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Os estabelecidos e os Outsiders, uma conversa sobre um habitus racial

Vitor Del Rey, professor da Fundação Dom Cabral, reflete sobre poder e construção social em um contexto de desigualdade racial

Convidado Fundação Dom Cabral
25 de setembro de 2024
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Por Vítor Del Rey, professor da Fundação Dom Cabral e presidente do Instituto GUETTO

A obra “Os Estabelecidos e os Outsiders” (1965), de Norbert Elias, oferece uma lente  poderosa para entender as dinâmicas de poder e exclusão que permeiam as relações  sociais. Elias nos transporta para o microcosmo de uma pequena comunidade inglesa,  revelando como a interação entre dois grupos – os “estabelecidos” e os “outsiders” – simboliza tensões universais de dominação e marginalização. A força de sua análise está  em demonstrar como o grupo dominante se organiza de maneira coesa, utilizando poder, status e símbolos culturais para manter sua posição privilegiada. Nesse processo, os “outsiders” são excluídos e silenciados, um ciclo sustentado por mecanismos de reforço da identidade e do poder entre os “estabelecidos”. O estudo de Elias convida a refletir sobre as implicações profundas desse jogo social, que ressoa muito além daquela  pequena comunidade. 

Elias, em seu texto, explora a estigmatização e o uso de estereótipos. Os “outsiders” são  alvo de estigmatização e rotulados negativamente pelo grupo dominante, que reforça  uma distinção entre “nós” e “eles”. Elias argumenta que as diferenças reais entre os  grupos frequentemente são mínimas, mas as dinâmicas de poder exacerbam essas distinções, tornando-as simbólicas e culturais. Por fim, Elias aborda a mudança de status  e o conflito que emerge quando os outsiders começam a ganhar espaço ou reivindicar  seus direitos. Quando essas hierarquias são contestadas, surgem tensões, visto que o  grupo dominante teme perder sua posição privilegiada.  

Quando essas hierarquias são contestadas, surgem tensões, visto que o grupo dominante teme perder sua posição privilegiada.

Howard Becker, em sua obra “Outsiders” (1960), aborda o desvio e a marginalização através da rotulação. Becker argumenta que o desvio é uma construção social criada  pelas normas impostas pelos “estabelecidos”. No contexto racial, a população negra é  frequentemente rotulada em contraposição dos padrões brancos hegemônicos. A  rotulação social se manifesta, por exemplo, na criminalização dos corpos negros e na associação automática com a violência. Elias e Becker, ao explorar essas dinâmicas, – mesmo sem a dimensão racial posta – contribuem para a compreensão de como o imaginário racista que opera tanto material quanto simbólico. 

Pierre Bourdieu (1981), com suas teorias sobre o habitus e campos sociais, nos ajuda a  aprofundar ainda mais essa discussão. A noção de habitus, como Bourdieu sugere, é o  conjunto de disposições internalizadas pelos indivíduos ao longo de suas experiências  sociais. Esse habitus reflete-se nas práticas cotidianas e reforça a exclusão social. A branquitude, por exemplo, é naturalizada como padrão social, enquanto a negritude recebe o saldo inverso, com marginalização e estigmas como ethos. Além disso, Bourdieu descreve os campos sociais como arenas estruturadas de embates onde grupos  competem por diferentes formas de capital. No campo racial, o monopólio do capital simbólico está nas mãos da branquitude, que define os critérios de pertencimento, legitimidade e quem pode competir pelos prêmios que estão postos à disputa. Assim, o racismo, em vez de ser apenas uma prática isolada, é a estrutura, uma amálgama incorporada e reproduzida socialmente de forma habitual sem necessidade, na maioria  das vezes, de uma racionalização, visto que as estruturas que eximem a racionalização já estão postas e precedem o materialismo histórico de fato a criar que pessoas muito  parecida com Eichmann, que deu origem ao conceito da “banalidade do mal” descrita por Hannah Arendt (1998). Essas ideias ganham ainda mais profundidade com a teoria de  Michel Foucault (1987) sobre poder e controle social e, mais tarde, com Achille Mbembe (2018), quando este propõe a ideia de uma Necropolítica.  

Em “Vigiar e Punir”, Foucault descreve como as sociedades modernas disciplinam e moldam corpos e comportamentos, utilizando instituições para vigiar e normatizar os  indivíduos. O controle social se dá não apenas pela coerção física, mas pela vigilância e internalização das normas, algo que se relaciona diretamente com as formas sutis de controle racial. A metáfora do panóptico de Foucault ilustra como o poder funciona de forma invisível, mas eficaz. No contexto racial, o controle e a normatização dos corpos negros operam de maneira semelhante, com o racismo sendo reforçado por instituições  e práticas que disciplinam e controlam as populações radicalizadas ao ponto de os próprios negros concordarem com lugares que podem acessar ou não, muito semelhante  á segregação racial americana, sendo que a segregação a brasileira funciona de forma  sutil, sofisticada, romântica e cruel.  

