Com experiência global, executivo da multinacional de beleza ressalta importância do bem-estar e do planejamento frente a era de transformações
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Liderar uma posição global no RH a partir do Brasil “não é trivial” – mas muitas coisas também não são triviais ao longo da carreira de Cinthia Bossi, diretora global de gente, gestão e comunicação da Votorantim Cimentos. Formada em Psicologia, ela sempre quis trabalhar com desenvolvimento de pessoas – mas não com crianças, e sim com adultos. Depois, ela passou muito tempo sem “se enxergar como minoria”, até entender o impacto que poderia causar a partir de seu lugar de fala como uma liderança feminina, passando por empresas como Alcoa, Syngenta e ABN-Amro Bank.
“Ao voltar para trás, vejo que trouxe menos impacto do que poderia, justamente por não ter tido a capacidade de perceber o lugar de impacto, o lugar de fala que a posição por si só trás”, recorda-se a executiva. “Mas me dei conta dos meus privilégios – e percebi que não estava honrando um espaço que eu tinha para contribuir para a transformação, para que as mulheres conseguissem ser o seu melhor. Aí sim, consegui valorizar iniciativas que trouxessem luz para grupos minorizados.”
Responsável por cuidar de cerca de 14 mil pessoas não só no Brasil, mas também em cantos do mundo como EUA, Canadá, Turquia ou Espanha, Cinthia assumiu a liderança global do RH da Votorantim Cimentos em maio de 2023. A decisão começou ao perceber que não queria sair do País. “Na Syngenta, eu já ocupava o último nível que eu poderia ter no Brasil. Meu lugar de materializar impacto estava no Brasil e eu queria genuinamente seguir aqui”, conta ela, que viveu vários aprendizados ao sentar na nova cadeira. “Ao estar numa posição de liderança global, não há mais uma posição de troca. Não há mais o crivo de um líder dizer que algo tem ou não tem sentido”, diz.
Na entrevista a Cajuína, Cinthia não só recorda como foi parar no RH, como também repassa sua trajetória ao longo de mais de duas décadas de carreira. Temas como liderança feminina ou criar uma cultura brasileira também perpassam a conversa, além de desafios presentes em seu dia a dia. “Hoje, temos na indústria um turnover aumentado, com jovens não vendo mais a indústria com a mesma atratividade. Ao mesmo tempo, trabalhamos com a jornada da digitalização”, revela a executiva. Para ela, porém, parte da resposta está na diversidade:
É importante desconstruir paradigmas. Hoje, com a escassez de profissionais, quem não for capaz de acessar 100% da população perde a capacidade de sustentar seu negócio no médio e no longo prazo.
É engraçado ouvir essa pergunta. No último final de semana, meu sobrinho de 15 anos estava pensando em que carreira seguir e veio me perguntar: “tia, eu sei que você trabalha com RH, mas o que é isso?”. A verdade é que eu sempre tive vontade de trabalhar com desenvolvimento de pessoas. Era algo que eu gostava: eu dava aula de inglês para crianças, eu tinha uma coisa de ensinar. Mas logo percebi que essa troca no mundo das crianças não era a troca que eu queria fazer, era uma troca do mundo adulto. Fui fazer Psicologia, mas não porque queria impactar alguém no 1:1. Eu não queria o lugar da terapia e da psicanálise, mas sim entender melhor o ser humano, numa linha até idealista de transformação, para mudar a sociedade. Por outro lado, meu pai trabalhava em organização, no universo contábil-financeiro, mas isso me possibilitou conhecer o ambiente das empresas e perceber que era o lugar onde eu queria de fato gerar impacto. No fim das contas, só no último ano da faculdade é que eu pude fazer estágio: na época, fiz uma lista de contatos dos RHs, imprimi meu currículo, mandei pelo correio e enviei para várias empresas. A Alcoa entrou em contato, lá comecei minha carreira e fiquei 14 anos.
No fundo, o papel do RH é entender como adaptar cada cultura às necessidades do ser humano.
