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Hackeando o Sistema por Dentro, mas não o sistema que você está pensando

Vitor Del Rey, professor convidado da Fundação Dom Cabral, propõe uma discussão sobre as mudanças necessárias em aspectos como sustentabilidade, solidariedade e justiça social a partir da ótica do mercado

Convidado Fundação Dom Cabral
17 de dezembro de 2024
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*Por Vítor Del Rey, professor da Fundação Dom Cabral e presidente do Instituto GUETTO

Vivemos em um mundo de profundas contradições. Enquanto discursos sobre economia de bem-estar ganham força em conferências internacionais e nos debates acadêmicos, a realidade cotidiana de milhões de pessoas expõe a desigualdade estrutural que perpetua o sofrimento e a exclusão. É possível discutir sustentabilidade, solidariedade e justiça social sem enfrentar diretamente as bases materiais e históricas que sustentam essas desigualdades? Mais importante, como abordar soluções que não sejam apenas para os poucos privilegiados que podem se dar ao luxo de pensar no longo prazo?

Vamos começar pelo: Fetiche da Mercadoria Verde – um exemplo claro de como a sustentabilidade tem sido mercantilizada está no mercado de roupas biodegradáveis. Em muitos países, como o Brasil, uma única peça desse tipo pode custar metade de um salário-mínimo. Essa realidade nos obriga a perguntar: para quem essas soluções foram feitas? Certamente não para a maioria da população, que vive em condições de extrema pobreza ou precisa escolher entre comprar comida ou investir em uma roupa “sustentável”. A teoria marxista do “fetiche da mercadoria” nos ajuda a compreender esse fenômeno. Ao transformar a sustentabilidade em um produto caro e excludente, perdemos de vista a verdadeira luta por justiça ambiental e social. O valor atribuído a essas roupas não está apenas no material ou na tecnologia empregada, mas no status simbólico que carregam. Vestir uma roupa biodegradável passa a ser um sinal de virtude ambiental, mas apenas para aqueles que podem pagar por esse privilégio, isso nos faz lembrar o texto de Bourdieu onde ele vai dizer que: Não há atos desinteressados.

Nessa toada, é preciso dizer que: os Pobres Sempre Salvaram o Mundo, fato que é frequentemente ignorado é que as populações pobres têm sido as verdadeiras protagonistas de uma economia mais sustentável. Elas praticam a circularidade por necessidade, reaproveitando roupas, utensílios e alimentos. Diferentemente da elite que queima querosene em viagens mensais de avião, os pobres vivem de forma local e com baixo impacto ambiental. Essa economia orgânica, fundada na solidariedade e na subsistência, é invisível nos debates sobre sustentabilidade. Quando uma família inteira compartilha uma única camisa escolar ou conserta um sapato pela terceira vez, estão fazendo o que hoje é glamourizado como “economia circular”. No entanto, essa prática é vista mais como um sinal de carência do que como exemplo a ser seguido.

No Brasil e em outros contextos globais, a violência estrutural torna ainda mais urgente a discussão sobre como a economia de bem-estar pode incluir aqueles que vivem no Sul global e na África. Imagine uma jovem negra em uma comunidade periférica acordando ao som de helicópteros da polícia sobrevoando sua casa, enquanto um confronto armado entre traficantes e policiais fecha escolas e postos de saúde. Esse cenário é cotidiano para muitos brasileiros, que revelam a Violência Estrutural e os Impactos do Racismo.

A violência não afeta apenas a integridade física, mas cria um ciclo de exclusão. Escolas que não abrem significam crianças fora das salas de aula, em alguns casos, sem a única refeição diária, e famílias que precisam abandonar o trabalho para cuidar delas. O fechamento de serviços de saúde impede que pessoas com condições crônicas recebam cuidados essenciais. E, acima de tudo, o medo constante eleva os níveis de cortisol, contribuindo para uma epidemia de ansiedade e problemas de saúde mental.

Falar de bem-estar em um contexto como esse é quase absurdo. Como ouvir os pássaros ou a voz da natureza quando o som dominante é o de tiros e sirenes? É preciso que qualquer abordagem de economia de bem-estar leve em consideração não apenas os dados macroeconômicos, mas as realidades vividas por aqueles que estão na base da pirâmide.

Porém, na França, o Caso de Mayotte é Uma Tragédia Invisibilizada. Não seu se você lembra, mas: passagem do ciclone Chido pela ilha francesa de Mayotte é um exemplo gritante de como o racismo ambiental molda a forma como lidamos com desastres ambientais. Com ventos de mais de 220 km/h, o ciclone devastou o arquipélago, deixando 14 mortes confirmadas e possivelmente milhares de outras ainda não contabilizadas. A questão toda é que Mayotte é parte da França, mas não da França das catedrais e dos vinhedos. É a França africana, onde 3 em cada 4 pessoas vivem abaixo da linha da pobreza. A falta de atenção internacional a essa tragédia é um reflexo de como vidas negras continuam sendo desvalorizadas. Enquanto desastres em regiões ricas recebem cobertura imediata e mobilização de recursos, Mayotte e sua população predominantemente negra são deixadas à própria sorte. Esse é um lembrete cruel de que o debate sobre sustentabilidade e bem-estar não pode ser desconectado das dinâmicas raciais e econômicas que estruturam o mundo. Se quisermos hackear o sistema por dentro, precisamos, primeiro, reconhecer e confrontar essas desigualdades.

