresas passaram meses sem operar e tiveram de fazer cortes ou até mesmo enfrentar processos de recuperação judicial. Foi o que aconteceu na Latam, que tinha 700 voos diários antes da chegada do coronavírus, mas chegou a ter dias inteiros em 2020 sem um único avião sair do chão. Ao buscar se reerguer, porém, a empresa voltou com um novo foco – e a diversidade passou a ser um dos pilares nas contratações da companhia aérea. 

“Para tudo acontecer, da venda das passagens ao desembarque do cliente, precisávamos de cada pessoa na operação – e precisávamos que esse quadro [de funcionários] refletisse a sociedade, porque transportamos a todos”, conta Angela Zampol, gerente de recrutamento, seleção e treinamento da Latam. Desde 2021, ela tem ajudado a companhia a tornar-se mais plural e inclusiva, com esforços para aumentar a diversidade racial da empresa, contratar pessoas com deficiência além da cota exigida pelo governo e ampliar o número de mulheres em posições técnicas, como pilotas e mecânicas. 

É um trabalho complexo, que vai da formação de talentos na base – hoje, as mulheres são 2,3% das pessoas pilotas no Brasil – à flexibilização de processos seletivos em uma área bastante conhecida por alto nível de exigência. Os esforços, porém, tem dado certo: entre dezembro de 2021 e dezembro de 2023, o percentual de pessoas com deficiência, por exemplo, saltou de 2,4% para 5,1%; já o de mulheres mecânicas foi de 4,1% para 6,4%. “Percebemos que as ações que fazemos já surtem efeito no curto prazo, mas como é preciso desenvolvimento de base, o compromisso aqui é mais longo”, explica a executiva. 

Na entrevista a seguir, Angela Zampol fala não só sobre as mudanças implementadas pela Latam na contratação, como deixar de lado a exigência pelo inglês para comissários de bordo, mas também explica os esforços da companhia para ajudar os recém-chegados a se desenvolver e evoluir no plano de carreira em um setor bastante marcada pelo ambiente masculino e pela hierarquia. “Se a gente não trabalhar essa parte direito, todos os profissionais vão passar por porta giratória, entrando e logo depois saindo da empresa”, ressalta a executiva. 

A Latam é uma empresa bastante tradicional no mercado brasileiro. Como foi o processo de implementar um olhar sobre diversidade nas contratações da empresa? 

Nossa jornada com diversidade, equidade e inclusão (DEI) começou em 2021, em meio à pandemia. Ali, entendemos que era preciso um olhar mais apurado e cuidadoso com o tema, dentro de um atributo da nossa cultura, o “JETS” – um acrônimo para justo, empático, transparente e simples. Também veio nessa época a necessidade da empresa ter um olhar mais apurado para questões de ESG, nos comprometemos a ser uma empresa diversa e inclusiva. Dentro dos compromissos, temos três temas fortes: pessoas com deficiência, questões de gênero e o que a gente chama de “perfis”, para trabalhar as questões que mais pegam em cada país. No Brasil, a área de perfis olha para questão racial, orientação sexual e de idade. Temos ainda um comitê global de diversidade, no qual eu participo e mais duas pessoas do Brasil. Desde 2021, esse comitê é quem traz as diretrizes pra gente. Começamos com uma consultoria externa para nos apoiar no tema, para guiar as lideranças, porque a aviação é majoritariamente uma indústria masculina. Trabalho no setor há 22 anos e a mudança ao longo das décadas é forte, mas a aviação vem do militarismo, então ela sempre foi muito masculinizada e muito hierarquizada. Com a consultoria, passamos não só por esse diagnóstico, mas também por um censo com as nossas pessoas, especialmente para questões que precisam de autodeclaração, como raça, orientação sexual e até mesmo deficiência. Desse diagnóstico, tivemos material e substância para criar um plano tático de ações, e aí seguimos com o trabalho. 

Antes da gente avançar para as ações, há um ponto curioso aqui. A pandemia foi um ponto de inflexão para a indústria de aviação, em uma reconstrução que começou em 2021. Essa reconstrução e a busca por diversidade estão ligadas? 