Há uma coisa que segue sendo verdade independentemente do setor: pessoas são pessoas. Pode mudar a organização, o negócio, o formato, mas as necessidades do ser humano são as mesmas. No fundo, o papel do RH é entender como adaptar cada cultura às necessidades do ser humano. Todo mundo quer ser reconhecido, ter oportunidades, se desenvolver, ser desafiado e dar sua contribuição. É o pedaço universal do ser humano. O desafio é como alavancar isso em diferentes contextos, como fazer essa equação funcionar respeitando a cultura de cada organização. Não tem melhor ou pior, são só diferentes organizações com diferentes culturas, cheias de oportunidades. E não existe solução que funcione para todas da mesma maneira.
Foi bem interessante. Em alguns momentos, ao voltar para trás, eu vejo que trouxe menos impacto do que poderia, justamente por não ter tido a capacidade de perceber o lugar de impacto, o lugar de fala que a posição por si só trás. Levei um tempo para perceber como, em pautas como a diversidade, eu me via numa posição junto ao todo – embora não estivesse na maioria. Só percebi o impacto que eu poderia ter quando me permiti olhar a posição de outra perspectiva. Não foi uma jornada óbvia: durante muito tempo, eu estava focada nas entregas e menos no meu papel. Neste lugar de olhar sempre para o outro, perdi a perspectiva do quanto eu tinha a capacidade de impactar. É preciso ver que as organizações são um lugar de impacto e precisam ser: é onde passamos a maior parte do nosso tempo. Se você não puder atingir um objetivo que vá além desse, se não puder materializar na organização um bom propósito, perde-se a oportunidade de trazer impacto cada vez maior. Hoje, tento usar meu lugar para me posicionar sobre questões relevantes, trazendo uma contribuição que pode ir além dos muros da organização.
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Em todas as minhas mudanças, eu passei por uma reflexão de ciclo, do que eu tinha nas mãos e onde estava o legado do que eu estava deixando. Na Syngenta, eu já ocupava o último nível que eu poderia ter no Brasil e eu decidi que não ia seguir em frente. Era uma decisão alinhada ao meu propósito: meu lugar de materializar impacto estava no Brasil e eu queria genuinamente seguir aqui. Nesse meio do caminho, a Votorantim Cimentos aconteceu. Uma pessoa que eu conhecia me contou da oportunidade, fizemos conversas que começaram despretensiosas e as coisas começaram a fazer sentido. Era uma posição global no Brasil, algo que poucas empresas conseguem oferecer. Era uma posição cheia de oportunidades, em uma companhia de governança forte e conhecida pela robustez da governança. A conversa evoluiu num processo longo, mas a decisão foi muito convicta.
Cheguei num momento interessante, em que a Votorantim Cimentos tinha acabado de mudar de CEO, o que já traz uma dinâmica diferente para a organização. Foi um desafio apoiar a transição e o posicionamento de um novo CEO na organização. Como desafio da organização, também havia a busca por transformar aspectos culturais, como uma cultura mais focada em resultados e em agilidade nas tomadas de decisão. Não que isso não existisse antes: em 2020, a VC já tinha feito uma revisão importante da cultura, honrando sua história e entendendo as mudanças necessárias para avançar. Pessoalmente, também houve questões para entender um novo modelo de governança e aprender a navegar, conhecendo o contexto das tomadas de decisão e aprovação. Além disso, vínhamos de um modelo em que as regiões trabalhavam isoladas e perdiam capacidades de sinergia. Foi preciso liderar um movimento de mudança que não tirou autonomia das regiões, cada uma com objetivos e desafios de negócio, mas buscamos olhar para sinergias e otimizações do trabalho, assegurando também uma experiência dos funcionários mais parecida, com uma cultura que todos vivam independentemente de onde estão.
É engraçado: quando vim para cá, achei que minha maior curva de aprendizado seria na governança de uma nova organização. Mas, na verdade, foi por ocupar uma posição global – por aspectos que eu não havia me dado conta antes de sentar numa cadeira dessas. Ao estar numa posição de liderança global, não há mais uma posição de troca. Não há mais o crivo de um líder dizer que algo tem ou não tem sentido. De vez em quando, sinto vontade de “ter um global”, porque não tem ninguém que vai decidir por nós. Por um lado, isso é bacana porque dá uma autonomia grande de navegação, de criar, buscar e transformar, gerando impacto. Por outro, há uma responsabilidade muito maior justamente porque não há esse crivo superior. Hoje, conto demais com meu time para me ajudar a fazer esse crivo. É outra responsabilidade: se meu time não se sentir confortável para me desafiar, posso perder o crivo e tomar decisões erradas por falta de equilíbrio. Outra questão é entender que eu tenho níveis superiores, mas que não são níveis técnicos, são níveis de negócios. Isso faz com que o meu lado técnico precise beber de muitas fontes, olhando para fora, buscando melhores práticas – e ao mesmo tempo buscando ser uma fonte de inspiração e conexão para a empresa.
