Programas de desenvolvimento interno de talentos estão em alta e movimentam o mercado de recursos humanos, além de promoverem a diversidade nos negócios
“Rótulos não me definem”: empresas começam a investir na contratação de profissionais neurodivergentes
Pessoas com condições variadas de funcionamento cognitivo podem tornar equipes mais produtivas, rentáveis e inovadoras, mas contratação demanda comprometimento de lideranças, treinamento e adaptação de processos, defendem especialistas
“Neurodiversidade é uma maneira de descrever que nossos cérebros são diferentes e, como qualquer ser humano, não serão bons em tudo”. Mais do que apenas uma explicação científica, a frase de Lawrence Fung, professor de psiquiatria e ciências do comportamento da Universidade Stanford, busca tirar um pouco o estigma em torno das pessoas neurodiversas – que podem ter condições variadas de funcionamento cognitivo ou distúrbios do desenvolvimento, como Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), dislexia, dispraxia e Transtorno do Espectro Autista (TEA). Na visão de Fung, assim como as pessoas têm alturas e cabelos diferentes, também podem ter mentes distintas – e como hoje já se sabe que diversidade é essencial para a inovação e para os resultados das empresas, a neurodiversidade é um assunto que precisa estar na pauta das organizações.
Uma pesquisa recente da consultoria McKinsey, por exemplo, apontou que a rentabilidade de equipes neurodiversas supera em 36% as de times homogêneos. Segundo o levantamento, há uma razão para isso: a convivência entre pessoas com diferentes maneiras de processamento neurobiológico potencializa a criatividade e a capacidade de resolução de conflitos nos times. Além disso, funcionários de companhias que apostam na neurodiversidade relatam níveis mais altos de colaboração e inovação, bem como uma probabilidade 152% maior de propor novas ideias e tentar formas diferentes de realizar as atividades. Outro estudo, publicado na prestigiada revista Harvard Business Review, aponta que times com esses profissionais são 30% mais produtivos.
Uma pesquisa recente da consultoria McKinsey apontou que a rentabilidade de equipes neurodiversas supera em 36% as de times homogêneos.
No exterior, uma lista de empresas pode comprovar esses benefícios. Um dos casos mais exemplares é o do banco americano JP Morgan: em 2015, a instituição criou o programa Autism at Work, um projeto-piloto com quatro funcionários, mas que saltou para mais de 150 pessoas em oito países em menos de seis meses. Os resultados foram surpreendentes: os funcionários dentro do espectro autista foram 48% mais rápidos e quase 92% mais produtivos do que os trabalhadores neurotípicos. Outro caso conhecido é o da Microsoft, que iniciou uma ação para contratar pessoas com TEA, TDAH e outras neurodivergências, e concluiu que, graças a eles, produtividade da organização melhorou.
Um passo atrás
No entanto, ainda há muito caminho pela frente para que essa pauta entre, de fato, na agenda de todas as companhias. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), apenas 20% das pessoas neurodivergentes estão empregadas. Não é o que acontece em La Casa Carlota, frente brasileira de um estúdio de design fundado na Espanha. A empresa reúne uma equipe de designers, ilustradores, artistas e criativos com síndrome de Down, autismo e outros quadros neurocognitivos, para criar soluções mais inovadoras para clientes como Meta, Itaú, Google e Danone.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), apenas 20% das pessoas neurodivergentes estão empregadas.
Na visão de Marina Cusnir, diretora de novos negócios da La Casa Carlota, as empresas têm investido cada vez mais na diversidade de modo geral, mas ao olhar o mercado com atenção, percebe-se uma hierarquia de grupos sendo olhados em primeiro lugar. “Todas as lutas são importantes e legítimas, porém, vemos mais ações em algumas categorias. Os PCDs, por exemplo, estão no final da lista, assim como os neurodivergentes”, afirma. De acordo com ela, é essencial ampliar o olhar da diversidade. Sua empresa, além de prestar consultoria sobre o tema, tem como foco reinventar a visão estabelecida de criatividade e diversidade no mercado.
Engajamento da liderança
Para Cusnir, é importante que essa contratação faça parte da estratégia e da cultura da empresa, não sendo apenas uma iniciativa apenas para cumprimento de cotas. Nesse sentido, o papel do RH é crucial para encaminhar o tema e cuidar da marca empregadora. A executiva reforça, porém, que apenas a iniciativa do setor em iniciar um programa de contratação de neurodivergentes não basta: é necessário que a estratégia seja genuína e endossada pelo CEO e pela alta liderança. “Sozinho não se faz nada. É importante conscientizar toda a empresa do valor da ação e atuar em conjunto com as lideranças”, diz ela, lembrando que, sem compromisso da alta gestão, uma contratação não se reverterá em inclusão efetiva.
“Todas as lutas são importantes e legítimas, porém, vemos mais ações em algumas categorias. Os PCDs, por exemplo, estão no final da lista, assim como os neurodivergentes”.
