Busque por temas

Em alta

Como a Takeda se preparou para receber pessoas dentro do espectro autista na equipe

Indústria farmacêutica de origem japonesa tem hoje colaboradores neurodivergentes em diversas áreas; programa teve participação de consultoria e treinamentos para mudar reuniões e dia a dia dos times

Bruno Capelas
22 de agosto de 2024
Leia emminutos
Voltar ao topo

Entre os diferentes recortes de diversidade, um dos menos discutidos pelas empresas hoje em dia é o da neurodiversidade – escopo que engloba condições variadas de funcionamento cognitivo ou distúrbios do desenvolvimento, como Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), dislexia, dispraxia e Transtorno do Espectro Autista (TEA). Na indústria farmacêutica Takeda, porém, esse tema já faz parte do cotidiano há algum tempo: desde 2021, a empresa se preparou para receber colaboradores que estão no transtorno do espectro autista. 

Presente há 70 anos no Brasil, a companhia japonesa tem cerca de mil colaboradores no País, divididos entre um escritório em São Paulo, uma fábrica em Jaguariúna e o time de campo da empresa espalhado pelo território nacional. Destes, cinco são profissionais neurodiversos, contratados pela farmacêutica em um programa feito em parceria com a consultoria Specialisterne e ocupando posições em áreas como RH, comunicação e business operations. 

Se à primeira vista o número pode parecer pequeno, ele traz consigo um grande esforço da companhia para se preparar para receber esse público, que traz demandas específicas para a liderança e também para a rotina dos times. “Nas reuniões, é preciso manter o foco, direcionando a palavra e o olhar para a pessoa. É importante também evitar barulho extremo, dependendo do grau de sensibilidade da pessoa. Em alguns casos, se vamos receber uma visita ou fazer uma reunião grande, não necessariamente a pessoa vai ser chamada para fazer parte da reunião”, explica Eliane Pereira, diretora executiva de Recursos Humanos da Takeda no Brasil. 

Na entrevista a seguir, Eliane conta mais detalhes sobre o programa, que começou a ser gestado em 2019, mas foi interrompido por conta da pandemia. Ela destaca as mudanças feitas pela empresa para se adaptar às rotinas dos colaboradores neurodiversos e também os ganhos que a Takeda teve com esse grupo. Detalhes sobre as orientações para a liderança e a conexão com a cultura da companhia, parte de um setor bastante tradicional, também surgem na conversa. “Na nossa cultura, tomamos a inclusão como um princípio inegociável”, diz a executiva. 

Entre os diferentes recortes de diversidade, a neurodiversidade ainda é um dos menos debatidos. Como surgiu na Takeda a vontade de criar um programa olhando para esse público? 

Começamos com o programa em 2019, a partir da provocação de um dos colaboradores, que levantou essa pauta. Até então, a gente não tinha muito conhecimento. Buscamos a parceria da Specialisterne, tentando entender o que era o problema, o que era necessário para atender esse público e o que poderia ser feito. Era para o programa ter começado para valer em 2020, mas aí veio a pandemia, e nós atrasamos nosso piloto, porque a consultoria sugeriu que a gente postergasse. Segundo eles, seria melhor fazer a inserção das pessoas neurodiversas no ambiente presencial. 

Qual era a limitação do ambiente remoto? 

Nós precisávamos treinar os gestores para receber esse público, e esse treinamento é muito humanizado. Era preciso que a consultoria viesse, explicasse como é uma pessoa com transtorno do espectro autista, como é preciso lidar, tem muitas questões básicas que são diferentes. Dependendo do nível de barulho, por exemplo, há pessoas no espectro que se incomodam muito e podem ter crises de ansiedade. Outras questões são de sociabilidade: às vezes, esse grupo é muito direto nas suas respostas, o que pode ser entendido por muita gente como falta de educação. 

A cultura brasileira é pouco acostumada a essa postura direta, né? 

Sim. E quem está no espectro fala exatamente assim: é “não” e ponto, eles não vão arranjar uma desculpa. Quem não entende bem o que está acontecendo pode levar isso para o pessoal. Enfim: queríamos ter certeza que o ambiente estava seguro para receber as pessoas neurodiversas. Por isso, treinamos todos os gestores e as áreas que iam receber as pessoas. Só quando o ambiente estava pronto é que nós fizemos a seleção das pessoas junto com a Specialisterne. 

No que consistia esse treinamento? Havia alguma orientação específica para as lideranças? 

Não, o treinamento era igual para todos que passaram por eles. Mas o começo do programa foi com a alta liderança: se não tiver a alta liderança engajada, o programa não vai adiante. Para qualquer nova iniciativa, tem que entender, preparar o terreno, preparar a liderança e depois implementar. O treinamento em si tinha várias questões interessantes, focando sobre como era preciso falar com esse público, como pedir o trabalho sem que a pessoa se sinta pressionada. Normalmente, neurodiversos são pessoas de muito foco nas atividades, então era importante saber como pedir para que a pessoa entenda que tem, por exemplo, três tarefas e que elas têm uma ordem de prioridade. Também tem uma questão de pedir isso do jeito certo, no tempo certo: em muitos casos, por conta do foco total, as tarefas vão ser entregues rapidamente. Outras questões são mais culturais: o brasileiro é muito do toque, muito carinhoso, mas às vezes o jeito da gente falar, o beijinho no rosto, isso tudo pode assustar quem faz parte desse grupo. 

Como foi para selecionar as pessoas? 

