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‘Não haverá prosperidade econômica sem redução de desigualdades’, diz Natalia Paiva, diretora do Mover

Com foco em equidade racial, executiva destaca a importância de ações afirmativas para população negra no mercado de trabalho

Emilly Nascimento
14 de junho de 2024
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Segundo o IBGE, 55,5% dos brasileiros se consideram pessoas pretas ou pardas. Mas, apesar de serem maioria em quantidade absoluta e também corresponderem a 56,1% da população em idade ativa, de acordo com dados do Diesee (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), as pessoas negras equivalem a mais da metade dos desempregados do País (65,1%). De olho nesse cenário, um grupo de mais de 50 empresas criou a Mover, uma associação sem fins lucrativos que visa criar mais de 3 milhões de oportunidades para pessoas negras até 2030, por meio de programas de capacitação e empregabilidade. 

“É um tema fundamental para o setor privado”, afirma Natalia Paiva, diretora executiva da entidade. “Não vai ter prosperidade econômica se não houver redução de desigualdades, e, principalmente, se a gente não incluir mais da metade da população brasileira nos espaços produtivos”, complementa ela, dona de uma trajetória longa e versátil. Formada em Jornalismo e com Mestrado em Comunicação e Semiótica, Natalia passou por empresas como Folha de S.Paulo, Meta, McKinsey e Transparência Brasil, além de ser co-fundadora da Alandar, consultoria de políticas públicas, responsável por apoiar organizações em agendas regulatórias e de reputação. 

Na entrevista a seguir, Natalia conta mais sobre sua história e sobre como sua trajetória profissional se entrelaça com a discussão de políticas públicas e equidade racial. Para ela, o País vive uma época especial para superar cenários históricos de desigualdade. “Temos um momento bom para conseguir alavancar o que foi construído nas últimas décadas, com um debate público cada vez mais amplo sobre a necessidade de reparações e de promoção da diversidade, principalmente de grupos historicamente vulnerabilizados, como as pessoas pretas e pardas”, afirma a diretora executiva do Mover. 

Temas como o Mover Talentos, iniciativa da associação para facilitar a conexão entre os talentos e o setor privado, e a importância de lideranças negras ocuparem espaços também aparecem na discussão. “Não queremos ouvir as empresas falarem que não conseguem encontrar talentos negros, porque eles existem. Por outro lado, também precisamos garantir que tenha mais diversidade no topo, porque essa é uma das maneiras de retroalimentar a mudança de forma duradoura”, diz. A seguir, os principais trechos da entrevista. 

Você é formada em Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará. Como a sua carreira de jornalista impacta a forma como você faz o seu trabalho hoje? 

Minha carreira tem sido menos estruturada e mais de serendipidade. Fiz jornalismo na faculdade porque queria cobrir guerras. Acabei indo cobrir cultura. Meus primeiros empregos foram focados em cinema, literatura, teatro e artes plásticas. Foi muito importante, porque isso criou um colchão de conhecimento e de métodos de abordagem que não seria obviamente linkado com tudo que veio depois. Acabou sendo parte de quem eu sou e da maneira como abordo o mundo, os problemas e os desafios do trabalho.

Depois de escrever sobre sobre cultura, você virou repórter de negócios? Em que momento essa mudança ocorreu?

Fiz uma reportagem que me levou a fazer um mestrado em semiótica, em São Paulo. A professora, Jerusa Pires Ferreira, virou uma grande mentora. Ela estudava narrativas populares, um tema que eu queria estudar no contexto contemporâneo. Vim estudar com ela em São Paulo pensando que ia passar só um ano, fazer as aulas do mestrado e depois voltar pra escrever a dissertação em Fortaleza.  A vida acabou mostrando outros caminhos: Me inscrevi no Trainee da Folha de SP, passei e foi muito sedutor estar num grande jornal. 

Quando cheguei lá, tive que escolher entre economia e política, e optei pela economia. Não era algo que eu tinha pensado em fazer antes, mas onde eu pude desenvolver habilidades diferentes, não só em negócios, mas também em macroeconomia e economia política global. Tive não só o acesso a determinado conhecimento específico, mas também essa capacidade de engajar em alto nível com líderes empresariais e grandes nomes globais. Eu era uma jovem de 24 anos tendo interlocução com Joseph Stiglitz,  o Prêmio Nobel de Economia, ou com o primeiro-ministro da Estônia. Na mesma época, também ganhei por acaso uma bolsa para fazer um MBA fora. Fui fazer o MBA, que foi um ponto de inflexão pra mim, me mostrando que eu queria fazer outras coisas e sair do jornalismo. 

