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Por uma tecnologia mais humana: um papo com Daniel Knopfholz, do Grupo Boticário

Formado em Comunicação e com experiências de negócios, executivo fez migração de área e hoje comanda RH de uma das maiores empresas do país; no papo, ele conta sobre sua trajetória e mostra como tecnologia e pessoas podem se influenciar mutuamente

Bruno Capelas
24 de maio de 2023
s mais tecnológicas”, diz Daniel Knopfholz, VP de Pessoas e Tecnologia do Grupo Boticário
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Cada vez mais se fala sobre a importância do RH ser tecnológico – e das áreas de tecnologia serem mais humanas, atentas às pessoas. Mas o que aconteceria se as duas áreas estivessem lado a lado em uma empresa? Vice-presidente de pessoas e tecnologia do Grupo Boticário, Daniel Knopfholz está respondendo a essa pergunta todos os dias desde setembro de 2022. Para ele, a resposta da questão ainda está em aberto, mas passa justamente pela flexibilidade e pela humanidade. 

“Ainda estamos construindo nossa visão, mas há dois olhares sobre a centralidade do RH. Um coloca o colaborador no centro. O outro coloca nosso cliente no centro do RH. É o consumidor que gira a nossa roda, e por isso o RH tem que entender de indicadores de negócios e se preocupar com vendas. Não é que o RH tem que mudar a área de vendas, mas tem que entender porque um colaborador dessa área tem uma atitude ou necessidade específica”, diz Knopfholz, que é formado em Jornalismo e percorreu uma longa trajetória pelo mundo dos negócios até desembocar na área de gente e gestão. 

Na entrevista a seguir, ele conta mais sobre essa trajetória, explica como o RH pode ajudar a área de tecnologia e vice-versa, e ainda explica porque não gosta muito do nome “recursos humanos”. “Recursos humanos é um nome ruim, porque trata pessoas como um ativo, enquanto deveria tratar como se fosse um capital. As pessoas são um valor, não um recurso – o recurso se esgota, enquanto o capital gira”, diz o executivo. Com a palavra, Daniel Knopfholz. 

Você lidera a área de tecnologia e de pessoas do Grupo Boticário, mas é formado em Comunicação. Como é que você foi trabalhar na área de tecnologia? 

É verdade, sou formado em Jornalismo pela UFPR. Antes da faculdade, em 1994, quando tinha 14 anos, eu já trabalhava fazendo sites de internet. Eu sabia programar HTML, bem no começo da internet comercial no Brasil, e fazia esse serviço. Não quis fazer informática porque naquela época os cursos eram muito focados em infraestrutura, não em desenvolvimento, então fui fazer Jornalismo – eu gostava de ler e escrever, achei que fazia sentido.

Na faculdade, descobri que não era nada daquilo, mas minha mãe não me deixou largar o curso. Terminei e decidi tentar fazer todos os trainees possíveis, e em Curitiba o Grupo Boticário sempre foi uma referência. Consegui um estágio lá e cuidava da comunicação interna, fiz a intranet, colocava o meu do refeitório. A partir disso, comecei a entrar em negócios, sempre fui muito curioso, comecei a participar dos projetos e acabei sendo convidado para trabalhar na área comercial da América Latina. Foi aí que entendi que eu gostava de negócios: falar com clientes, ver a loja funcionando e ver o consumidor se comportando dentro da loja. Daí, fiz pós-graduação em Administração e busquei outras oportunidades dentro e fora da empresa. Acabei indo para uma consultoria para buscar uma bagagem que faltou na faculdade, fiquei ali quatro anos e fiz muitos projetos – e em vários deles eu me questionava como seria implementar aquelas idéias no Boticário.

