Busque por temas

Em alta

“A transformação e a inovação vêm da capacidade de construir uma cultura forte”, diz Mafoane Odara, da Zamp

Psicóloga e com longa trajetória em direitos humanos, além de passagens por Meta e Instituto Avon, executiva-ativista fala sobre os planos para assumir a recém-criada diretoria de Pessoas, Cultura e Transformação da companhia de varejo

Vinicius Torresan
1 de fevereiro de 2024
Leia emminutos
Voltar ao topo

“Gosto de dizer que sou uma ativista porque, para mim, os ativistas são as pessoas que colocam a esperança em movimento”. É com essa visão de mundo que a executiva Mafoane Odara acaba de assumir a recém-criada diretoria de Pessoas, Cultura e Transformação da Zamp, grupo que controla franquias das redes Burger King e Popeye’s pelo Brasil. Com passagens pelo Instituto Avon e pela Meta, Mafoane chega ao cargo com o desafio de tornar a Zamp “uma das melhores empresas para se trabalhar”, como ela mesma diz. 

Filha de ativistas de Direitos Humanos, Mafoane explica que sua ligação com o cuidado das pessoas começou entre a infância e a adolescência, quando viveu em Angola, durante a guerra civil que assolou o país. “Quando você mora num país em guerra, você desenvolve a capacidade de colaboração e de cooperação de uma forma intensa e absolutamente necessária”, explica a executiva. 

Gosto de dizer que sou uma ativista porque, para mim, os ativistas são as pessoas que colocam a esperança em movimento.

Formada em Psicologia, Mafoane relembra sua trajetória pessoal e profissional nessa entrevista para Cajuína, além de revelar os pilares e desafios que vão guiar sua trajetória na Zamp. Para ela, a área de Recursos Humanos tem sempre de ser considerada pilar estratégico do negócio, sendo responsável por garantir uma cultura de engajamento e um espaço seguro e humano para as pessoas atingirem suas melhores versões. A seguir, os principais trechos da entrevista. 

Mafoane, você é formada em Psicologia. Como chegou à área de Gestão de Pessoas? 

Minha história com a Psicologia e com o cuidado com as pessoas se deu de maneira muito diferente. Venho de uma família de ativistas em Direitos Humanos e desde cedo aprendi que cada um de nós tem uma responsabilidade indelegável de melhorar o mundo. Quando eu tinha dois anos de idade, meu pai foi convidado por uma missão da ONU para construir escolas, durante a guerra civil em Angola. Quando você mora num país em guerra, você desenvolve a capacidade de colaboração e de cooperação de uma forma intensa e absolutamente necessária. Ninguém sobrevive sozinho numa guerra. Ter vivido quatro anos nessa realidade formatou quem sou e minha visão de mundo. 

Gosto de dizer que sou uma ativista porque, para mim, os ativistas são as pessoas que colocam a esperança em movimento – e sempre digo que venho de uma família que escolhe todos os dias colocar a esperança em movimento. Já aos 10 anos de idade, comecei a olhar conscientemente para os temas que achava importantes. E minha trajetória derivou do que eu considero que são os grandes pilares de atuação da minha vida. 

Que pilares são esses?

O primeiro é o enfrentamento da violência contra mulheres e meninas. O segundo é a maternidade: entre ser mãe e ser executiva, escolhi as duas coisas. Sei que faço parte dos 6% de mães brasileiras que podem viver plenamente sua vida pessoal e profissional. Por ter uma série de condições que me possibilitaram viver isso plenamente, me sinto na responsabilidade de segurar a porta para que outras mães possam entrar e viver relacionamentos saudáveis com o seu trabalho e sua maternidade ao mesmo tempo.

O terceiro pilar veio com a Psicologia. Desde cedo, sou uma pessoa que gosta de fazer perguntas – e a Psicologia é a ciência de fazer as perguntas certas para que as pessoas encontrem suas respostas. Para mim, o mundo da modernidade pode ser resumido em uma palavra: complexidade. E a complexidade exige que você tenha muito mais possibilidades do que soluções. Não é sobre ter as melhores respostas, mas sim as melhores perguntas, porque você vai construir soluções cada vez mais criativas por conta das perguntas que faz. E a solução que funciona hoje não necessariamente funcionará amanhã – e vimos a pandemia mostrando isso nos últimos anos. 

E o quarto pilar da minha atuação é o seguinte: no Brasil, estando dentro de grandes corporações, nossa responsabilidade é gerar uma performance cada vez melhor, para que exista geração de riqueza e o desenvolvimento econômico do Brasil aconteça. Mas isso não pode ser de qualquer jeito e a qualquer custo. Hoje, a agenda das empresas já relaciona a performance com progresso. São duas vertentes, que hoje chamamos de ESG, que têm a ver com nossa capacidade de organização, de entender que se precisa das empresas e do serviço público.