Não é trivial. Até porque a Votorantim é uma marca muito reconhecida no País, até os membros da família fundadora são reconhecidos. Na Europa, onde temos mais de 1,7 mil colaboradores, ou na América do Norte, com quase 3 mil, isso não é verdade. Lá, a Votorantim Cimentos não é uma marca com a qual as pessoas se conectam. No Canadá, por exemplo, nosso maior volume de interessados em vagas é de brasileiros, buscando reconexão com o país de origem. Atrair profissionais nativos – canadenses, espanhóis, turcos – é mais complexo. Ter uma matriz brasileira também não é um padrão comum, em uma cultura que muitas vezes é desconhecida, que não permite uma leitura fácil como uma empresa em que a matriz é americana ou chinesa. Por outro lado, não é só uma adaptação da cultura brasileira: algumas das empresas que construímos vieram de aquisições, então temos de adaptar muitas culturas diferentes. É uma jornada. Confesso que não alcançamos ainda, nas outras regiões, o mesmo nível de conexão que temos no Brasil, mas é um trabalho que vem avançando. Hoje já quebramos o paradigma de que o direcionamento estratégico vem do Brasil. Para todo mundo, isso já é claro e pacificado, fazendo parte da nossa forma de operar. Mas não é uma jornada trivial.
O mindset é que precisamos mudar para usar toda a tecnologia disponível, tanto para sermos mais atrativos quanto para lidar com a escassez de mão de obra.
Uma questão é a cultura e como vamos construí-la para uma estratégia pensando em 2030. Tenho uma pauta de atratividade e retenção, que envolve tornar a indústria atrativa para o jovem. É um enorme desafio que temos: hoje, temos na indústria um turnover aumentado, com jovens não vendo mais a indústria com a mesma atratividade – e especialmente a indústria pesada. Historicamente, a organização aprendeu a desenvolver pessoas ao longo de muitos anos. Como fazer isso conviver com o jovem que chega, precisa se desenvolver e ser capacitado para ter entregas consistentes e de maneira rápida, porque hoje os ciclos profissionais são mais curtos? É preciso repensar muitas coisas. Ao mesmo tempo, trabalhamos na jornada da digitalização, pensando em temas como indústria 4.0, logística 4.0, comercial e vendas trabalhando com IA, as áreas de apoio entendendo como podem ser mais eficientes com o uso de tecnologia. O mindset é que precisamos mudar para usar toda a tecnologia disponível, tanto para sermos mais atrativos quanto para lidar com a escassez de mão de obra. Vamos ter de trabalhar cada vez mais com automação e eficiência para fazer mais com a mesma quantidade de pessoas – ou até menos. São três grandes desafios.
Ao longo dos anos, o Grupo Votorantim amadureceu em movimentos pendulares. Em certo momento da história, o grupo esteve muito conectado. Depois, se promoveu a independência dos negócios, porque cada um tinha necessidades específicas. Hoje, temos um modelo de equilíbrio, com centralização de processos operacionais e independência dos negócios. É algo que o grupo oferece para todas as investidas, enquanto buscamos oportunidades de sinergia no que não é transacional. Um exemplo? Hoje enxergamos o grupo como oportunidade de desenvolvimento de carreira. Talvez na Votorantim Cimentos eu não consiga oferecer oportunidade de crescimento para 100% dos profissionais, mas com o grupo eu posso conseguir. E quanto mais conseguirmos, mais efetivos seremos na retenção e atratividade dos profissionais.
