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Como o Grupo Bemol criou uma cultura propícia à inteligência artificial

Com mais de 4 mil colaboradores e 34 lojas físicas na região Norte, varejista tem feito revolução digital dentro de casa; para diretor de RH, cultura de dados e segurança psicológica são pilares fundamentais de transformação

Bruno Capelas
3 de julho de 2025
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Uma das maiores varejistas do País, a despeito de ter uma operação restrita à região Norte, o Grupo Bemol tem feito uma revolução dentro de casa com ajuda da inteligência artificial. Com mais de 4 mil colaboradores, 34 lojas físicas e 5 centros de distribuição espalhados entre Amazonas, Rondônia, Roraima e Acre, além de uma conta digital, uma rede de farmácias e de mercados, a companhia aposta na IA para ser mais produtiva, fazendo “mais com o mesmo” – o termo é do diretor de RH Clayton Domingues, responsável por liderar não só a área de pessoas, mas também um comitê voltado para a tecnologia. 

“Nosso conceito não é falar em substituição, mas usar a IA para tornar os profissionais ainda melhores. É uma questão de segurança psicológica”, explica o executivo, prestes a completar 28 anos dentro da empresa, passando por áreas como loja, e-commerce, marketing e logística. 

Segundo Domingues, o trabalho não foi feito da noite para o dia: desde 2018, quando uma nova gestão chegou à liderança, a varejista tem trabalhado para criar uma cultura de dados, dando autonomia para cada área e colaborador. “Antes, se o RH ou marketing precisava de dados, eles mandavam um chamado para a tecnologia e ela enviava um relatório pronto alguns meses depois. Hoje, os times de marketing, de RH ou comercial produzem seus próprios dados – liberando o time de tecnologia para construir produtos”, conta. 

Mais do que apenas consumir dados, os times têm criado suas próprias ferramentas – e isso vale tanto para um sistema para pedir refeições a um fornecedor até plataformas parrudas como avaliação de performance e recrutamento. “O mais legal é que quem está fazendo essas soluções não é o time de tecnologia, mas é o RH, criando uma ferramenta da forma que ele deseja”, diz o executivo. 

Na entrevista a seguir, Clayton conta mais sobre como a IA tem transformado o dia a dia do Grupo Bemol, do trabalho de base feito há quase uma década até a visão para o futuro. Ele também faz um convite para os RHs se engajarem na transformação.

O movimento vai acontecer de uma forma ou de outra. Cabe ao RH entender e se tornar um aliado da estratégia. Acredito que tem espaço para todo mundo nesse mundo.

Clayton, você está há mais de 25 anos no Grupo Bemol. Como você foi parar no RH? 

Vou completar 28 anos de Bemol agora em setembro. Já passei por de tudo na empresa. Entrei como trainee para trabalhar em loja. Em 1999, a Bemol começou a falar em vendas online, e minha monografia de conclusão de curso foi sobre e-commerce. O presidente da época ficou sabendo e me convidou para assumir uma posição na Bemol Online, que hoje é a nossa maior loja, respondendo por 15% das vendas. Acabei convivendo com ele todos os dias, assumindo também um papel na área de marketing. Foi algo que eu nunca imaginei, até porque eu amava trabalhar em loja. Eles prometeram que iam me devolver para a loja, mas em 2003, acabaram me convidando para a gerência adjunta da área de logística. Fiquei 18 anos por lá, em uma rotina muito diferente. É uma área fascinante. A í, em 2018, o atual presidente, o Denis Minev, estava para assumir o cargo e me convidou para ser gestor de RH. Ele queria um RH focado em pessoas, mas que também fosse estratégico, capaz de traduzir a estratégia da empresa para as pessoas. Uma empresa de varejo é construída pelas pessoas. Desse convite, virei gerente de RH, depois superintendente de RH e estou há um mês como diretor de RH no Bemol. 

Como foi chegar ao RH já em uma posição de liderança? 