Em 2008, acabaram me chamando para voltar para a empresa e, depois de algumas mudanças, acabei virando country manager de Portugal. Ali, aprendi de tudo: financeiro, estatutário, marketing, contabilidade, tudo em meio à crise europeia… foi uma loucura. Então, ao voltar de Portugal, em 2014, eu assumi o comando da Eudora, uma empresa que foi um investimento orgânico do Grupo. Era o momento que a empresa precisava repensar seu caminho, acelerar e crescer, já numa segunda fase. Fiquei cinco anos ali, e conto isso porque foi a Eudora que me levou para a área de tecnologia. 

Uma experiência interessante, sem dúvida. Mas da Eudora, como você foi parar no RH? 

Vamos lá: a Eudora era uma marca pequena do Boticário, trabalhando em um mercado difícil, que era o de venda direta. É um canal que sempre cresce, mas tem vários competidores e também é desafiado pela digitalização. Tentamos nosso espaço no mercado de vários jeitos e percebemos que, mais do que falar com o consumidor, precisávamos falar com a revendedora, que muitas vezes já vendia produtos de outras marcas. Para ela, era trabalhoso ter mais uma caixa para pedir, um livro pra carregar, uma conta para ajustar. Como a gente se tornava relevante para ela? A única solução era digitalizar: fazer uma experiência online incrível, que pudesse ser escalada – permitindo, por exemplo, que a revendedora encomendasse produtos imediatamente, assim que fizesse o cadastro digital. De repente, a base de revendedoras explodiu, porque era fácil revender Eudora. E se desse para fazer a compra online? E treinamentos online? Fomos digitalizando várias tarefas, economizando o tempo da revendedora. Isso chamou a atenção do Grupo, que entendeu que a área de tecnologia precisava mudar de perfil, saindo de TI e tendo mais perfil de business. Foi aí que eu fui chamado para ir para tecnologia, implementando esse modelo de trabalho, e foi isso que me levou a liderar também a área de gente. 

Quando você foi anunciado como diretor das duas áreas, teve muita gente que ficou sem entender o porquê do Grupo Boticário unir essa liderança. Como você explica essa junção? 

Existem processos criados por empresas de tecnologia e startups que fazem muito sentido em grandes empresas. Claro: a área de tecnologia precisa de bons desenvolvedores, bom produto, ter um bom stack, fazer desenvolvimento contínuo, tem uma série de tarefas técnicas. Mas por trás disso há um modelo de gestão de pessoas e de organizações que foi acelerado e otimizado pelas empresas de tecnologia. Quando esse modelo é implementado em grandes empresas, ele é muito potente. Porém, se esse modelo fica restrito ao time de tecnologia, a empresa fica confusa – tem gente trabalhando em squad e gente em projetos, com incentivos e remunerações diferentes… é uma prática que cria silos e isso é ruim. Em um tuíte, dá pra dizer também que a tecnologia precisa ser mais humana, entregando resultados e resolvendo problemas de verdade. É uma junção dupla: queremos uma tecnologia mais humana e que as pessoas sejam mais tecnológicas. Hoje, temos 400 engenheiros e cientistas de dados no grupo. No futuro, queremos que essa competência esteja difundida pela organização, para que cada pessoa entre na sua base de dados, pegue o SQL e faça sua análise, sem precisar solicitar isso para a área de dados. É o que estamos tentando construir por meio do RH, e isso exige um trabalho coletivo na organização como um todo, mudando incentivos, recompensas, treinamento, desenvolvimento de competências, recrutamento… é esse o motivo da junção. 

Em um tuíte, dá pra dizer também que a tecnologia precisa ser mais humana, entregando resultados e resolvendo problemas de verdade. É uma junção dupla: queremos uma tecnologia mais humana e que as pessoas sejam mais tecnológicas.

Tecnologia tem um problema de gente, de guerra de talentos, que é algo que RH pode ajudar bastante. Mas é besteira pensar que o RH se resume a recrutamento e seleção. Como a área de tecnologia melhora tendo o RH do lado? 

