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Como a tecnologia está mudando o presente (e o futuro) do RH

Inteligência artificial, algoritmos, robôs de tradução e ferramentas de análise de dados precisam estar no repertório de quem atua com Gente e Gestão; mas é preciso considerar estratégia do negócio e cultura corporativa

Maria Clara Dias
18 de janeiro de 2024
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Da hora que acordamos até o apagar das luzes antes de dormir, todos nós já nos acostumamos a fazer inúmeras tarefas de maneira simples com apoio da tecnologia: pedir comida, usar transporte particular, pagar contas e fazer investimentos. No entanto, há um período do dia em que nem tudo é tão simples assim: as oito ou mais horas que passamos trabalhando podem ter sistemas truncados, plataformas difíceis de entender ou até mesmo uma série de tarefas que ainda são feitas de forma analógica – o que mostra que inovações corriqueiras para uma pessoa comum podem ainda não estar disponíveis para seus colaboradores.

Fechar essa barreira tecnológica, porém, está na pauta de cada vez mais empresas, em um movimento que não só pode, como deve envolver o RH, utilizando tecnologias como people analytics, softwares de integração de dados e inteligência artificial, em meio a novos contextos desafiadores – como é o caso do trabalho híbrido e distribuído.

‘Hoje existe uma certa ansiedade por parte das empresas em ter funções mais automatizadas. Ninguém quer ficar para trás’.

Um bom exemplo é o ChatGPT, sistema de inteligência artificial da empresa americana OpenAI que foi o centro das atenções neste 2023, conquistando mais de 100 milhões de usuários no mundo todo. Não é à toa: o serviço, que funciona como um robô de conversa, é capaz de prever ações e escrever textos com base em um gigantesco banco de dados – função que pode ajudar muita gente a poupar tempo, especialmente em tarefas burocráticas e repetitivas. Em outros casos, a tecnologia tem ajudado companhias transnacionais a acabar com sua Torre de Babel interna, como é o caso da fintech latina Clara, especializada na área de gastos corporativos. 

Fundada no México, centralizada no Brasil e com operações em 13 países da América Latina, a Clara tem utilizado o ChatGPT para tradução de conversas entre quem fala apenas português, inglês ou espanhol, mas precisa se comunicar com colegas de outras áreas. Dona de uma cultura “remote first”, com muitas interações feitas de forma assíncrona (até por conta de fusos horários e padrões culturais), a empresa diz que pelo menos metade dos funcionários têm usado o sistema de IA para traduções e revisões – um terço desse grupo, por sua vez, usa o recurso mais de uma vez ao dia. “O que a IA nos deu é uma oportunidade de fazer melhor o que já fazíamos, e de maneira assíncrona”, explica Carolina Astaiza, diretora global de recursos humanos na Clara

Carolina Astaiza, Diretora Global de Recursos Humanos na Clara

Além dos chats do ChatGPT, outras plataformas baseadas em inteligência artificial também têm se popularizado entre os colaboradores da fintech. Entre elas estão o Grammarly, assistente virtual para revisão de textos; o Notion.AI, plataforma de produtividade, e Bard, IA generativa de chats que pertence ao Google. A inclinação do time a testar o que há de mais novo em inteligência artificial motivou a Clara a criar grupos de discussão e troca de experiências a fim de incentivar as melhores práticas e esclarecer dúvidas e receios em relação às novas ferramentas. 

‘O que a IA nos deu é uma oportunidade de fazer melhor o que já fazíamos, e de maneira assíncrona.’

A assertividade das ferramentas de IA tem ajudado a empresa a colocar em prática um dos seus principais pilares culturais: a clareza. “Nosso maior ganho é a garantia de que nossos colaboradores entendem que não basta apenas traduzir o que é dito, mas se fazer ser compreendidos. É ir além de comunicar o necessário, mas saber que a mensagem está sendo repassada da melhor maneira possível”, afirma a diretora, que pretende envolver o uso de IA em outras áreas, como a criação de vídeos e peças educativas de comunicação para os colaboradores.

