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Sem regulação, licença paternidade estendida começa a ser adotada no Brasil
De olho em bem-estar e equidade de gênero, empresas criam programas para pais ficarem dois, três e até seis meses com as crianças, em vez de 5 ou 20 dias; tema deveria ter sido regulamentado após Constituição de 1988, mas segue em debate depois de três décadas
No Brasil, o maior dos feriados é o Carnaval. Se considerarmos todas as emendas, são cinco dias de descanso (ou folia), sem nem pensar em trabalho. É o tipo de período que muita gente espera o ano inteiro, mas quase sempre passa rápido demais. Pois bem: cinco dias também é o tempo que a vasta maioria dos pais brasileiros consegue tirar como licença paternidade para ficar com seus filhos recém-nascidos. Em contraponto, recentemente, um número crescente de empresas não só tem adotado a licença paternidade estendida, mas também advogado pela regulamentação adequada do assunto.
Sim, isso mesmo: apesar de ser tratada como lugar comum, a licença paternidade de cinco dias no Brasil não é nem exatamente definida por lei. Até os anos 1980, ela nem existia. Em 1988, a Constituição Federal estabeleceu que o assunto deveria ser legislado pelo Congresso Nacional, mas que enquanto isso não acontecesse, existiria uma diretriz de que o período seria equivalente a cinco dias corridos após o nascimento do bebê. Trinta e seis anos depois da Carta Magna, o tema segue sem definição – a ponto do Supremo Tribunal Federal ter decidido, em dezembro de 2023, que uma lei estabelecendo as regras para o tema deveria ser aprovada por deputados e senadores num prazo máximo de 18 meses. “São 36 anos de letargia”, define Vinicius Bretz, da Filhos no Currículo, consultoria dedicada a ajudar empresas a refletir sobre a parentalidade.
“O tema é tão atrasado que hoje, quando um homem tira cinco dias de licença, no eSocial não há informação se é sobre paternidade ou abono, porque não há regulamentação”, explica Leandro Ziotto, fundador da Coalizão Licença Paternidade (CoPai), que reúne empresas e entidades do terceiro setor mobilizadas no tema. Em termos de regulamentação, o único avanço dado nesse sentido foi o Empresa Cidadã, programa criado pelo governo em 2009: empresas que se enquadram nas regras (incluindo uso de lucro real no Imposto de Renda de Pessoa Jurídica) podem ampliar a licença paternidade em até 20 dias corridos com o apoio do governo, bem como estender a licença maternidade de quatro para seis meses. No entanto, estima-se que apenas 1% das companhias utilizem esse benefício no território nacional.
Pode parecer algo simplório, mas que gera consequências sérias para todos os envolvidos: de uma relação menos profunda entre pais e filhos, passando pela sobrecarga física e mental das mães por jornada dupla ou tripla, até chegar em questões de desigualdade de gênero, como o famoso receio de organizações contratarem mulheres por conta dos períodos de gravidez. “Quando o homem vai para o espaço do cuidar, a gente quebra a divisão sexual do trabalho. Além disso, quando você tem licenças igualitárias, some o viés consciente ou inconsciente de contratação de mulheres, e isso aumenta a presença feminina nas empresas e em cargos de liderança”, ressalta Bretz.
Por outro lado, licenças paternidade estendidas trazem diversos pontos positivos. “Muitos estudos mostram que, com dois cuidadores, há benefícios na construção de caráter e personalidade da criança, reduzindo transtornos psíquicos e traumas infantis. Isso também gera impacto, lá na frente, em uma sociedade com menos criminalidade e menor impacto na saúde pública”, diz o consultor da Filhos no Currículo. A despeito disso, discussões sobre o tema no Congresso Nacional costumam enfrentar resistência de lideranças empresariais, que temem que a medida possa causar impacto nos cofres públicos e também na produtividade das organizações.
Hoje, o principal projeto de lei em discussão sobre o tema na Câmara dos Deputados é o PL 6126/2023, que reúne propostas de deputados de diferentes partidos e a colaboração de um grupo de trabalho organizado pelo Congresso para estudar o tema. Ainda em debates iniciais, o projeto prevê licença-paternidade inicial de 30 dias, com extensões para até 60 dias ao final de quatro anos de implementação, além de um salário-paternidade coberto pela Previdência Social. Outros pontos importantes da lei são o fato de que homens acusados de violência doméstica perdem o direito ao benefício, que parte da licença precisará ser tirada após os quatro ou seis meses tirados pela mãe e que o período vale não só para nascimentos, mas também para adoção de crianças.
Na prática
Enquanto a regulamentação não vem, algumas empresas já começam a adotar a licença paternidade estendida no Brasil, impulsionadas tanto por movimento das matrizes globais como por uma vontade de promover a igualdade de gênero. Em muitos casos, o movimento é recente e ainda tem poucos resultados quantitativos – mas o qualitativo já mostra que o caminho avança bem.