Eu vivi e vivo essa dualidade. Dentro do RH, me senti uma entre tantas, sem perceber essa diferença. Quando estou com o negócio, vejo a diferença. É me sentir incluída e ser minoria ao mesmo tempo. Durante muito tempo, eu tinha a posição de não me enxergar como minoria – e acreditar muito mais no “eu fui atrás”, no meu mérito pessoal. Eu era contra cotas, acreditava que olhar para a inclusão de mulheres era uma pauta que excluía. Mas, em determinado momento, me dei conta que tinha tido um privilégio grande e que pouquíssimas mulheres tiveram esse privilégio. Tenho um marido que me apoiou demais e dividiu sempre as responsabilidades. Tive líderes para os quais ser mulher nunca foi barreira. Quando me dei conta desses privilégios, percebi que não estava honrando um espaço que eu tinha para contribuir para a transformação, para que as mulheres conseguissem ser o seu melhor. Aí sim, consegui valorizar iniciativas que trouxessem luz para grupos minorizados. A partir daí, comecei a revisitar uma série de questões e hoje tenho uma empatia diferente. Ainda tenho um olhar que precisa ser lapidado, percebo vieses conscientes arraigados que precisamos desconstruir. Todos erram tentando acertar, mas acredito na genuína defesa que cada um faz para ocupar seu espaço. Só quebramos barreiras ao desconstruir ideias equivocadas, para que os espaços sejam melhores ocupados e a inclusão possa de fato acontecer.
É trabalhar sobre esse lugar da desconstrução. A indústria é um ambiente que vem de uma história mais masculina e tem muita educação a ser feita para que as pessoas possam trazer diferentes perspectivas, romper com os paradigmas. Temos trabalhado para mostrar para as mulheres que essa é uma indústria possível. Hoje temos 2,3 mil mulheres no grupo – em 17% da nossa força de trabalho. Encerramos 2023 com 22,8% dos cargos de liderança ocupados por mulheres – nossa meta para 2030 é alcançar 25%. Além disso, formamos operadoras de betoneiras, motoristas de betoneiras, e busco essas mulheres para ocupar essas posições. Lutamos muito para quebrar o paradigma de trazer mulheres para dentro “sem abrir mão da competência”, como se mulheres e competência não andassem juntas. Para isso, é preciso muito diálogo: em uma roda de conversa, descobrimos coisas simples, mas que mudam o dia a dia. Percebemos que a faixa luminosa do uniforme estava num lugar desconfortável para as mulheres ou que não havia uniforme para gestantes. Fomos lá e ajustamos, mas só depois do diálogo. É importante desconstruir os paradigmas e mostrar que é possível. São questões muito claras que a gente traz para a organização, até para garantir a sustentação do nosso negócio. Hoje, com a escassez de profissionais, quem não for capaz de acessar 100% da população perde a capacidade de sustentar seu negócio no médio e no longo prazo.
Quando vemos a sociedade dar passos para trás, isso nos preocupa, mas quando avançamos juntos, avançamos mais fortes.
As pessoas têm se conectado de diferentes formas. Alguns líderes já articulam essa desconstrução como verdade. Outros articulam como política. Alguns ainda não sabem articular, mas temos trabalhado com todos para avançar na jornada. A desconstrução na sociedade ajuda. Quando vemos a sociedade dar passos para trás, isso nos preocupa, mas quando avançamos juntos, avançamos mais fortes. Se todos olham em prol do mesmo movimento, ganhamos forças. Cada organização tem que buscar seu lugar nessa jornada e a conexão com os negócios. É por aí que temos avançado e vamos seguir avançando.
Um livro que estou lendo agora e tem me encantado é o Humanidade, do Rutger Bregman. Ele traz uma visão otimista do homem, importante nesse momento em que muita gente olha o “copo meio vazio” da humanidade. Sabe o lugar de acreditar que o ser humano tem jeito e é bom na sua essência? É algo importante e valioso para trabalhar. Gosto muito da trilogia do Yuval Noah Harari também: é um conjunto de livros que ajudam a olhar para perspectivas de crescimento a partir da história. De podcast, um que tenho ouvido muito é o Coaching for Leaders. É muito antigo, tem mais de 800 episódios, mas traz muitas entrevistas sobre diferentes aspectos de liderança. Gosto também do Work/Life, do Adam Grant. E um que escuto muito quando quero ouvir coisas completamente diferentes, mas que trazem a perspectiva do humano em diversos contextos, é a Rádio Novelo.
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