Foi um desafio grande. Coincidentemente, eu tinha feito em 2016 um MBA de Gestão de Pessoas, porque mesmo na logística eu já enxergava essa necessidade no mundo  do trabalho. Logística sempre foi uma área em que “manda quem pode e obedece quem tem juízo”, mas com a entrada das novas gerações eu vi algumas transformações acontecerem. O mundo do trabalho se transformou, as pessoas entendem seus direitos e têm necessidade de ter vida pessoal – e com isso percebemos a necessidade de mudar nosso perfil. A logística é a área mais complexa do varejo e fazer as pessoas entenderem o propósito da área é algo que ajuda muito. Independentemente disso, é claro que quando cheguei contei com muito apoio da equipe. Não é fácil mudar a chave da operação para a alta gestão. Mas essa transformação aconteceu de forma rápida – e hoje me considero um profissional de RH, sem dúvida. 

Como a Bemol começou a olhar para inteligência artificial? De onde veio a visão estratégica? 

Existe um passo anterior à visão para IA. Quando iniciamos a atual gestão, em 2018, uma das preocupações do nosso presidente era viver a era da gestão baseada em dados. Denis é uma pessoa baseada em dados e precisava que a organização acompanhasse isso. Uma das principais estratégias que ele trouxe foi justamente pedir ao RH para levar a empresa a entender e gerir dados, de forma que fosse possível tomar decisões mais rápidas. Isso ficou forte na cabeça da organização. O primeiro passo foi implementar programas de desenvolvimento das pessoas para manipulação de dados, seja no Excel, seja no aprendizado de uma linguagem como Python, seja em Power BI. Isso fez uma revolução na empresa. Antes, se o RH ou marketing precisava de dados, eles mandavam um chamado para a tecnologia e ela enviava um relatório pronto alguns meses depois. A estatística da época era que de cada 10 relatórios solicitados, só dois ou três eram usados. Mudamos esse processo: hoje, os times de marketing, de RH ou comercial produzem seus próprios dados – liberando o time de tecnologia para construir produtos. De repente, os meses viraram horas. Aí veio a pandemia, e tudo aquilo que a gente enxergava como necessidade se materializou. Esse avanço com dados nos apoiou muito nas decisões rápidas que precisávamos tomar, especialmente ao fechar as lojas. Na época, 70% das nossas vendas eram feitas com carnê, mas com as lojas fechadas não tínhamos nem como cobrar os carnês dos clientes. De uma hora pra outra, nós criamos canais de vendas como o WhatApp, criamos o e-commerce da Bemol Farma, turbinamos o nosso e-commerce – que na época representava apenas 5% das nossas vendas. E essa cultura de dados foi fundamental para a gente conseguir fazer isso. Até hoje, nós incentivamos essa cultura: temos uma rotina de treinamentos de Python e de Power BI, temos um data lake que é acessível para os colaboradores e enfatizamos a importância das áreas de negócios saberem lidar com os seus próprios dados. 

É um passo muito importante. Mas como a empresa se modifica quando a IA passa a se popularizar?

Quando veio a grande virada da IA, com a chegada do Chat GPT, nós já tínhamos uma boa base. Na época, nós começamos a montar um bot dentro de casa com as nossas informações. Quando a OpenAI lançou o GPT 4.0, percebemos que nosso bot parecia um brinquedo de criança. E aí percebemos que a estratégia deveria ser diferente: em vez de construir dentro de casa, o importante era treinar todos os colaboradores. Assinamos 600 licenças do ChatGPT, dentro de um plano business, e começamos a treinar os colaboradores – na loja, no escritório, nas mais diferentes áreas. Mais do que só usar, começamos a treinar a criação de assistentes. A Bemol chegou a ser o segundo maior usuário da Open AI no Brasil, só atrás do Itaú. Em dezembro de 2024, entendemos que era hora de nos mover para a era dos agentes, e a liderança montou um comitê, que hoje é liderado por mim. O racional era simples: quando a tecnologia chega nesse nível de utilização, ela deixa de ser um tema de TI e passa a ser um tema de cultura e de pessoas. Hoje temos dois encontros por semana só para falar de dados técnicos, temos um encontro por semana para mostrar projetos e diversos programas para incentivar o uso de IA. Nos últimos meses, premiamos com R$ 2 mil os 50 melhores projetos de IA criados pelos colaboradores. Começamos a fazer hackathons internos, às vezes com 15, 16, 18 projetos pensados em um fim de semana. Mas para isso funcionar, o grande diferencial da Bemol é a cultura anterior de dados – e que se tornou muito mais acessível com a inteligência artificial. A nossa produtividade disparou nos últimos tempos, mas isso vai seguir em frente no futuro porque temos um processo de treinamento contínuo, com programas, com fóruns, com incentivo a quem entra. É complexo, até assustador para quem olha de fora, mas é simples para quem está dentro da empresa. 