Já Mbembe com sua Necropolítica trata do poder soberano de determinar quem pode  viver e quem deve morrer, ao considerar como a violência e a exclusão racial são  incorporadas e naturalizadas nas práticas cotidianas. O habitus, para Bourdieu, é o  conjunto de disposições internalizadas que orientam comportamentos, os conscientes e os não. Na necropolítica, essas disposições são moldadas por um raciocínio de morte,  onde certos corpos, os negros, são considerados descartáveis e/ou supérfluos pelo Estado. Esse processo, possibilitado por uma história de colonialismo, capitalismo e racismo, torna-se parte do habitus racial, em que a desvalorização e eliminação desses  corpos simplesmente acontece. Assim, o habitus racista, legitima e perpetua a  necropolítica, criando um campo social onde a vida de alguns é constantemente  desumanizada e sujeita à violência, sem que a estrutura de poder seja contestada de  forma direta pelos cidadãos “estabelecidos”. 

Ao integrar as contribuições de Elias, Becker, Bourdieu, Foucault, quatro homens brancos, é possível construir uma análise robusta das dinâmicas de exclusão social, porém, é Mbembe, Guerreiro Ramos, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiros et all, que nos ajudam a  aprofundar e escurecer as questões de natureza racial. O racismo é estruturado tanto por práticas visíveis e por mecanismos simbólicos e materiais que perpetuam a marginalização dos negros. As lutas antirracistas, então, não se resumem a uma simples contestação de práticas discriminatórias, mas a uma tentativa de desmantelar um sistema estrutural enraizado que define quem pertence e quem está à margem. As contribuições desses autores são fundamentais para compreender as dinâmicas sociais, porém, são os autores negros que nos dão a dimensão das complexidades do racismo e as barreiras que  os “outsiders” enfrentam na busca por igualdade e reconhecimento em sociedades profundamente desiguais e atravessadas pelo habitus racista, como a brasileira.

As lutas antirracistas, então, não se resumem a uma simples contestação de práticas discriminatórias, mas a uma tentativa de desmantelar um sistema estrutural enraizado que define quem pertence e quem está à margem.

No Brasil, autoras como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e Luiza Bairros expõem as intersecções entre racismo estrutural e seus efeitos sobre a população negra. Gonzalez, com a “amefricanidade”, reflete sobre saúde mental e educação a partir da mulher negra, enquanto Carneiro trata da violência racial e de gênero. Bairros, ao discutir a interseccionalidade, revela como o racismo institucional perpetua a marginalização. Carla Akotirene, com a interseccionalidade, mostra como opressões raciais e de gênero impactam a vida negra no Brasil. Essas autoras são cruciais para compreender as ramificações do racismo no cotidiano.

Assim como Eichmann, que não refletia sobre o significado moral de suas ações porque estava “apenas cumprindo ordens”, muitas pessoas agem de maneira racista de forma automática, apenas seguindo os padrões de comportamento estabelecidos em sua sociedade. Para essas pessoas, o racismo se cristaliza no habitus, uma forma de conduta adquirida desde cedo, por meio de interações sociais, instituições, e um campo social onde o privilégio racial é naturalizado. Nesse sentido, o racismo se torna uma prática banal, ou seja, invisível para quem o pratica, mas devastador para quem o experimenta. 

Um exemplo disso pode ser visto na forma como pessoas “bondosas”, “educadas” e até mesmo “progressistas” podem reproduzir ações racistas sem estarem cientes de seu impacto. Essas pessoas não se veem como agentes do racismo, mas suas atitudes – desde microagressões, como estereotipar ou invisibilizar corpos negros, até práticas institucionais mais amplas, como a exclusão de negros de espaços de poder – fazem parte de uma engrenagem que perpetua o sistema de exclusão racial. Como Arendt demonstrou com Eichmann, o perigo não está apenas nos indivíduos maliciosos, mas naqueles que não refletem criticamente sobre os sistemas dos quais participam.

O habitus racista, assim como a “banalidade do mal”, não precisa de uma consciência explícita para ser devastador. Ele se infiltra nas práticas diárias e nos padrões de comportamento, na maneira como as escolas, as empresas e até os grupos sociais operam, muitas vezes com a desculpa de que estão “apenas seguindo o que é normal”. As pessoas que não percebem isso, agem sem intenção de ferir, mas radicalizam e racializam a experiência dos que sofrem racismo todos os dias, reforçando uma ordem social que não está escrita em forma de lei, mas os marginaliza e matam.