Na SAP, contratar neurodivergentes é um compromisso público da companhia. O presidente Christian Klein diz que os funcionários no espectro do autismo contribuem significativamente para pedidos de patentes e inovações em todo o portfólio de produtos da organização. A fim de quebrar estereótipos e estimular com que mais negócios contratem esses profissionais, a empresa de tecnologia aderiu ao programa Autism at Work em 2013 e, mais recentemente, criou a iniciativa global Autism Inclusion Pledge. “Queremos encorajar mais organizações a contratar com base nos pontos fortes e conjuntos de habilidades únicos que cada indivíduo oferece”, diz Klein no vídeo de abertura do site da iniciativa.
Hoje, profissionais com transtorno do espectro autista trabalham em mais de 20 áreas da companhia, como TI, marketing e finanças. De acordo com Eliane De Mitry, gerente de RH da SAP e responsável pelo programa no Brasil, a SAP tem 51 autistas em sua equipe local. Para a executiva, porém, o foco não está nos números, mas sim em trazer visões múltiplas. “Acreditamos que essas pessoas têm um funcionamento mental diferente que traz ganhos valiosos”, diz.
Para potencializar a inclusão, a aposta é contratar muitos profissionais neurodivergentes em início de carreira ou para estágio. “Sabemos que o ingresso ao mercado de trabalho é um desafio para essas pessoas e queremos ser essa ponte, essa oportunidade”, afirma De Mitry. A estratégia, inclusive, colabora para a retenção desses profissionais. “A maioria fica na empresa por muito tempo e nosso objetivo é ajudá-los a transpor barreiras, mudar de cargos, apresentar novos desafios”, complementa a executiva.
Além de treinamentos, adaptação de espaços e mentorias, o sucesso da empreitada da SAP também se deve a uma parceria com uma ONG especializada no tema, que já capacitou 350 neurodivergentes no Brasil, empregando 300 deles em grandes empresas. “Eles nos ajudam em todos os processos. Além disso, somos parceiros na missão de auxiliar mais companhias nessa jornada”, diz a gerente de RH da SAP Brasil.
Educação como base
De forma acadêmica, a neurodiversidade refere-se à diversidade natural do funcionamento do cérebro humano. No entanto, muitas vezes essa diferença é vista como um obstáculo no ambiente de trabalho, levando à discriminação e à exclusão de profissionais com essas condições. Por isso, é fundamental ressignificar os preconceitos existentes, como ressalta Maithê Paris, líder em diversidade, equidade e inclusão e responsabilidade corporativa da consultoria EY para América do Sul. Isso vale tanto para preparar o ambiente e ajustar comunicação, quanto para capacitar líderes e pares, e mapear atividades. “Só assim é possível trabalhar as habilidades e perspectivas únicas dessas pessoas”, afirma.
Ainda existe, por exemplo, o pensamento de que as pessoas neurodivergentes estão qualificadas somente para realizar tarefas de subordinação ou muito especializadas, mas essa descrição não corresponde necessariamente à realidade. “Fala-se muito dos déficits desses profissionais, mas as empresas precisam começar a mudar esse olhar e analisar as competências”, diz Rute Rodrigues, diretora de operação da Specialisterne, organização social que atua na inclusão de pessoas com autismo e outros diagnósticos na neurodiversidade. Segundo ela, quem tem autismo, por exemplo, pode ser menos sociável, mas é atento aos detalhes, tem um raciocínio mais lógico, habilidade visual aguçada e poder de concentração.
A neurodiversidade refere-se à diversidade natural do funcionamento do cérebro humano. No entanto, muitas vezes essa diferença é vista como um obstáculo no ambiente de trabalho, levando à discriminação e à exclusão de profissionais com essas condições.
Outro ponto importante sobre a neurodiversidade é o fato de que muitos distúrbios podem passar despercebidos ou não diagnosticados durante muito tempo. A Leroy Merlin, por exemplo, criou o Projeto Diamante, que além de ter o objetivo de contratar profissionais neurodiversos, busca sensibilizar e educar sobre o tema, – cerca de 750 pessoas da área administrativa já receberam algum tipo de treinamento no assunto, o que ajudou no reconhecimento de alguns funcionários para buscarem teste ou diagnóstico.
No que diz respeito à retenção, a varejista ressalta que o acompanhamento de uma empresa especializada durante o primeiro ano de trabalho do profissional é fundamental para o sucesso do projeto porque garante a criação de um ambiente de trabalho verdadeiramente inclusivo.
“Oferecer suporte contínuo, sensibilização e apoio psicológico para todos os envolvidos , conforme necessário, pode contribuir para a retenção e inclusão bem-sucedida desses profissionais”, diz Andressa Borba, diretora de diversidade e inclusão da Leroy Merlin Brasil. Além disso, a empresa tem 92 colaboradores no grupo de suporte Neurodiversidade Leroy Merlin Brasil, que oferece um espaço de compartilhamento de experiências e apoio mútuo – no coletivo, o foco está em colaboradores que são pais e mães de autistas.