Nosso primeiro olhar é mais sobre como a tecnologia contribui com o RH e, portanto, com a empresa inteira. É linear: a tecnologia contribui para todo mundo, mas com o RH, a gente institucionaliza isso. Mas há questões importantes desse ponto de vista, como você disse: há dois anos, tínhamos 200 pessoas em tecnologia. Hoje são 2,3 mil pessoas. Contratamos muita gente, mas também adquirimos empresas que fazem parte do nosso time. São pessoas que vivem e respiram a cultura do grupo, mas numa equipe que cresce rápido, é difícil ter uma visão profunda não só do mercado, mas da beleza e da cosmética – algo vital numa empresa que é tão baseada em produtos físicos, lojas, coisas sensoriais. O RH pode ajudar a trazer essa visão, com os 45 anos de história que o Grupo tem. Um exemplo disso? Existe uma experiência dentro do Grupo que é a de chamar as pessoas para uma visita na fábrica, que na parte final tem a confecção de um perfume. Um perfume é composto por notas de fundo, de corpo e de saída, são três grandes componentes, para explicar de forma rápida. Nessa visita, você pode sentir as cerca de 50 fragrâncias disponíveis e escolher a sua alquimia, produzindo um cheiro só seu. Fiz essa visita com a alta liderança de tecnologia e eles pareciam crianças, porque não tinham tido essa experiência ainda. Eles estavam na empresa trabalhando muito, fazendo acontecer, criando produtos digitais, mas não tinham entendido aquilo ainda de maneira profunda. Quando fizeram a vista, ficaram impressionadas, e isso no fim do dia é aprofundar a cultura. 

Constantemente, o RH passa por revoluções. Ele já foi muito transacional, muito regulador, focado em processos fechados. Hoje, se fala muito sobre colocar o colaborador no centro, da mesma forma que se faz com a ideia de colocar o usuário no centro do processo. Como a tecnologia consegue influenciar o RH nessa ideia? 

Ainda estamos construindo nossa visão do RH, mas vejo que há dois olhares sobre a centralidade do RH. Tem um olhar que parece óbvio e é difícil de fazer, que é colocar o colaborador no centro. E tem outro olhar que é colocar nosso cliente – o consumidor – no centro do RH também. No final das contas, o que é importante para nós é que todo mundo que faz parte do RH entenda que é o consumidor que gira a nossa roda, remunerando o que a gente faz. A roda gira quando alguém entra na loja ou compra pelo catálogo – e por isso é que o RH tem que entender indicadores de negócios e se preocupar com vendas. Não é que o RH tenha capacidade de mudar vendas, mas ele tem que entender porque um colaborador tem uma atitude ou uma necessidade específica, que outra pessoa não tem. Ao entender isso, você não homogeniza o negócio, você flexibiliza fazendo do jeito certo, seguindo compliance e ética. Não é como se o colaborador fosse um cliente, mas sim o colaborador atendendo o cliente como parte da cadeia. Aí, sim, se cria uma jornada para o colaborador no centro, com as melhores ferramentas, o melhor ambiente e a melhor forma de trabalhar. 

Como essa visão poderia se dar na prática, Daniel? 

Ainda estamos construindo, mas vou te dar um exemplo: quem passa tempo em campo precisa ter menos burocracia do que quem trabalha no escritório. Pensa em como funciona, por exemplo, reembolso de nota fiscal. Para quem trabalha no escritório e viaja uma vez por mês, mas de vez em quando fazer uma reunião fora, preencher formulário para ter reembolso de estacionamento é tranquilo, dá para tirar cinco ou dez minutos para fazer isso. Mas e para quem passa o dia todo na rua visitando loja, das 7h às 19h, ainda vai ter que abrir o computador e colocar todos os registros de estacionamento e alimentação? Isso consome a energia da pessoa. Acredito que dá para ter tratamentos diferentes, com flexibilização, sem perder o compliance. Perceba que não estamos olhando o colaborador como cliente, mas sim as necessidade dele para fazer seu trabalho bem. Esse é o norte: se as pessoas estão no seu melhor, sabendo da sua competência e no lugar para exercê-la bem, em um bom ambiente, com segurança e ferramentas adequadas, essas pessoas são mais felizes e produzem mais. E isso faz muito sentido numa empresa tão diversa como o Grupo Boticário, que tem fábrica, varejo, franqueado, loja própria, venda direta, e-commerce, empresa parceira… O que eu quero dizer é que não existe uma solução homogênea para todos, mas os valores, os princípios e as regras tem que ser iguais para todo mundo, e a tecnologia pode ajudar o RH nisso. 