É o exemplo da Visa, que passou a adotar globalmente a licença paternidade de 14 semanas em julho de 2022. “Foi um reflexo da pandemia: recebemos muitos depoimentos de pais de primeira viagem que ficaram satisfeitos de poder trabalhar em casa e estar perto dos filhos”, conta Priscila Mônaco, diretora sênior de RH da companhia para o Brasil e a região dos Andes. Na empresa, os pais podem tirar as 14 semanas de maneira ininterrupta ou dividi-las em até três períodos diferentes.
Segundo Priscila, a adaptação da empresa foi mais simples do que se imaginava. “Quando as mães saem de licença maternidade, temos como prática contratar pessoas temporárias para que a área não fique sobrecarregada – e esse custo fazia parte do nosso processo. Foi o único ponto que tivemos de considerar no nosso orçamento com a licença paternidade”, comenta a executiva. Além disso, a companhia investiu em letramentos para os funcionários para falar sobre a importância da paternidade e da parentalidade, incentivando a adesão dos colaboradores.
Diretor de comunicação corporativa da empresa, Paulo Henrique Romariz foi um dos primeiros pais da Visa a aproveitar o benefício, com o nascimento de sua segunda filha, Lorena. Ele compara a experiência com a licença paternidade do primeiro filho, Benício. “Quando eu ia trabalhar nos primeiros dias do Benício, eu não ficava com a cabeça no trabalho sabendo que tinha um bebê em casa, ficava preocupado com a sobrecarga na minha esposa. Com a licença expandida, a gente conseguiu se organizar melhor não só pra cuidar da Lorena, mas para dar atenção pro Benício, num período que é sensível também”, conta. “Para mim, a principal diferença é na dedicação: eu consegui estar sempre ali com a energia e a atenção no máximo para a minha família, para a minha esposa, sem ter explosões de cansaço ou de ansiedade.”
Além disso, Romariz também afirma que as consequências do período de licença-paternidade se estendem para além das 14 semanas. “É um aprendizado gigantesco para o homem viver a paternidade, ir além do ‘papai chegou do trabalho’ e gerar responsabilidade nas demandas diárias e recorrentes..” Na hora de voltar à empresa, a experiência também foi positiva, conta o executivo. “Quando eu retornei, estava com toda a energia para trabalhar. Além disso, voltei com outra mentalidade: já não fazia mais sentido trabalhar até 22h, 23h, porque eu tinha uma missão em casa para cuidar”, ressalta Romariz, que também é membro da CoPai – a Visa, por sua vez, é uma das signatárias da coalizão.
Quem também adotou recentemente a licença-paternidade estendida no setor de serviços financeiros e tecnologia foi a Caju, que passou recentemente dos 20 dias oferecidos pelo Empresa Cidadã para um período de 60 dias. Os pais, sejam de crianças nascidas ou adotadas, podem tirar o período todo de uma vez ou fracioná-los em três partes – mas a primeira delas deve ter pelo menos 20 dias e ser realizada logo após a adoção ou nascimento do bebê.
Para a empresa, a licença-paternidade estendida é uma forma de promover a igualdade de gênero, dar apoio às famílias de seus colaboradores e também diminuir o esgotamento dos times. “A iniciativa faz parte do nosso compromisso com a promoção da diversidade e inclusão, mostrando na prática como soluções de benefícios podem e devem ser pensadas para acolher todas as formas de arranjos familiares, reforçando assim o bem-estar dos colaboradores e a construção de um ambiente de trabalho acolhedor”, ressalta Lucas Fernandes, CHRO da Caju. Para ele, é apenas o começo. “Esse é o pontapé inicial do que queremos construir, e também um convite à discussão de políticas públicas por parte das empresas.”
Igual pra todo mundo
Na farmacêutica Sanofi, a licença paternidade nem tem exatamente nome: por lá, o programa se chama Licença Parental Neutra estendida e funciona há quatro anos. Homens e mulheres, pais e mães de crianças nascidas na própria família ou adotadas, têm direito a até seis meses de licença, com pagamento do salário fixo integral garantido pela companhia – e a regra vale para toda a América Latina, afirma a companhia. “Entendemos que a licença parental estendida é capaz de oferecer um impacto positivo na saúde de toda a família, proporcionando um ambiente ainda mais acolhedor para o desenvolvimento da criança e um fortalecimento de laços familiares”, diz Pedro Pittella, head de Pessoas e Cultura da Sanofi Brasil.