A sofisticação do racismo moderno está justamente nessa banalidade. Ele não é mais (somente) o racismo explícito dos linchamentos ou da segregação oficial, mas o racismo sutil, que se disfarça de neutralidade ou de “normalidade”, e que é sustentado por pessoas bem-intencionadas que não percebem seu papel em sua reprodução. Essas pessoas são, em muitos casos, as “Eichmanns” do racismo estrutural, contribuindo para um sistema de exclusão sem perceber a gravidade de suas ações, simplesmente porque elas foram educadas a agir assim e porque o habitus racista é algo que elas carregam como parte de sua formação social.

Para desmontar esse sistema, é essencial reconhecer que o racismo não é apenas uma questão de intenções ou de caráter individual, mas de práticas estruturadas que se reproduzem por meio de hábitos cotidianos e instituições que parecem neutras. O desafio é quebrar o ciclo da banalidade do racismo e trazer à consciência essas práticas que, como o “mal banal” de Arendt, são devastadoras justamente por serem tão profundamente incorporadas e passam despercebidas.

Para desmontar esse sistema, é essencial reconhecer que o racismo não é apenas uma questão de intenções ou de caráter individual, mas de práticas estruturadas que se reproduzem por meio de hábitos cotidianos e instituições que parecem neutras.

Ao combinar Elias, Becker e Bourdieu, vemos que o racismo é um fenômeno estrutural, que atravessa os campos sociais e se inscreve profundamente nos corpos e nas mentes, tornando a exclusão e o preconceito quase imperceptíveis para os “estabelecidos”, mas devastadores para os “outsiders”. A transformação desse sistema exige, então, uma mudança radical no habitus social e nas configurações de poder que estruturam os campos onde o racismo se perpetua. Quando nos permitimos olhar pelas lentes de Bourdieu, muito embora ele não tenha olhado para as questões raciais e sim de classe, percebemos que o racismo não se trata apenas de uma relação de poder visível – como Elias sugere – ou de uma rotulação externa – como Becker argumenta -, mas também de um processo invisível de inculcação, internalização e reprodução do habitus que molda as percepções e comportamentos raciais ao longo do tempo. Isso ajuda a explicar porque a mudança nas dinâmicas raciais é tão difícil, já que o racismo está embutido nas práticas e disposições cotidianas que são reproduzidas dentro dos campos sociais quase que a de forma a gerar automação dos corpos.

Por fim (…) o conceito de “patologia social do branco brasileiro”, elaborado por Alberto Guerreiro Ramos, nos ajuda a decifrar o conjunto de comportamentos e atitudes que evidenciam a desestruturação das relações sociais em uma sociedade marcada pela desigualdade racial. Para Guerreiro Ramos, essa patologia se manifesta na dificuldade dos brancos em reconhecer-se privilegiado em um contexto de opressão sistêmica. Esse fenômeno é uma consequência histórica da colonização e da escravidão, que moldaram um imaginário social onde o branco é associado ao valor, ao poder e à norma. Assim, a negação do racismo e a invisibilidade da população negra tornam-se características desta patológicas que perpetua a exclusão e a marginalização, permitindo que os brancos mantenham sua posição de privilégio sem se deparar com a realidade das desigualdades estruturais que estão postas antes mesmo dele nascer e permaneceram após o se ocaso. 

Além disso, a patologia social do branco brasileiro se traduz em uma série de defesas psíquicas que dificultam a transformação social. O branco brasileiro, esse ser, muitas vezes adota posturas de negação ou minimização das injustiças raciais, utilizando mecanismos como a justificativa da meritocracia e a desresponsabilização pelo passado colonial e escravocrata. Essa dinâmica não apenas perpetua a opressão, mas também impede uma reflexão crítica sobre a própria identidade e os valores que sustentam a sociedade. Ao não confrontar a sua herança cultural e as estruturas que favorecem a branquitude, o branco brasileiro se afasta da possibilidade de um diálogo autêntico e de uma construção coletiva de um futuro mais equitativo. Dessa forma, a patologia social do branco é tanto uma questão individual quanto coletiva, é CPF e CNPJ, que requer um engajamento profundo e consciente na luta contra o racismo. É preciso intencionalidade.

Vitor Del Rey é bacharel em Ciências Sociais pelo CPDOC/FGV e mestre em Administração Pública pela EBAPE/FGV. Alumni do MIT, MBA em Finanças de Impacto pela Universidad Torcuato Di Tella, Argentina, Alumni do PDC, na Fundação Dom Cabral, e Alumni em ESG na Saint Paul. É Professor Convidado na Fundação Dom Cabral, Presidente do Instituto GUETTO e Fundador da Escola da Ponte para Pretxs. Ele cursou o ensino fundamental e médio em escolas públicas e, desde 2019, tem como missão capacitar pessoas pretas e pardas para o mercado de trabalho. Seu compromisso com a igualdade e a inclusão é uma parte fundamental de sua trajetória.