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Como a Scania Brasil contratou e incluiu 77 funcionários surdos

Montadora criou programa de contratação em parceria com o Senai; para executiva, desafio atual é garantir que profissionais evoluam na carreira e não fiquem restritos somente a cargos operacionais

Vanessa Fajardo
11 de novembro de 2024
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Com operação em mais de 100 países, a Scania é uma montadora de caminhões e ônibus com cerca de 58 mil colaboradores no mundo todo. Aqui no Brasil, a empresa possui 5,7 mil colaboradores em sua unidade local em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo – e entre eles, há um grupo de 77 colaboradores surdos, maioria dentre as 112 pessoas com deficiência (PcD) na empresa. 

Embora a representatividade seja pequena no universo total da companhia, desenvolver e alavancar a carreira desse grupo especial é um dos focos da Scania na área de gestão de pessoas. Segundo Sandra Leite, Gerente Executiva de Desenvolvimento Organizacional e Talentos da Scania, a maioria dos colaboradores surdos está em cargos operacionais e que é preciso investir em programas de aceleração para que alcancem cargos de liderança. “A deficiência não pode ser um limitador da cadeira que uma pessoa ocupa”, diz. 

Formada em ciência da computação, Sandra completou quatro décadas de trajetória na Scania. Ela iniciou sua carreira na área de tecnologia da informação e desenvolvimento de softwares em uma época em que a presença feminina era rara no setor. Teve oportunidade de morar na Suécia, sede da empresa, atuou com proteção de dados e, hoje, ocupa uma posição voltada ao recrutamento e desenvolvimento de talentos.

“Sempre gostei de trabalhar com pessoas e o fato de ter uma oportunidade onde se potencializa isso me incentivou a fazer a transição. Com os programas que coordeno hoje, influencio muito mais pessoas”, afirma. Leia a seguir os principais trechos da entrevista: 

Como a Scania Brasil trabalha a diversidade entre seus colaboradores?

Hoje, temos um programa global chamado Skill Capture, que prevê o recrutamento de grupos subrepresentados. Em 2020, na pandemia, conseguimos uma quebra de paradigma muito grande porque a Scania não tinha o hábito de definir indicadores, como, por exemplo, de mulheres em cargos de liderança. Mas em 2021, passamos a definir e o programa começou a virar. A cada ano, vamos ajustando conforme os números. Inicialmente, investimos na busca de novas contratações, fizemos a captação e parcerias fortes. Já conseguimos superar essa fase. Hoje, meu trabalho é mais focado em pensar em como eu desenvolvo essas pessoas. Meu processo de inclusão é forte, mas se eu não trabalhar o processo de desenvolvimento, esses colaboradores vão embora. 

Meu processo de inclusão é forte, mas se eu não trabalhar o processo de desenvolvimento, esses colaboradores vão embora. 

Dentre os 112 funcionários com deficiência, 77 são surdos. Por que este é o maior público? 

Os surdos são meu maior público porque temos uma parceria para preencher vagas com o programa Aprendiz do Senai,que possui uma iniciativa voltada para a formação deles. É uma aliança que nos permite contribuir e influenciar a grade curricular dos cursos. Por meio do Senai, conseguimos contratar pessoas para a produção e para a área de tecnologia. 

Que cargos eles ocupam? Qual o maior desafio em relação a eles?

A maioria está em cargos operacionais. Não tenho uma taxa alta de turnover, mas também não tenho taxa alta de evolução de carreira, o que para mim é uma vergonha. Será que é o melhor que estou fazendo para este grupo? Se o branco cresce, por que que o PcD não? Tivemos que revisitar os processos de recrutamento, porque se a pessoa não está bem naquele cargo é porque eu recrutei errado. A deficiência não pode ser um limitador da cadeira que ele ocupa, da atividade em si. Pode haver algumas dificuldades para o grupo que está ao redor com a comunicação, por exemplo. Mas a deficiência não pode ser um limitador de evolução de carreira, considerando a atividade que ele tem que entregar.

Quais os principais entraves para que estes funcionários evoluam na empresa?