Adoção, ansiedade e controle 

É importante destacar que, para uma adaptação tão rápida, é preciso incentivar o time para que compreendam a relevância e as razões para o uso de cada novo sistema, conforme avalia Carolina. “Somos uma empresa de tecnologia. Então, para nós, é fundamental que os funcionários estejam familiarizados com as inovações mais recentes, mas antes de explorarmos elas em profundidade, queremos fazer com que as pessoas se sintam realmente parte de um universo tecnológico que faça sentido”.

Essa excitação por parte da adoção de novas tecnologias não está restrita à Clara. “Hoje existe uma certa ansiedade por parte das empresas em ter funções mais automatizadas. Ninguém quer ficar para trás”, diz Ricardo Castejon, líder global de gerenciamento de projetos e recursos humanos da Johnson & Johnson. Para ele, a tecnologia de ponta traz grande oportunidade às empresas, mesmo que os padrões de gerenciamento ainda não tenham sido 100% definidos pelas organizações – fator que não deve ser empecilho para a adoção, que deve ser feita com cautela. 

O executivo destaca que o processo de transformação digital no RH tem ganhado velocidade na própria J&J. Nos últimos anos, a empresa desenvolveu internamente uma plataforma capaz de unificar dados de colaboradores e processos comuns ao RH da empresa globalmente. É uma decisão importante para uma multinacional com 150 mil colaboradores pelo mundo, em uma operação em que unificar informações e adotar certos padrões pode determinar o sucesso (ou insucesso) dos negócios. “Muitas vezes, funcionários executando a mesma função, mas em diferentes países, recebiam benefícios diferentes. Estava tudo despadronizado”, relembra. 

Abraçar a tecnologia com o intuito de facilitar o dia a dia de quem cuida de detalhes operacionais do RH, como benefícios e questões contratuais, ajudou a J&J a criar uma cultura inovadora e “mão na massa”, sem precisar esperar apoio. “Após investir em desenvolvimento de softwares de RH que pouparam horas de trabalho de times em todo o mundo, nossos líderes entenderam que não é preciso sentar lado a lado com um parceiro para definir as coisas. Todos entendem hoje que são donos de informações e têm igual acesso aos sistemas. É uma cultura de execução”, diz Castejon. 

Inteligência

Centralizar dados, porém, é apenas um primeiro passo, uma vez que é possível utilizar a inteligência dessas informações para conseguir prever tendências dentro das organizações. É o que tem acontecido na consultoria de gestão Falconi, que se rendeu ao uso intensivo de dados em sua unidade de negócios voltada à People Analytics.

Fernando Ladeira, VP para Gestão de Pessoas na Falconi

O pontapé aconteceu há cerca de três anos, quando a Falconi desenvolveu um algoritmo próprio capaz de reduzir os níveis de turnover e absenteísmo dentro da própria companhia com uma assertividade de até 80%. O modelo de análise considerava, entre outras coisas, o perfil das pessoas que pediram demissão, cargo, desempenho e resultados de pesquisas de clima, além do histórico de promoções e também de turnover da área. Todas essas informações previam a possibilidade de um funcionário pedir as contas dentro dos próximos três meses. De posse das informações, a consultoria tomou medidas de ação e conseguiu cortar em 50% a rotatividade em um ano. Além disso, a empresa viu clientes reduzirem o mesmo índice em mais de 70% ao disponibilizar a ferramenta para eles. 

O resultado positivo levou a Falconi a sair em busca de parceiros que ajudassem a envelopar a tecnologia e levá-la para o mercado. Foi daí que surgiu a aproximação com a MineHR, startup investida pela consultoria e que, com os recursos, foi capaz de lançar seu MVP. “Nossos resultados internos nos surpreenderam e ao mesmo tempo nos mostraram que é possível criar um RH mais inteligente e preditivo, desde que a tecnologia seja um imperativo e que, mesmo em múltiplas plataformas, seja capaz de conversar entre si”, explica Fernando Ladeira, VP para Gestão de Pessoas na Falconi.