Não é possível achar que, como empresa, não nos relacionamos com o desenvolvimento do nosso lugar.

Minha atuação passa ainda por pensar melhor as políticas públicas e buscar as melhores condições para as pessoas. Não adianta nada eu dizer que o trabalho vai ser híbrido se meu colaborador leva duas horas e meia para sair de casa até o trabalho. São cinco horas em transporte e mais oito em trabalho. Sobram nove horas no dia, para fazer o quê? Dormir é a única coisa que sobra, sem tempo para filhos ou família. Não é possível achar que, como empresa, não nos relacionamos com o desenvolvimento do nosso lugar. E é por isso que preciso olhar para políticas públicas, buscando garantir moradia, espaço de trabalho, transporte e saúde para nossos colaboradores. 

Antes da Zamp, você passou por Instituto Avon e Meta, mas nem sempre esteve num cargo de Gestão de Pessoas. Como foi a transição oficial para a área? 

Fui contratada como Líder de Recursos Humanos para América Latina pela Meta pelas minhas capacidades e foi assim que eu fui parar no RH. A grande matéria-prima da Meta são as pessoas, responsáveis por tornar significativa uma experiência digital. E essa experiência de conectividade exige que as pessoas que estão na área de Recursos Humanos sejam construtoras de pontes, olhando para os colaboradores e desenvolvendo seus potenciais.

Se o que a gente faz é com pessoas, para pessoas e por pessoas, como as pessoas não estão no centro dos nossos negócios?

Quando comecei na Psicologia, achei que psicologia organizacional não tinha nada a ver comigo. E olha só: aos 43 anos, ao entrar na Meta, faço uma transição completa de carreira, assumo uma posição na América Latina e vou para a área da tecnologia. Além disso, saio de uma atuação no investimento social privado para um olhar focado nas questões de cultura, transformação, desenvolvimento e empoderamento de lideranças. Hoje, quando trabalho com jovens, ouço muito uma pergunta: “o que eu preciso fazer para ter sucesso na vida?” E eu devolvo: “o que você ama fazer? O que você faz muito bem?” Isso é o que vai te ajudar a chegar onde você gostaria de estar. 

Sou uma pessoa que cuida, gerencia e gosta de pessoas desde sempre. Entrei no mundo corporativo porque sempre me incomodou a lógica de que organizações sociais são desorganizadas, o governo não serve para nada e as empresas só querem ganhar dinheiro. Nunca gostei desses estereótipos e vim para o mundo corporativo defendendo que as pessoas estão no centro. 

Mas, há 10 anos, as pessoas diziam que eu era ativista demais. Tudo bem: sou ativista, porque os ativistas têm essa ambição de construir um mundo que poderia ser – e nosso papel é seguir em movimento. Não acho que isso seja um problema, mas não é só isso. Se o que a gente faz é com pessoas, para pessoas e por pessoas, como as pessoas não estão no centro dos nossos negócios? E hoje, na Zamp, essa é a missão: ter uma diretoria que cuide das pessoas, da cultura e da transformação, porque a gente entende que o mundo está em mudança e precisamos estar preparados porque o nosso maior ativo são as pessoas. 

Nos últimos anos, o meio corporativo buscou trazer esse olhar mais humano. Como uma pessoa que tem visão consciente dos problemas que a sociedade vive, bem como da função social das empresas, de que maneira sua diretoria agora encara os próximos desafios? 

Cheguei com desejos a serem realizados. O primeiro é que a gente vire uma das melhores empresas para se trabalhar. O Great Place to Work diz que é preciso ter um processo de construção de autonomia em sintonia com o alinhamento de propósito de valores vividos pelas pessoas. Se há muita autonomia e não há alinhamento, você tem o caos: as pessoas não sabem o que deve fazer. No contrário, você tem uma ditadura. Mas se tem a conjunção das duas coisas, o resultado é um bom lugar para trabalhar. Mas há um jeito único de fazer isso? Não. 

Ao decidirmos o nome da diretoria, entendemos que as pessoas estão no centro de absolutamente tudo que fazemos. Criar as condições para que cada indivíduo possa dar seu melhor tem a ver com recursos e benefícios que oferecemos. E não dá para fazer isso sem fortalecer o componente cultural: nosso sonho, nosso propósito e nossos valores. Nosso propósito é dar motivos para mais pessoas se juntarem a nós.

E como podemos viver os nossos valores?

Os valores têm de estar na vivência diária, e não se pode fazer isso sem reconhecer que a diferença é nosso maior valor: somos únicos, com habilidades únicas. Aí entra um outro pilar da diretoria, que é a transformação. Para ela acontecer, são necessários três componentes: ambiência, cultura forte e segurança psicológica. Para continuarmos evoluindo, o processo de aprendizado é muito importante. Vamos errar e acertar, mas é importante que a gente acerte cada vez mais rápido. E a segurança psicológica entra para construir um ambiente onde as pessoas possam ser quem elas são. Ambiente de diversidade não é só construído com diversidade demográfica, porque isso é basal, mas é preciso, para além disso, ter qualidade de processos e de relações. 