Discute-se muito hoje que o RH tem de ser menos braçal e mais consultivo, mais estratégico. Tecnologia é uma aliada nessa tarefa. Existe já uma visão disso na sua gestão? 

No jargão corporativo, a gente chama isso de employee value management, ou seja, gerenciamento do valor do colaborador. Faz sentido: pensando na origem do nome, nossa área tem de deixar de ser de recursos humanos. Recursos humanos é um nome ruim, porque trata pessoas como um ativo, enquanto deveria tratar como se fosse um capital. As pessoas são um valor, não um recurso – o recurso se esgota, enquanto o capital gira. O nome deveria ser gestão de capital humano, porque você tem gente com potencial e valor para entregar, e a área ajuda as pessoas a entregarem seu valor. É ainda um olhar financista sobre as pessoas, mas capital é algo sustentável. Pode ser um jogo de palavras, mas muda o ponto de vista, na prática: se você entende isso, você entende o que eu disse sobre facilitar a vida da pessoa que está no campo. Não é uma questão de mudar regras, mas de facilitar a vida delas – e boa parte de como se pode facilitar a vida das pessoas é gerando soluções tecnológicas. Exemplo, de novo: o gestor que quer abrir uma vaga não deveria abrir a vaga por meio do business partner, ele deveria entrar no sistema e abrir a vaga ele mesmo. Afinal de contas, se tem orçamento, porque é preciso abrir um formulário, preencher e brifar alguém? Acredito muito em produtizar o RH, seja com produtos de tecnologia ou de gestão, dando ferramentas em que o RH dá as regras de uso, mas os gestores poderão usar com autonomia, sem ferir a visão da empresa. É uma experiência que estamos fazendo dentro de casa, levando os engenheiros para os times: hoje, o time que faz produtos de pessoas saiu da área de tecnologia e está no RH. Resolvi experimentar sozinho antes de avançar com a organização, mas se der certo, é uma visão para a organização toda. 

Acredito muito em produtizar o RH, seja com produtos de tecnologia ou de gestão, dando ferramentas em que o RH dá as regras de uso, mas os gestores poderão usar com autonomia, sem ferir a visão da empresa.

O trabalho que você está fazendo envolve uma construção enorme. Daqui a dois ou três anos, que história de reconstrução do RH você vai poder contar? 

Se você olhar a história do Boticário, vai perceber que buscamos liderança, deixando de olhar o benchmark e criando o nosso próprio benchmark. Fizemos isso em produto, com maquiagem, por exemplo, em uma solução que é referência de mercado. Em comunicação, a mesma coisa: hoje colocamos conversas e discursos na mídia, e viramos líderes disso. Tecnologia também. Agora, queremos que o RH crie um modelo Grupo Boticário de gestão de pessoas. Vamos criar o nosso jeito, que não vai funcionar para todas as empresas, mas vai funcionar para nós. Talvez a gente possa ajudar outras empresas, mas queremos principalmente que esse modelo esteja adequado á nossa cultura em desenvolvimento.

Bruno Capelas é jornalista. Foi repórter e editor de tecnologia do Estadão e líder de comunicação da firma de venture capital Canary. Também escreveu o livro 'Raios e Trovões – A História do Fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum'.