O produto criado pela Falconi e pela MineHR ajuda na centralização de todas as informações inerentes ao RH, e também conta com um algoritmo de IA para a predição de turnover e absenteísmo. Os insights extraídos de todos esses dados também ajudam em algumas missões caras às empresas na atualidade, como a preocupação com diversidade e inclusão. “Entender o cenário demográfico de uma empresa a partir de dados é algo simples. A questão é como usar essas informações para avançar”, diz o VP da consultoria. 

Um caso bem-sucedido dessa jornada, segundo Ladeira, é o uso dos algoritmos da Falconi para avaliar a progressão de carreira de funcionários a partir de um recorte sociodemográfico específico. Um exemplo está na avaliação de promoções e mudanças de cargo para mulheres, por exemplo. Outro uso comum da plataforma se dá no mapeamento de perfis de funcionários considerados “exitosos”, e então utilizar as mesmas características para a criação de vagas naquele perfil.

Tudo em um só lugar

Construir um ecossistema que permita chegar a esse estágio de people analytics, porém, não é tarefa que se faça da noite para o dia. Para além da camada inteligente de dados para gestão de pessoas, especialistas concordam que o próximo grande passo na jornada de transformação digital do RH está na unificação de plataformas. Isso porque o novo contexto preditivo da área, junto ao inflado número de HRTechs no mercado podem gerar uma sobrecarga de dados capaz de confundir muitas empresas – e seus respectivos RHs.

Assim, o foco deve estar em ferramentas  que simplificam e digitalizam processos para ganhar velocidade com o apoio da tecnologia, deixando o fluxo de trabalho do RH mais fluido e descomplicado. É o caso do Ciclos, sistema lançado pela Caju neste ano que unifica diferentes soluções para o RH em um único local, centralizando todas as informações de um colaborador – da papelada de documentos aos detalhes de sua jornada dentro da empresa. 

‘Mais do que nunca, o RH busca poupar tempo para se dedicar a coisas estratégicas. A unificação inteligente de plataformas e sistemas é o único caminho para isso’.

Para decidir os caminhos a se tomar com o novo produto, a Caju conversou com sua base ativa de usuários para entender as principais dores dos profissionais de RH em seu dia a dia. A resposta, para a grande maioria delas, foi unânime: o processo de admissão. “Uma dor comum que percebemos ao falar com essas empresas é que admitir colaboradores continuava sendo uma questão operacional e demorada, que carecia de uma plataforma que pudesse unificar as tarefas”, diz Lucas Soriani, gerente de produto responsável pelo Caju Ciclos.

Segundo Soriani, as empresas gastam, em média, uma hora para cada nova admissão. Em um cálculo rápido, uma empresa que costuma fazer 20 admissões por mês gasta cerca de 240 horas anualmente, o equivalente a 30 dias de trabalho. Com a adoção do Caju Ciclos, só para se ter uma ideia, o processo de conferência de cadastro de um novo colaborador leva menos de 10 minutos. “Mais do que nunca, o RH busca poupar tempo para se dedicar a coisas estratégicas. A unificação inteligente de plataformas e sistemas é o único caminho para isso”, afirma o gerente de produto. 

Desafios internos e globais

Ainda que promissor, a adoção de tecnologias como a da inteligência artificial e até mesmo as próprias plataformas e softwares de gestão parecem ser uma nuvem cinzenta sob as cabeças de muitas empresas. O caminho pode ser mais suave, segundo os especialistas, quando iniciado por uma cautelosa avaliação dos “porquês” para sua implementação. “A explicação do porque estamos fazendo isso é vital para a adoção de tecnologia em qualquer empresa”, diz Castejon. 

Depois de esclarecidas as motivações para trazer ao processo de gestão de pessoas o que há de mais novo no mercado, é preciso engajar a força de trabalho para uma adoção linear das tecnologias, deixando claro também seus impactos. Nesse processo, pode ser importante dividir os usuários em grupos distintos, considerando sua familiaridade em adotar novas tecnologias. 