Depois do treinamento, tivemos uma seleção em que havia uma pessoa do RH, um gestor da área que a pessoa seria alocada e um consultor da Specialisterne. Foi uma seleção bastante focada: não bastava saber que a gente precisava de uma pessoa para a área médica, mas sim focar nas tarefas. Dentro do rol de tarefas, a pessoa da Specialisterne conseguia fazer um filtro com os candidatos, a partir de um banco que eles trabalham constantemente. Uma pessoa que vai lidar com planilhas é diferente de quem vai lidar com o ambiente mais dinâmico em comunicação, por exemplo. A seleção aconteceu em 2021 e contratamos quatro pessoas na época, para RH, comunicação, neuro e para a área médica. Agora, também temos também uma pessoa na área de digital e outra em business operations. A parceria com a Specialisterne foi importantíssima, nesse caso: quando a gente não tem expertise, a gente precisa ter bons parceiros de trabalho. 

Houve alguma adaptação especial por parte da Takeda para receber esse público? 

Não necessariamente. Uma coisa que nós criamos é que todas as pessoas com transtorno do espectro autista têm um “anjo da guarda”, uma pessoa que faz a ponte entre eles e a liderança, para dar mais segurança para eles. A Specialisterne faz um acompanhamento, mas toda pessoa que contratamos tem um ponto de contato dentro do departamento, com quem ela sabe que pode contar. É um ponto que nós definimos nos treinamentos, também. 

E o que mudou no dia a dia da empresa com a chegada dos neurodiversos? 

De um lado, nós nos adaptamos à condição deles. Houve um caso, por exemplo, em que percebemos que uma pessoa não respondia bem de manhã, mas preferia trabalhar à tarde, então entendemos o horário para ele entrar mais tarde. Do outro, também começamos a adaptar as equipes e as rotinas: nas reuniões, é preciso manter o foco, direcionando a palavra e o olhar para a pessoa. É importante evitar barulho extremo dependendo do grau de sensibilidade da pessoa. Em alguns casos, se vamos receber uma visita ou fazer uma reunião grande, não necessariamente a pessoa vai ser chamada para fazer parte da reunião. No RH, às vezes você quer ser tão inclusivo que pode dar problema: tivemos uma festa de aniversário no escritório em que o barulho do parabéns provocou uma crise de ansiedade na pessoa com transtorno do espectro autista. Felizmente, um dos colaboradores percebeu e tirou ele da sala, ele teve esse olhar – e que bom, porque muitas vezes a pessoa não vai falar. Às vezes, a busca por ser inclusivo não é o que trabalha melhor para esse público, ao menos no senso comum. Por outro lado, uma coisa que é interessante é que nós temos muitos funcionários com filhos nessa condição, e o relato deles é que eles se sentem felizes porque veem que os filhos podem ter espaço no futuro, no mercado de trabalho. 

Teve algum desafio da equipe entender como mudar o jeito de trabalhar? 

Posso falar pelo lado do RH: nessa questão dos anjos da guarda, nós tivemos um caso que não funcionou. Durante o treinamento, um colaborador levantou a mão e disse que queria ser o anjo da guarda, mas não deu certo. Essa pessoa não tinha a paciência necessária, não fazia o acompanhamento. Com o tempo, os demais integrantes do time perceberam e sugeriram que era preciso tocar, que a pessoa designada não estava dando o olhar necessário. Tem gente que tem a humildade de falar que não sabe lidar, mas não é todo mundo – e o pior que pode acontecer é a pessoa no espectro ficar de lado ou ser esquecida. É preciso tomar cuidado, porque estamos lidando com pessoas. Em outros casos, muitas vezes o líder tem que entender que a tarefa feita por uma pessoa neurodiversa pode não sair do modo, do jeito e no tempo que se espera – mas isso não significa que vá ser ruim. O treinamento passa por isso também, buscando alinhar expectativas e realidades. 

E como são os esforços para a permanência dos neurodiversos dentro da empresa? 

Lançamos este ano um programa chamado Evoluir, justamente pensando nos neurodiversos e também nas pessoas com deficiência que contratamos na empresa. O foco do programa é quem ocupa as posições de assistente e de analista júnior, oferecendo graduação, idiomas e treinamento específico. O programa começou em abril, no início do ano fiscal, e conta ainda com treinamentos de liderança, porque não queremos que esse público entre como assistente e seja assistente na companhia a vida toda. Além disso, seguimos recrutando pessoas para vagas com esse foco. 

Como esse olhar diferenciado se conecta com a cultura da Takeda, uma empresa japonesa na indústria farmacêutica, um setor bastante tradicional? 

Na nossa cultura, tomamos a inclusão como um princípio inegociável. Independentemente de sermos uma empresa japonesa, trazemos a cultura do Brasil para casa, e a inclusão hoje faz parte da cultura da Takeda no Brasil. Acho que isso faz parte do letramento e do trabalho que fazemos desde 2019, quando decidimos ter uma área dedicada para diversidade, não sendo apenas uma iniciativa do RH. Além disso, essas ações têm tudo a ver com pilares da cultura da Takeda, como a honestidade, a perseverança e a integridade. Acredito que o sucesso dessa ação está baseado em uma mistura de força de vontade e humildade, além de procurar ajuda. O básico da vida é semear o terreno para depois plantar, e foi exatamente isso o que a gente fez. 

O básico da vida é semear o terreno para depois plantar, e foi exatamente isso o que a gente fez.

Para encerrar, tem algum livro, filme ou podcast que você indicaria pra quem quiser se aprofundar no assunto?

Tem um livro que eu gosto muito no tema da diversidade e do diálogo, que é o Crer ou Não Crer, do Leandro Karnal e do padre Fábio de Melo. É um livro que fala sobre o respeito entre pessoas com crenças totalmente distintas, mostrando que o diálogo é possível, reforçando a importância da inclusão em todos os espaços.

Bruno Capelas é jornalista. Foi repórter e editor de tecnologia do Estadão e líder de comunicação da firma de venture capital Canary. Também escreveu o livro 'Raios e Trovões – A História do Fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum'.