Muitos não são oralizados e por isso não escrevem. Estamos procurando uma startup que dê aulas e ensine português para surdos – tínhamos uma plataforma parceira, mas fechou. À medida que o surdo passa a escrever bem, ele supera muitas barreiras. Em uma área administrativa, a comunicação é muito mais forte do que uma atividade manual. Quando o surdo não é oralizado, ele vai para operação e vai entregar o caminhão. Mas, em uma área como o RH, se ele não conseguir escrever devidamente, tem alguns riscos de comunicação.. A nossa amostra vem de classe social bem baixa, de uma realidade bem dura e não teve chance de se desenvolver. 

E como resolver esta questão?

Nos últimos dois anos, temos trabalhado com programas de aceleração de carreira e mentoria. Criamos um programa de aceleração para PcD, como se fosse um trainee para cargos mais operacionais. Em cada programa que eu tenho [para o público geral], eu tenho a diversidade. No programa de mentoria, a gente se emociona ao ouvir os relatos deles sobre como estão empoderados. Mas tem uma questão frequente: em muitos casos, a ambição deles fica limitada, porque já se tornaram referências em suas famílias por trabalharem em uma empresa multinacional como a Scania. Mesmo sem ter o melhor cargo, já é um status que satisfaz. Nosso desafio é mostrar que eles têm potencial para mais. Uma vez um PcD falou para mim: ‘eles olham a minha deficiência antes da minha competência’. Foi como levar um tapa na cara. Mas acredito que nos próximos anos teremos resultados positivos de ascensão e promoção de PcDs. 

Como vencer a barreira da comunicação com os líderes?

Temos um fornecedor que desenvolveu um software que é um aplicativo em que possibilita que, em horários pré-agendados, a pessoa que fala Libras entre em uma videoconferência, veja e converse com o surdo e vá traduzindo para o líder. Também posso acionar o intérprete para vir pessoalmente na fábrica. As startups estão desenvolvendo soluções de acessibilidade super interessantes e estamos de olho. Também tivemos a oportunidade de adaptar a sinalização interna e garantir acessibilidade. 

Além disso, subsidiamos cursos de Libras, com duração de um ano e meio, para qualquer funcionário que queira. Hoje, são mais de 100 pessoas fazendo. Na última formatura, tínhamos uns cinco líderes. Convidados os surdos para participar do evento e eles ficaram orgulhosos em ver os líderes interessados em aprender Libras. 

As adaptações e melhoria da empresa são feitas a partir da escuta e demanda desses profissionais. Mas como são estes momentos?

Criamos bootcamps duas vezes ao ano para ouvir esse público, é uma ação prevista na nossa governança. Nós os ouvimos e essas demandas vão influenciando o nosso programa estratégico do ano seguinte. Na última edição, fizemos uma dinâmica, trouxemos um teatro com atores surdos. 

É um momento de sensibilização e de captar as necessidades deles. Às vezes, recebemos reclamações de coisas muito pequenas, mas que para eles têm um valor agregado imenso. Mas a principal reivindicação tem a ver com o plano de carreira. Quando fui analisar os dados, vi que eles tinham total razão: havia funcionários que estavam há 10 anos em cargos básicos. 

Por fim, por que você acha importante investir em diversidade?

Se eu não for comprometida com a sociedade, com o meu ecossistema como um todo, eu não sou sustentável para o mundo. Essas pessoas são insumos da minha mão de obra amanhã:se eu não olhar para ela, terei problemas. 

O segundo ponto é que à medida que tenho pessoas diversas por perto, amplio o olhar. Aprendo muito nesses bootcamps e passo a ver coisas que não via, é um processo de evolução humana. O ser humano evolui, a empresa evolui. 

Para mim, o lucro é resultado disso tudo, do que a pessoa contribuiu diante da perspectiva dela e impactou o resultado da empresa. Mas acho que o meu compromisso maior é olhar para isso dentro do meu ecossistema e me responsabilizar pelo resultado da sociedade. Isso não é só papel do governo, é meu papel, das empresas e de todos nós.

Vanessa Fajardo é jornalista, com passagens pelas redações do portal G1 e Agora SP. Também faz contribuições para veículos como Estadão, BBC Brasil, UOL e Porvir.