Antes da gente avançar em questões mais práticas, é importante entender um ponto: o Bemol é uma empresa de varejo, com uma operação de loja muito nervosa, cheia de complexidades. Como é treinar esse time de loja para lidar com inteligência artificial? 

É importante entender que a gente traz diferentes demandas para diferentes colaboradores. Não vou cobrar de um assistente de loja que ele me entregue um programa novo de AI. O que eu levo para ele são as soluções que o escritório ou outras áreas criaram para ele saber utilizar. Hoje temos um programa chamado IA para Todos, em que o RH treina as unidades com as ferramentas que já criamos. Um exemplo é o Bot do Vendedor, que reúne todas as informações que ele precisa – como estoque ou dados de um cliente, ou até mesmo uma sugestão de produtos. Se o cliente quer acampar, o bot é capaz de mostrar que equipamentos o vendedor pode sugerir para ele realizar essa tarefa. O Bot do Vendedor também tem treinamentos, seja no desktop ou no celular dele. Além disso, claro, nós buscamos incentivar a criatividade, permitindo que ele crie ferramentas simples para ajudá-lo no dia a dia. Um exemplo: nós temos lojas que vão de 20 funcionários a mais de 150. Nas lojas maiores, há cozinhas, com refeições, locais para as pessoas sentarem. Nas lojas menores, essa infraestrutura não está sempre disponível – e a solução de almoço é pedir refeição de um fornecedor. Em uma das nossas hackathons, sugerimos que os times das lojas criassem algo, mostrando que elas poderiam fazer parte daquela transformação. E um dos grupos criou um sistema para pedir almoço, com um front-end que permite que o restaurante envie o cardápio e facilita os pedidos de cada colaborador. O fornecedor recebe o relatório, manda a comida e depois de 30 dias, ele manda a fatura – e agora nós temos como cruzar essa fatura com os dados de um sistema próprio, que tem IA dentro de seu funcionamento. É o tipo de solução que o time de TI nunca criaria, porque não é prioridade, mas que ajuda o dia a dia da loja. E como essas, há milhares. Assim, o que nós cobramos dos times de loja e de centros de distribuição é que eles sejam bons usuários. Os gestores desses ambientes devem ser bons usuários e ser capazes de pedir ferramentas, entendendo as capacidades da tecnologia. E quem está no back office tem que aprender a criar, para ajudar as pessoas do front a serem mais produtivas.  

Em termos de grandes projetos, que mexem com a empresa inteira, o que vocês já fizeram? 

Existem aqui duas grandes frentes. Uma é a que impacta o cliente. Estamos revendo todo o nosso fluxo de contato com o cliente. Hoje, temos uma central de atendimento via 0800. E agora estamos migrando essa central para o WhatsApp, já que ele está na mão de todo mundo. Tem empresas que vendem esse serviço, mas que cobram seis dígitos de instalação e mais uma taxa de manutenção. Com IA, nosso time começou a criar isso dentro de casa – e sem precisar que o cliente digite. Nosso CEO falou: “todo mundo manda áudio, então tem que ser fácil de resolver via áudio”. E isso funciona: a IA faz o atendimento primário e caso seja necessário, um humano assume. Hoje, o WhatsApp já é nosso principal canal de contato – e nosso objetivo no futuro é deixar o telefone só para quem queira. Nós temos trabalhado de maneira geral em produtos. A outra frente é aquela que impacta o colaborador. Dentro de RH, por exemplo, nós tínhamos ferramentas de acompanhamento de performance, de criação de PDI, de feedback. Nós contratamos uma solução externa, mas num hackathon, uma das equipes entregou essa solução em três dias. Não vou entrar em méritos de valores, mas conseguimos criar dentro de casa uma solução customizada, que ouve a demanda do RH e do colaborador, incluindo coisas que a gente pedia para os fornecedores e eles não entregavam. Hoje, esse processo de avaliação de performance está implementado dentro de casa. Estamos fazendo o mesmo com treinamento e com recrutamento, com ajuda da IA. No treinamento, a IA ainda nos ajudou a desdobrar os conteúdos: hoje, temos versões em texto, áudio e vídeo, para que cada um aprenda da maneira que achar melhor. O mais legal é que quem está fazendo essas soluções não é o time de tecnologia, mas é o RH, criando uma ferramenta da forma que ele deseja. 