A partir daí, comecei outra trajetória que me trouxe onde estou hoje. O que fica é que o caminho que a gente vai traçando pode não ser linear ou um caminho pré-traçado, mas ele vai construindo uma unicidade nossa. Tenho algumas habilidades e características que são muito singulares por causa desse meu background que foi muito específico. 

Hoje você trabalha diretamente ligada com temas envolvendo diversidade racial (MOVER) e políticas públicas (Alandar). São assuntos pelos quais você sempre se interessou ou foi experimentando ao longo da sua trajetória? 

Tenho como premissa estar muito aberta para sentar e entender as propostas e oportunidades que vêm até mim. Depois do meu MBA, fui trabalhar com políticas públicas na Transparência Brasil, que também não era o que eu tinha pensado inicialmente. Sabia que queria trabalhar no terceiro setor de alto impacto, ou seja, com resultados muito específicos e concretos, mas não sabia exatamente em quê. É um universo vasto de possibilidades. A Transparência Brasil foi uma super escola e mudou muito a maneira como penso e trabalho. 

De lá, fui para a McKinsey, que talvez tenha sido o meu primeiro momento bem pensado. Eu queria trabalhar numa consultoria estratégica e ganhar todo o repertório, todo okit de ferramentas que uma consultoria estratégica consegue dar. Foi um passo atrás, do ponto de vista hierárquico, mas foi uma das melhores decisões que eu tomei. Às vezes é preciso dar passos para trás e construir um repertório diferente. Na McKinsey, eu trabalhava com setor público com foco em gestão estratégica pública. 

Às vezes é preciso dar passos para trás e construir um repertório diferente.

Depois, fui para a Meta, para fazer algo que é um pouco diferente: pensar a estratégia regulatória de uma empresa de tecnologia. Foi onde tomei paixão pelo tema, sou absolutamente apaixonada pela área de regulação de internet. Basicamente, não fazia ideia do que era, o que eu ia fazer ou como ia fazer, mas acabei desenvolvendo um modelo de atuação que é bem alinhado com o que eu acredito.

O que acabou culminando na construção da Alandar, consultoria que co-fundei com a Daniela Kleiner, que estava no Twitter (atual X). Saímos e fundamos a Alandar, baseada num modelo de pensar a estratégia regulatória das empresas com foco em construção com vários setores da sociedade. Qualquer negócio busca ter algum tipo de impacto, não importa o setor: energia,  telecomunicações, educação, saúde… Na área que seja, a gente busca recuperar dentro da estratégia de políticas públicas o propósito e o impacto positivo do negócio. 

Em paralelo a isso, veio o convite para o Mover. Jamais tinha pensado em trabalhar diretamente com a diversidade. Sempre foi um tema absolutamente relevante na minha trajetória, porque faz parte de quem sou, mas nunca quis ficar nessa caixa de ser uma mulher negra e ter que trabalhar com diversidade. O Mover veio como uma oportunidade de fazer isso de maneira diferente, com as minhas principais habilidades de gestão estratégica, de visão e de execução com qualidade para alavancar uma agenda que é super importante pra mim, da aliança entre estratégia e propósito.

Como é lidar com o tema da diversidade racial dentro do contexto corporativo? Quais são as particularidades?

Grandes empresas com as quais o Mover trabalha têm uma certa maturidade em relação à essa agenda. Elas não questionam mais a necessidade de endereçar o tema, seja por uma questão de gerenciamento de risco ou porque é um risco não ter uma agenda estruturada, ou ainda porque é uma oportunidade perdida do ponto de vista de negócio. Já  partimos de um outro lugar, que para mim, também era muito importante. Não quero ficar dando soco em ponta de faca. Temos um momento bom para conseguir alavancar o que foi construído nas últimas décadas, com um debate público cada vez mais amplo sobre a necessidade de reparações e de promoção da diversidade, principalmente de grupos historicamente vulnerabilizados. E no caso do Brasil, é importante sempre nomear, principalmente pessoas pretas e pardas. Já partimos de um espaço no qual é possível a gente partir para a ação.

Qual a importância da existência de iniciativas como o Mover e de levarmos essa discussão para outros ambientes?