Isso só é possível quando olhamos para o desenvolvimento da liderança, que é um dos papéis mais importantes para a diretoria seja no corporativo ou no campo. É a liderança que garante um ambiente saudável e propício para o desenvolvimento das pessoas. Hoje, 89% da nossa população tem menos de 30 anos, o que significa que eles estão em pleno desenvolvimento profissional. As lideranças ainda são responsáveis por manter a cultura viva, desenvolvendo as pessoas e garantindo que elas estejam nos melhores lugares.

Muitos profissionais de RH hoje se deparam com esses desafios, mas podem não ter a visibilidade necessária para tomar decisões no sentido de colocar as pessoas no centro do negócio. Quais são os primeiros passos que um profissional pode dar nesse processo de transformação, a fim de chegar a um patamar mais evoluído de inclusão, pessoas, cultura e transformação?

Hoje, o RH passa por processos de transformação importantes. Na Zamp, entendemos esse momento que estamos vivendo e como podemos, cada vez mais, ser esse canal dentro do setor de bens de consumo e varejo, para que essa conversa aconteça de forma significativa. Vamos pensar no seguinte: saímos de um modelo cultural em que trocávamos mão de obra por dinheiro, numa cultura utilitarista. Hoje, vivemos uma cultura de engajamento. Na maioria das empresas, 70% dos colaboradores estão desengajados, não se sentem parte da companhia. E um papel importantíssimo do RH é entender sua função no engajamento das pessoas, construindo uma cultura de respeito, comunicação clara e transparente, desenvolvimento, gestão de risco e autonomia. É uma cultura de significado: as pessoas querem ser felizes e ter equilíbrio entre vida pessoal e profissional. E para se sentir engajado, é preciso estar feliz, ter equilíbrio e propósito. As pessoas querem estar em empresas em que elas têm voz, em empresas coerentes e que promovem transformação positiva. 

Isso é uma transformação enorme: saímos do Departamento Pessoal, que demitia e contratava gente, passamos pela área de Recursos Humanos, que olha as pessoas como recursos importantes, e chegamos a uma área de Pessoas, Desenvolvimento, Cultura e Transformação como parte da estratégia. O RH hoje tem um lugar central nessa definição. Hoje, uma estratégia empresarial tem quatro grandes componentes: pessoas, cultura, processos e tecnologia – e o RH faz a costura disso tudo. Ele é o guardião da estratégia, fazendo a ponte das pessoas com as altas lideranças. 

É um grande desafio, especialmente pensando em habilidades e na sensibilidade que o RH precisa ter para identificar essas questões. Na sua opinião, qual é a melhor forma de desenvolver os profissionais de RH que tocam essas estratégias? Como diretora, você tem a missão de criar equipe de líderes e estruturar o time. Para onde vai olhar quando planejar o desenvolvimento das pessoas? 

É preciso cuidar de quem cuida. Isso serve para os líderes e serve para o RH, o coração das empresas. Para desenvolver o RH, temos áreas muito importantes: pessoas e estratégia. Não dá para ter um RH que é só muito conectado com pessoas ou muito conectado com a estratégia. É preciso fazer essa ponte. Para isso, o RH tem que entender tanto de macroeconomia quanto desenvolver habilidades socioemocionais. Um processo de avaliação, que é direcionado e orientado pelo RH, não pode reproduzir vieses que as pessoas têm. Em muitos casos, por exemplo, pessoas de grupos sub-representados tendem a ser avaliadas mais por estilo do que por performance, e não deveria ser assim. É preciso trabalhar na nossa capacidade de ler e otimizar os talentos, se ajustando às mudanças. 

Um outro pilar tem a ver com nosso olhar mais estratégico. No varejo, as coisas têm mudado com muita rapidez – e a nossa leitura de entender comportamento dos consumidores precisa mudar na mesma velocidade. Para isso, é preciso ter visão sobre a estratégia e desenvolver nossa capacidade de pensamento crítico. Isso é o que vai ajudar não só a saber o que precisamos fazer amanhã, mas também entender como a estratégia de 2024 se conecta com a estratégia para 2034. Isso acontece porque o consumidor nos demanda situações e processos cada vez mais personalizados, atendimentos mais rigorosos, e isso exige cada vez mais inovação. Se as empresas não perceberem isso, nossa visão não vai possibilitar a longevidade do negócio.

Não basta só entender da estratégia empresarial, é preciso que o RH a entenda também no longo prazo. E para isso, o poder analítico precisa ser mais refinado, com dados e tecnologia sendo cada vez mais relevantes para nos ajudar. São ferramentas que ampliam nossas capacidades e aceleram as transformações que precisamos implementar.