Foram processos muito conectados. 2020 foi um ano muito difícil para a empresa: tínhamos mais de 700 voos diários na época, mas houve dias que a gente não teve nenhum avião decolando. Como empresa, tivemos de tomar decisões duras e difíceis, abrimos programa de demissão voluntária e depois fizemos redução de quadro. Financeiramente, foi um período duro. Em 2021, começamos a retomar as operações, mas ainda estávamos afetados pelos reflexos da pandemia, com muitas restrições. Foi um momento delicado, no qual precisamos aderir à recuperação judicial, e mais do que nunca, nós precisamos das pessoas. Nosso CEO sempre fala: embora sejamos uma empresa de aviões, a Latam é uma empresa de pessoas – e para tudo acontecer, da venda das passagens ao desembarque do cliente com segurança, precisávamos de cada pessoa na operação.

Além de cuidar das nossas pessoas, precisávamos que esse quadro refletisse a sociedade. Na época, quando a gente analisava a sociedade e a nossa empresa, a gente via que tinha uma disparidade. Como somos uma empresa de serviços, precisamos oferecer serviço para todas as pessoas, porque transportamos a todos. A diversidade está por trás dessa pluralidade, traz criatividade, traz outras visões e complementa bem o que a gente estava precisando como empresa na época, que era ressurgir e renascer mais fortes. 

Na parte de gênero, nosso grande objetivo é inspirar meninas e mulheres a seguir as profissões que elas quiserem.

Passando para as ações: um dos pilares que você destacou nesse processo é o de gênero, e a Latam intensificou a contratação de mulheres pilotas e técnicas. Como foi o processo de ampliar essas contratações, em setores em que a formação de mulheres já é bastante baixa? 

De fato, tem um problema de base. Às vezes, fazemos bate-papos com mulheres e sempre ouvimos essa história: desde criança, elas não são incentivadas a seguir esse caminho. A mulher é incentivada a cuidar, enquanto o homem ganha carrinho, ganha avião, é incentivado para esse caminho técnico. Desde cedo, isso ajuda a criar esse déficit de mulheres nesses cargos. Um estudo da UFSCar mostra que hoje existem 3,3 mil pilotas formadas no Brasil, sendo que só 1 mil exercem a profissão em companhias aéreas – um total de 2,3% do mercado, ao todo. É muito pouco.

Por outro lado, precisamos seguir um manual rígido de recrutamento porque há critérios mínimos para se contratar um piloto, como horas de voos, carteiras, habilitações específicas. Ao buscar as mulheres, nós fazemos ações afirmativas e também ajustamos os filtros possíveis, sempre obedecendo à regulação no caso de pilotas. Mas não é um trabalho simples, e tem que começar desde cedo: na parte de gênero, nosso grande objetivo é inspirar meninas e mulheres a seguir as profissões que elas quiserem. Participamos constantemente de feiras e eventos com associações, como a Associação Aviadoras – uma ONG que desenvolve, mentora, treina e auxilia meninas que querem ser pilotas. Nós sempre estamos presentes em feiras e eventos passando a mensagem, inspirando as meninas a olhar essas carreiras com outros olhos, além dessa parceria com a Aviadoras, que está presente nos aeroclubes.

Para alguém se formar pilota é preciso muito estudo, muitos anos, muitas horas de voo: se desde cedo uma menina se interessa pela carreira, mais cedo ela chega no objetivo dela. Nossa meta é ter 10% de mulheres pilotas e 10% de mulheres mecânicas até 2030. Em 2021, nós estávamos na média do mercado, com 2,3%. Hoje, elas são 3,3% no nosso quadro de pilotos. Percebemos que as ações que fazemos já surtem efeito no curto prazo, mas como é preciso desenvolvimento de base, o compromisso aqui é mais longo. 

Contratar, porém, é apenas parte do processo. Como foi o treinamento interno para que a empresa tivesse um ambiente receptivo – e diferente de um histórico de décadas? 

Isso surgiu no nosso plano tático. A primeira ação que fizemos foi um letramento e sensibilização da alta liderança com o tema, algo que nós passamos um bom tempo fazendo e fazemos até hoje. Precisávamos de uma força de cima pra baixo, com líderes que tivessem consciência dos nossos desafios enquanto grupo, capazes de passar essas ideias para a média liderança e para a liderança operacional. Fazemos ações de sensibilização, workshops, cursos, palestras… e sempre buscamos trazer temas novos, porque o ambiente de diversidade é muito dinâmico. Também trabalhamos muito as questões de vieses inconscientes, porque havia uma preocupação que o RH mudasse, mas a empresa não – até porque sabemos que, no final, quem escolhe os candidatos é o gestor.