O Mover foi criado há cerca de 3 anos atrás por alguns CEOs, presidentes de grandes empresas que viam que não tinha mais como adiar essa agenda. Hoje são mais de 50 organizações e mais empresas estão se juntando agora. Nosso o objetivo número 1: gerar 3 milhões de oportunidades para a comunidade negra nos próximos anos, por meio de empregos, capacitação, desenvolvimento e negócios. Outro objetivo é gerar 10 mil posições de liderança. Trabalhamos não só gerindo esses programas, mas também construindo e fortalecendo a agenda como um todo. Esse é um tema fundamental para o setor privado. Não vai ter prosperidade econômica se não houver redução de desigualdades, e, principalmente, se a gente não incluir mais da metade da população brasileira nos espaços produtivos. 

Não vai ter prosperidade econômica se não houver redução de desigualdades, e, principalmente, se a gente não incluir mais da metade da população brasileira nos espaços produtivos. 

Cada vez mais há evidências em muitos estudos mostrando o impacto positivo em ter times mais diversos em nível de inovação e performance financeira da empresa.  Além disso, os próprios colaboradores valorizam ter um ambiente mais diverso, inclusivo e plural. Principalmente colaboradores da nova geração. Isso não é só impacto social, é uma das estruturas importantes para ter um negócio sustentável. É absolutamente fundamental engajar-se ativamente na agenda de equidade racial.

Qual é o principal desafio que esses profissionais negros que estão adentrando o mercado de trabalho enfrentam hoje? 

Há os desafios de entrada e de busca, como os processos de agrupamento são feitos e os vieses existentes e é por isso que lançamos o Mover Talentos. Não queremos ouvir as empresas falarem que não conseguem encontrar talentos negros, porque eles existem. Por conta disso, estamos criando cada vez mais estratégias para facilitar essa conexão e a plataforma é uma dessas táticas. Há também todos os desafios conectados à permanência. Como que a gente garante que os ambientes sejam inclusivos? Que as práticas sejam justas e equânimes?

Por fim, há o desafio de ascensão. Como a gente garante que essas pessoas direcionadas para que o seu melhor seja extraído tenham a oportunidade de crescer? Isso tudo não vai ser dado de maneira orgânica. É necessário que haja uma série de ações intencionais nos ambientes corporativos, de coalizões como a do Mover para garantir que tudo esteja caminhando.

É muito difícil, ainda hoje, ver mulheres como presidentes de grandes empresas, conselheiras, mas é muito mais difícil ver pessoas negras nessas posições. Mulheres negras, então? Quase nenhuma. Precisamos também garantir que haja mais diversidade no topo, porque essa é uma das maneiras de retroalimentar essa mudança de forma duradoura.

Como o Mover Talentos corrobora para a mudança desse cenário? 

O Mover Talentos é um hub de profissionais negros. Nosso objetivo é que cada vez mais, profissionais negros sejam cadastrados lá, porque ali eles têm acesso direto a todas as vagas abertas e ativas das empresas associadas. Hoje, por exemplo, há pelo menos 10 mil vagas abertas de grandes empresas de varejo, bens de consumo, agro e outros setores.  São oportunidades em empresas que abertamente investem em diversidade. O profissional já vai de maneira assertiva, sabendo que é uma cultura corporativa que o quer como membro. 

Além disso, há uma série de trilhas informativas. Com temas relacionados a carreira, como se preparar para entrevistas, como aprimorar suas soft skills, etc. A ideia é aumentar cada vez mais o nível de competitividade desse profissional. Do outro lado, também há um acesso específico para recrutadores das empresas associadas,para eles encontrarem os profissionais mais adequados para as vagas disponíveis.

Para fechar, você poderia indicar algum livro/podcast/vídeo ou algum outro conteúdo para os leitores de Cajuína que queiram entender mais sobre esse tema? 

Vou indicar um livro não óbvio sobre o tema chamado O Mito da Meritocracia. É de um professor de filosofia política de Harvard chamado Michael J. Sandel. A gente fala muito de mérito, mas a grande verdade é que ele talvez não exista como a gente pensa. Primeiro, as pessoas partem de lugares diferentes e quando a gente olha só onde elas estão hoje isso nos dá pouca informação sobre o “mérito”, por assim dizer, das pessoas. Segundo, e mais importante e menos óbvio, é que nossa ideia de organização social baseada no mérito ignora fatores como sorte para a nossa performance global e isso provoca incentivos ruins. Claro que isso não quer dizer que uma empresa não vai ter promoção baseada em performance. Mas que, talvez, nossa sociedade possa pensar que o valor das pessoas não está nessa performance, e que não há um mérito intrínseco associado a ela. Bem filosófico, mas bom para pensar.

Emilly Nascimento é jornalista com experiência em redação, comunicação interna e relações públicas. Já passou pelo mundo do entretenimento, mercado financeiro e agora está explorando o universo de RH.