Olhar atento às demandas
Contratar pessoas neurodiversas não é uma tarefa corriqueira – e precisa ser um processo adaptado às necessidades desses profissionais. A atração bem-sucedida, muitas vezes, exige a adaptação do processo seletivo para acomodar necessidades específicas, como entrevistas estruturadas e ambientes mais tranquilos para realização dos processos. É importante também garantir o letramento das equipes envolvidas no processo de seleção para quebrar vieses inconscientes que possam prejudicar a avaliação do candidato, como não olhar nos olhos do entrevistador.
Maithê Paris, da EY, também enfatiza a importância de contar com uma rede. Foi o trabalho colaborativo entre a empresa, uma consultoria especializada, as lideranças, conselheiros e times que garantiram o sucesso do programa Atypical, que teve retenção de 95% das pessoas neurodiversas inicialmente contratadas. A ação foi iniciada com o letramento e sensibilização da liderança para mostrar o funcionamento da pessoa neurodiversa, principais características e como apoiar a inclusão. “Durante o processo de seleção, o time de recrutamento e a liderança tiveram o suporte da consultoria para as entrevistas, com orientações sobre a comunicação com o candidato”, explica.
A atração bem-sucedida, muitas vezes, exige a adaptação do processo seletivo para acomodar necessidades específicas, como entrevistas estruturadas e ambientes mais tranquilos para realização dos processos.
Após a contratação, são estabelecidas sessões individuais mensais com gestores e profissionais neurodivergentes para avaliar os resultados e identificar pontos de melhoria. “O objetivo é que o profissional desenvolva autonomia e independência de trabalho e que todo seu potencial seja estimulado e explorado da melhor forma”, complementa a executiva da EY. Não se trata de um trabalho simples, nem rápido – mas possível. O ponto central para o sucesso está em ter os pilares e etapas bem alinhados e uma cultura voltada à diversidade de todas as pessoas, independentemente de qualquer característica.
”Da mesma forma que as empresas olham a sustentabilidade além de um projeto isolado, a inclusão de neurodivergentes deve ser um trabalho constante e feito de ponta a ponta”, explica Patrícia Cardoso Santos, fundadora da Ye, consultoria voltada para projetos de impacto social com foco na inclusão de pessoas com deficiência. “Ou seja: as empresas precisam ir da contratação e preparação do ambiente e das equipes, ao desenvolvimento e acompanhando, com métricas e avaliações, do profissional”, complementa a especialista. Sem esses esforços, a inclusão para na seleção, ou até mesmo antes de começar.
4 passos para a inclusão de profissionais neurodivergentes
1. Estabeleça uma rotina de educação
Antes de iniciar o processo de contratação, é fundamental estudar o tema. Segundo Cardoso Santos, da Ye, isso inclui entender os tipos de transtornos, como se manifestam, seus níveis e principais características, incluindo fortalezas e dificuldades. Ela sugere perguntas que podem nortear esse processo: “que demandas esse profissional pode apresentar e como trabalhá-las internamente para que o ambiente seja acessível e seguro?” “Como deve ser a comunicação?” “Quais áreas e atividades são melhores?” “Como deve ser o processo de recrutamento e a recepção?”
2. Prepare os líderes
Além das capacitações sobre o tema, o RH deve analisar as demandas específicas da liderança para atuar nos processos do dia a dia, explica Rute Rodrigues, diretora de operação da organização social Specialisterne. “Alguns podem precisar de treinamentos ligados a questões comportamentais, como empatia, melhor forma de oferecer feedback e realizar as avaliações de desempenho, e escuta ativa para identificar boas ações de desenvolvimento de carreira”, diz. Segundo ela, o recomendado é entender a realidade de cada gestor.
3. Não estipule um padrão de comportamento
É importante ter em mente que ninguém é igual – e cada pessoa terá cognição, funções psicológicas e emoções diferentes. De maneira geral, sabemos que uma pessoa no espectro autista tende a não ficar tão confortável em ambientes que exijam maior socialização, mas generalizar esse comportamento não é adequado – dado que isso depende do grau de autismo, da criação e das experiências da pessoa. “A recomendação é fugir de generalismos e ter um olhar mais individualizado”, diz Patrícia, da Ye.
4. Analise se é preciso adaptar alguma ação
Mapeie as práticas da empresa para entender se ajustes são necessários. Nos processos seletivos, dinâmicas de grupo podem ser complicadas para quem tem espectro autista, afastando um bom profissional que não é tão sociável. Depois da contratação, é importante avaliar processos como as avaliações de desempenho, para que aspectos como dificuldade de socialização não sejam vistos como falta de colaboração com a equipe. Segundo Patrícia, da Ye, o importante é criar um diálogo com os profissionais e manter o foco na pessoa.
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