Sempre há uma tendência de buscarmos pessoas com formação parecida, com background parecido, sem o olhar aberto ao diferente e o novo. Mas isso é um problema: às vezes, não basta dar condição de igualdade e achar que todos vão chegar no mesmo lugar, porque as pessoas não partem do mesmo lugar. Ao final, essa capacitação desceu para todos: hoje, todo colaborador da Latam teve alguma capacitação sobre diversidade. 

Outro pilar que você comentou no início são as pessoas com deficiência – um tema que tem até lei de cotas, mas que muitas empresas dizem ter dificuldade para cumprir. Como a Latam fez para sair desse impasse? 

Você tem razão: durante muito tempo, foi difícil pra gente evoluir nesse tema. Tìnhamos a contratação de pessoas com deficiência por conta da lei de cotas, mas vivíamos no efeito da porta giratória: o profissional entrava, não se sentia incluído e acabava indo para oura empresa. Em 2021, firmamos o compromisso de estarmos na meta em cada um dos países que atuamos na América Latina em 2026 – nem todos os países tem o mesmo percentual, alguns nem tem lei de cotas. Estabelecemos uma série de ações para mover os ponteiros, com envolvimento da alta liderança: semanalmente, tínhamos uma rodada com o CEO para falar só sobre isso.

Aqui no Brasil, conseguimos já passar a cota dos 5%, que é o que a lei obriga, bastante antes do que era previsto. Queremos ir além da meta, buscando trazer pessoas com deficiência em todos os níveis da empresa. Hoje, as PCDs estão espalhadas em todos os níveis da empresa, com cargo executivo, administrativo e operacional, com muita gente em aeroportos e nas áreas de manutenção. Só não temos PCDs nas áreas de voo: todos os aeronautas (pessoas que voam) têm de passar periodicamente por um exame de saúde para renovar carteiras e permissões, feito pela ANAC, e há essa limitação. 

Um debate que muitas empresas fazem na hora de ampliar contratações em grupos diversos é a exigência de idiomas. Como empresa aérea, a Latam tem uma grande quantidade de clientes estrangeiros e voa para diversos países, o que torna a questão do idioma mais complexa. Como vocês ludaram com o tema? 

Nós começamos a flexibilizar a questão do idioma. Em alguns casos, como o de pilotos, ele é obrigatório pelas exigências da ANAC, mas há funções em que não é o caso. Aqui, o idioma deixou de ser uma barreira excludente para mecânicos e comissários de bordo, o que abre espaço tanto nas contratações de gênero quanto raciais. Hoje, há estimativa que só 4% dos brasileiros falam um segundo idioma, e na sua maioria são pessoas brancas de classe média e alta. Quando você transforma o idioma em algo excludente para algo desejável, passando a usá-lo como nota dentro de um sistema de ranking, você muda o quadro. Nós revisamos vaga por vaga para entender o uso do idioma na prática, e isso nos ajudou a trazer uma maior representatividade de pessoas pretas para o grupo.

Outra questão que nós mudamos é que flexibilizamos nossa régua de contratações para além do eixo Rio-São Paulo. Antigamente, o processo de seleção era presencial, então quem morava em regiões mais distantes acabava excluído por não conseguir vir para participar. Hoje, o processo de seleção de comissário de bordo é 100% online, e isso tem mudado a composição do grupo; no final de 2023, por exemplo, tínhamos 18% de pessoas pretas na população de cabine, e esse ano vamos crescer de novo. É uma lógica que tem funcionado para praticamente todas as nossas vagas. Por outro lado, passamos a olhar cada vez mais para a cultura e o alinhamento dos valores do candidato com os da empresa. 

Mudar os critérios para contratação é um passo importante, mas ele não pode vir sozinho – senão a pessoa não consegue evoluir na carreira, por exemplo. Como é o esforço da Latam para não só contratar as pessoas, mas também ajudá-las a progredir e seguir um plano de carreira? 

Se a gente não trabalhar essa parte direito, todos os profissionais vão passar por porta giratória. E faz todo o sentido: um comissário de bordo, por exemplo, começa em voos nacionais, depois vira chefe de cabine e aí evolui para voos internacionais. É uma progressão de carreira natural. O que nós fazemos é flexibilizar a porta de entrada, mas ajudar na progressão: para 100% dos colaboradores do grupo, oferecemos cursos de idioma numa plataforma online, com aulas em 12 línguas diferentes, síncronas e assíncronas, com professores nativos que vão ajudar na fluência. É importante fazer ações de “de/para”, de apoiar não só a entrada, mas o desenvolvimento de carreiras, até porque isso faz parte da nossa cultura. 