Trabalhar a adesão dos colaboradores, porém, foi um desafio ao longo dessa jornada – dado que o benefício da licença estendida não é obrigatório para todos os pais. Nos dois primeiros anos do benefício, conta Pittella, apenas 48% dos colaboradores homens elegíveis usufruíram do período de licença. Para entender porque isso acontecia, a Sanofi Brasil criou um programa de escuta dos colaboradores, chamado Agora Somos Mais. Um dos principais resultados foi a de permitir a oportunidade de cada colaborador escolher como quer usufruir do período. Os primeiros 20 dias após o nascimento são obrigatórios, e depois é possível tirar um período de até 160 dias, desde que o retorno ao trabalho aconteça antes da criança completar um ano (ou um ano após a adoção). Deu certo: “o número de optantes cresceu para 71% dos homens em 2022, e alcançou 73% em 2023”, ressalta o executivo.
Além disso, a empresa trabalha também pelo exemplo, incentivando a liderança a se engajar com o benefício, evitando aquele papo antiquado e preconceituoso de que o pai que tira licença paternidade vai “sair de férias”. “Acreditamos que trazer exemplos positivos vindos das lideranças exemplificam, inspiram, encorajam e ajudam a sensibilizar os colaboradores sobre a importância da licença paternidade para o bem-estar da família como um todo e, consequentemente, quebram preconceitos sobre o papel do pai após o nascimento do filho”, diz Pittella.
Outra questão importante, reforça o executivo da Sanofi, é ter espaços de troca entre os homens para discutir o tema – na empresa, há um grupo de diversidade focado na discussão de uma “masculinidade responsável”. “O Eles por Eles é um ambiente seguro para homens de diversas trajetórias compartilharem experiências e falarem abortamento sobre preconceitos, desafios profissionais e paternidade”, diz Pittella. Por outro lado, promover esse tipo de benefício para a Sanofi traz ganhos como ter profissionais mais satisfeitos, felizes, focados e comprometidos, além de contribuir com a “retenção de talentos e a competitividade da empresa no mercado”, afirma o head de pessoas e cultura da empresa.
Passos graduais
Se Visa e Sanofi seguem o exemplo da matriz, um exemplo de empresa brasileira que adotou a licença paternidade estendida é o escritório de advocacia Mattos Filho – por lá, os pais podem tirar até 60 dias, que podem ser usufruídos logo após o nascimento da criança ou em dois períodos. “Os primeiros 5 dias precisam ser tirados após a criança nascer, mas os outros 55 dias podem ser tirados de uma vez. A ideia é não dividir em vários pequenos períodos para não virar miniférias, o que pode causar impacto grande nos times”, diz Renata Maiorino, diretora de desenvolvimento humano da empresa. “Normalmente, vemos duas tendências: ou o homem tira tudo de uma vez ou tira quando terminam os meses de licença da mãe.”
Para a executiva, oferecer a licença paternidade estendida é uma forma de corrigir diferentes questões de desigualdade. “Por que a gente acha que um bebê não precisa do pai nos primeiros meses de vida? Por que tiramos do homem a oportunidade de ter esse vínculo?”, questiona Renata. “Quanto mais a gente coloca os homens na cadeira de cuidadores, com a divisão de responsabilidades, mais as mulheres conseguem ter equidade nas organizações”, ressalta.
Renata reconhece que dois meses de licença ainda podem parecer pouco, especialmente quando há casos de países como Suécia e Islândia, em que esse período pode ser superior a um ano, mas vê evolução. “Temos um caminho cultural importante para seguir. Se olharmos para o passado, muitas mulheres optavam por não estender a licença maternidade de quatro pra seis meses por medo de prejudicar a carreira, mas hoje isso tem mudado. Daqui a um tempo, vamos achar dois meses uma loucura, mas tem um chão para percorrermos.”
Para empresas que buscam adotar o mesmo tipo de benefício, Renata ressalta que o apoio das lideranças é fundamental. “O RH sempre colocou essa bandeira na mesa, mas começou a dar certo quando nosso sócio diretor bancou e deu o exemplo. Se a política é só do RH, tem gente que acha que é uma coisa com menos força, o que não é verdade”, afirma a diretora do Mattos Filho.
Na visão da executiva, tão importante quanto pensar na licença paternidade é pensar na longevidade dessa experiência, dando suporte para a parentalidade no longo prazo. Uma das coisas que têm ajudado muito nesse sentido é o sistema híbrido de trabalho. Atualmente, o Mattos Filho tem três dias presenciais e dois remotos, além de incluir a possibilidade dos pais fazerem home office 100% do tempo no primeiro ano de vida da criança. “O híbrido ajuda muito, porque dá a liberdade, por exemplo, do colaborador sair mais cedo para buscar na creche. Não quer dizer que a pessoa não vai trabalhar, pelo contrário! A flexibilidade é muito importante na parentalidade.”
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