É muito interessante ver a autonomia que a empresa ganha com esse processo. Por outro lado, é preciso se precaver dos riscos – seja das alucinações da IA ou da dependência de um único fornecedor. Como vocês olham para isso? 

O primeiro ponto é lembrar que o ser humano valida qualquer tarefa que toque o cliente. Um humano não precisa checar a emissão de uma segunda via de nota fiscal. Mas se é preciso tomar uma decisão, o humano é quem valida – e isso faz parte da cultura da Bemol desde sempre. Nós nunca entregamos serviço final a terceiros: montagem, entrega, logística, tudo isso é por nossa conta. E levamos o mesmo conceito para a IA, até para evitar o risco das alucinações. O mesmo vale para o colaborador, pois nossos maiores patrimônios são clientes e colaboradores. Quanto à segurança, nós temos uma gestão extremamente rigorosa, até porque temos um banco dentro de casa, a Conta Bemol. E quanto à autonomia, nós hoje temos um assistente próprio, o Japiim, que combina diferentes LLMs – tem o ChatGPT, mas também tem Google e outras linguagens. E ele é usado por quase 8 mil usuários dentro da empresa. É uma IA nossa, controlada pela empresa, disponível para usar onde quiser – e até mesmo na vida pessoal. Se quiser uma história para o filho ou pedir uma receita de bolo, pode. Queremos que nosso colaborador saiba a usar IA na vida dele também. O nosso objetivo é que as pessoas entendam o quanto antes o potencial que a IA tem, para que possamos ser mais produtivos. 

Com IA, os ganhos de produtividade são evidentes. Mas um tema recorrente na conversa sobre IA é a substituição de colaboradores – e o risco psicológico que isso traz. Como vocês endereçam essa pauta? 

O nosso objetivo não é fazer mais com menos. É fazer mais com o mesmo. Nosso conceito não é falar em substituição, mas usar a IA para tornar os profissionais ainda melhores. É uma questão de segurança psicológica. Em todos os lugares que trabalhamos, deixamos claro para as pessoas que há inúmeras oportunidades na Bemol. Somos uma empresa que segue crescendo, se desenvolvendo, abrindo novas frentes – e precisando de muita gente. Eu tenho espaço para gente operacional, para gente técnica, para TI e para o RH. O IA para Todos, que eu mencionei antes, também faz um trabalho muito forte de inteligência emocional, de mostrar que há espaço para crescer. É algo que se complementa com a política da organização – hoje, por exemplo, temos salário diferenciado para quem está há mais de 10 anos conosco. Nós temos uma meta de dar 65% de promoções ou novas vagas terem de ser preenchidas por profissionais internos. Isso ajuda as pessoas a desenvolverem carreira e é uma forma de reconhecer o esforço. E isso dá segurança psicológica ao colaborador. Quando começamos com dados, confesso, muita gente se assustou. Mas quando veio a onda de IA, esse trabalho já estava consolidado. Sem isso, não teria dado certo, as pessoas teriam abandonado o barco há muito tempo.  

Leia também: ‘Uma IA não vai resolver o que um cafezinho de cinco minutos resolve’

Clayton, para fechar: que conselho você dá para o RH que se vê num momento de hesitação quanto à inteligência artificial? 

O primeiro é se mexer, estudar para entender e tirar o medo que todo mundo tem de um primeiro momento. Já ouvi grandes executivos dizerem que TI será o novo RH. Eu discordo veementemente: um CTO não quer ser gestor de RH. Mas ele quer um aliado para transformar a empresa dele – e o RH pode ser esse aliado. É o RH que vai difundir a informação na empresa e ajudar as pessoas a entenderem o movimento. O movimento vai acontecer de uma forma ou de outra. Cabe ao RH entender o movimento e se tornar um aliado da estratégia. Acredito que tem espaço para todo mundo nesse mundo. Tem muito chão pra correr e a gente tem que se movimentar, aprender e tirar o medo das pessoas. Esse é o verdadeiro papel do RH.

Bruno Capelas é jornalista. Foi repórter e editor de tecnologia do Estadão e líder de comunicação da firma de venture capital Canary. Também escreveu o livro 'Raios e Trovões – A História do Fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum'.

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