Ainda falando sobre desenvolvimento e considerando que a aviação é um setor muito específico quanto a seus horários e rotinas: como a Latam faz para conciliar a evolução de carreira de profissionais mulheres com questões como maternidade e família, especialmente ao longo de um plano de carreira? 

Nós buscamos ter um trabalho bastante cuidadoso com as mulheres aeronautas. Para começar, do momento em que ela descobre que se torna gestante, ela é afastada do ar: por questões de saúde que podem afetar a gravidez nesse período, ela não pode mais voar, então fica afastada do trabalho. No retorno ao trabalho, nós temos um diferencial que chamamos de “escala-mãe”, com ajustes na escala que aeronautas normalmente fazem.

Entre esses ajustes, há flexibilidade para estar mais tempo junto ao filho, não precisa fazer parte de reservas ou sobreavisos inerentes à escala de tripulante e pode optar por voos de bate-e-volta para estar todos os dias em casa. Sabemos que as mulheres precisam conciliar maternidade e outros cuidados com a profissão – não que o homem não precise também, mas entendemos que o desafio das mães é maior, especialmente no começo, com questões como amamentação. 

No começo da entrevista, você enfatizou que a Latam é uma empresa de serviços e que havia uma disparidade entre quem usava a empresa e quem trabalhava nela. De 2021 para cá, isso mudou. Mudou também a percepção das pessoas sobre a qualidade do serviço, por conta da representatividade? 

Não temos uma métrica específica para medir esse item externamente, mas o NPS dos profissionais em contato com os clientes evoluiu significativamente ao longo dos últimos anos. Há mudanças não só na força de trabalho mais diversa, mas também no serviço de bordo, e tudo isso muda a percepção. Nós tivemos também uma capacitação para atender pessoas no espectro autista, e sempre trabalhamos em ações voltadas ao atendimento do cliente. Mas não conseguimos quantificar a mudança especificamente por questões de diversidade. 

Por outro lado, o Brasil está num momento bastante polarizado de sua história – e há um grupo de pessoas que acredita que questões raciais, de gênero ou de orientação sexual são “mimimi”. É algo que os funcionários precisam lidar diariamente. Há algum tipo de treinamento ou orientação para os colaboradores em situações em que eles se sintam desrespeitados? 

Um dos nossos grandes objetivos é dar segurança psicológica para nossas pessoas serem quem elas são. Sabemos que há polarização na sociedade, e infelizmente ainda temos algumas situações de racismo e machismo. Para lidar com isso, temos políticas internas, um código de conduta, uma área de compliance que nos apoia, e treinamos e informamos os colaboradores sobre o que a Latam espera no exercício da função, bem como damos apoio para caso uma situação dessas ocorra. Queremos que todos tenham segurança e confiança para trazer esse tema para dentro de casa, e acolhemos o profissional caso surja um cenário desses, apoiando-o na sua demanda.

Há pessoas que precisam de apoio psicológico, outros precisam de apoio jurídico, e queremos dar a confiança de que se algo acontecer, o profissional pode trazer para dentro de casa. É uma mudança de postura: antigamente, como funcionário, a gente tinha medo de compartilhar certas situações com a liderança, então temos um trabalho forte de passar pras pessoas que estamos aqui, que queremos todos bem para suas funções e que pluralidade faz diferença pra gente sim. 

Para fechar, Angela: você tem alguma dica de livro, filme ou podcast para quem está lendo esse papo e quer continuar refletindo sobre essas questões? 

Um livro que me ajudou muito a sair da passividade sobre o tema de diversidade, especialmente na passagem de “não sou racista” para “sou antirracista”, foi o Pequeno Manual Antirracista, da Djamila Ribeiro. É um livro superdidático, que traz os principais pontos sobre como o racismo é estrutural na nossa sociedade e como fazemos para sair de uma posição passiva no tema. É uma jornada longa: o esforço de hoje vai refletir nas próximas gerações.

Além disso, indico também o Diversidade, Inclusão e Suas Dimensões, do Luciano Amato e da Margareth Goldenberg. É um livro denso, mas que traz um olhar sobre a importância da diversidade na ótica do negócio: mais do que nunca, as pessoas tomam decisões olhando para ESG, pensando aspectos como sustentabilidade e diversidade. É um livro que traz insights bacanas para quem busca entender o tema. 

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Bruno Capelas é jornalista. Foi repórter e editor de tecnologia do Estadão e líder de comunicação da firma de venture capital Canary. Também escreveu o livro 'Raios e Trovões – A História do Fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum'.