Marcela Gava, Analista de Conteúdo da consultoria Gartner

“Também é possível que na adoção de uma ferramenta, existam usuários mais ágeis e os menos eficientes no trato com o novo sistema. Vale a pena separar os usuários em grupos com desafios semelhantes, assim é possível identificar quem necessita de ajuda extra e então superar as barreiras de adoção”, diz Marcela Gava, analista do Capterra, empresa da consultoria Gartner que ajuda clientes a encontrarem os melhores softwares para suas operações. Outra dica, defende Marcela, é definir que usuários mais experientes possam atuar como mentores daqueles que necessitam de mais ajuda no uso do software. 

Além disso, a recomendação é não se deixar levar pelo excesso de ferramentas à disposição, considerando apenas o que  realmente faz sentido para a estratégia da empresa, defende Castejon, da J&J. “O modismo pode desviar o foco do que é realmente eficaz para as empresas. O foco deve estar em desviar dos algoritmos e softwares desnecessários, pensando sempre nos objetivos do negócio”, diz o executivo. 

Os desafios para o futuro, porém, não passam apenas pelo engajamento dos colaboradores e pela escolha das tecnologias certas. É preciso também pensar em como cuidar dos profissionais cujas tarefas atuais serão absorvidas pela adoção de novas tecnologias. “Em breve não falaremos mais sobre que empregos permanecem ou não, mas sim das habilidades que a tecnologia trará e como os líderes — de recursos humanos ou não — poderão apoiar a todos nessa adaptação”, diz Marcelo Nobrega, especialista em transformação digital corporativa, consultor e investidor em diversas startups de RH.

Nobrega é categórico ao afirmar que a incorporação de tecnologia reconfigura os modelos de trabalho e habilidades mais relevantes para o futuro, e reitera que muitas profissões deixarão de existir ou terão seus ofícios totalmente transformados, dando lugar a cargos mais consultivos e menos operacionais. “Vemos uma grande realidade hoje de bots, chats automáticos que respondem dúvidas pontuais de empregados. Sendo assim, não faz sentido manter um cargo para o qual a função de um empregado é apenas tirar dúvidas sobre folgas, férias e benefícios”.

‘Em breve não falaremos mais sobre que empregos permanecem ou não, mas sim das habilidades que a tecnologia trará e como os líderes — de recursos humanos ou não — poderão apoiar a todos nessa adaptação’.

A análise de Nobrega vai de encontro a dados apresentados pelo Fórum Econômico Mundial. Em seu relatório anual, o Future of Jobs, a organização afirmou que a inteligência artificial vai criar 97 milhões de postos de emprego nos próximos quatro anos. Contudo, ainda que elenque profissões com potencial de crescimento nos próximos anos, como especialistas em IA, big data e cientistas de dados, no universo corporativo a realidade é diferente: 42% das tarefas serão automatizadas.

O uso desmedido de ferramentas cujo domínio ainda é incomum à grande maioria da força de trabalho também impõe desafios em relação ao seu uso. De acordo com o Capterra, cerca de 20% das pequenas e médias empresas do Brasil têm aplicado inteligência artificial para auxiliar nas demissões, o que abre a caixa de Pandora das relações entre empregado e empregador.

“Muitas dessas ferramentas são capazes de reunir dados de funcionários, como controle de frequência ou informações de performance, e a integração com IA permite que o sistema possa converter os dados brutos em informações relevantes que podem ser utilizadas em tomadas de decisões. Por isso, ações relevantes, como demissões, podem estar sendo realizadas com base nos insights fornecidos por esses sistemas”, alerta Marcela.  

Jornalista de negócios, empreendedorismo e tecnologia. Passou por publicações como Exame, Época Negócios e Autoesporte, além de colaborar com reportagens especiais para a Gazeta do Povo. É vencedora do Prêmio de Destaque em Franchising na categoria Jornalismo de Revista pela ABF em 2022.