Da ecologia de Saberes à uma sagacidade filosófica, é Um Passo Necessário. Apesar de todas essas dificuldades, é fundamental construir pontes entre contextos extremamente diferentes. Não moro no País de Gales, mas acredito que temos muito a aprender uns com os outros. Essa troca só será frutífera se mantivermos os pés no chão e lembrarmos que soluções universais frequentemente ignoram as especificidades locais. A economia de bem-estar precisa ser radicalmente inclusiva. Isso significa repensar não apenas os produtos que consumimos, mas os sistemas que os produzem e distribuem. Também significa valorizar as práticas sustentáveis já existentes entre as populações marginalizadas e garantir que elas tenham acesso às mesmas oportunidades que aqueles em contextos privilegiados.

Por fim, eu proponho um Hackeamento Necessário, ademais, Hackear o sistema por dentro exige mais do que denunciar suas falhas; é preciso propor alternativas que sejam verdadeiramente acessíveis e sustentáveis. Isso inclui questionar o fetiche da mercadoria que transforma sustentabilidade em um privilégio de poucos, reconhecer as contribuições históricas das populações pobres para o bem-estar do planeta e enfrentar de frente as dinâmicas de violência e racismo que perpetuam a exclusão. Uma economia de bem-estar não pode ser apenas uma aspiração de elites acadêmicas ou políticas. Ela precisa ser uma realidade concreta para as comunidades que vivem sob o peso da pobreza, da violência e da exclusão. Hackear o sistema por dentro significa, antes de tudo, garantir que essas vozes sejam ouvidas e que suas experiências guiem o caminho para um futuro mais justo e solidário.

No cerne do discurso da sustentabilidade moderna, repousa um paradoxo que não pode ser ignorado: a “classe da sustentabilidade” é frequentemente menos sustentável. Como Aaron Vansintjan denuncia em The Sustainability Class: How to Take Back Our Future, práticas que prometem salvar o planeta são frequentemente moldadas para atender os interesses de elites econômicas e sociais, enquanto deixam de lado as populações mais vulneráveis. É um sistema que vende a ideia de um futuro “verde” com preços inacessíveis, ignorando que o verdadeiro impacto ambiental sempre recai sobre quem menos consome. Em Mayotte, uma ilha negligenciada do Índico, as vítimas do ciclone Chido nos lembram cruelmente que a crise climática e a crise social são inseparáveis, especialmente quando corpos negros são sistematicamente invisibilizados.

Enquanto as elites ostentam roupas biodegradáveis, viagens “eco-friendly” e dietas que custam mais do que uma renda mensal mínima, os pobres continuam sendo os verdadeiros sustentáveis. Eles praticam a economia circular não porque é moda, mas porque é sobrevivência. Não trocam de guarda-roupa a cada estação, não queimam querosene em voos corporativos e, frequentemente, nem sequer têm acesso ao consumo desnecessário que define os excessos modernos. Nesse contexto, as soluções oferecidas pela classe da sustentabilidade soam como um novo fetiche da mercadoria: símbolos de status disfarçados de altruísmo ecológico. Para hackear o sistema, precisamos abandonar essa fachada e olhar para o exemplo daqueles que sempre sustentaram o planeta sob as piores condições possíveis.

A verdadeira revolução começa quando confrontamos a hipocrisia de um modelo que insiste em salvar o planeta enquanto perpetua desigualdades e exclusões. Não se trata de descartar iniciativas como roupas biodegradáveis ou alternativas tecnológicas, mas de reconhecer que elas são apenas ferramentas – e não o fim. O fim deve ser a redistribuição de poder, renda e recursos, reconhecendo que nenhuma solução será completa enquanto corpos negros e pobres continuarem invisíveis no debate sobre o futuro do planeta. Hackear o sistema é reconhecer que os mais pobres não precisam aprender sustentabilidade com as elites; são elas que devem aprender com os pobres. E, nesse aprendizado, talvez possamos finalmente transformar a utopia ambiental em uma realidade acessível para todos.

Vitor Del Rey, professor convidado da Fundação Dom Cabral, propõe uma discussão sobre as mudanças necessárias em aspectos como sustentabilidade, solidariedade e justiça social a partir de uma ótica interna

Vitor Del Rey* é bacharel em Ciências Sociais pelo CPDOC/FGV e mestre em Administração Pública pela EBAPE/FGV. Alumni do MIT, MBA em Finanças de Impacto pela Universidad Torcuato Di Tella, Argentina, Alumni do PDC, na Fundação Dom Cabral, e Alumni em ESG na Saint Paul. É Professor Convidado na Fundação Dom Cabral, Presidente do Instituto GUETTO e Fundador da Escola da Ponte para Pretxs. Ele cursou o ensino fundamental e médio em escolas públicas e, desde 2019, tem como missão capacitar pessoas pretas e pardas para o mercado de trabalho. Seu compromisso com a igualdade e a inclusão é uma parte fundamental de sua trajetória.

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