Entenda o que as organizações podem – e devem! – fazer para impulsionar o crescimento de profissionais negros em seus negócios.
Em busca do tempo perdido: uma conversa com Luís Mauro Sá Martino, autor de ‘Sem Tempo Pra Nada’
Avanço das tecnologias e pressão social geraram sensação comum de que ninguém tem mais tempo livre, diz autor; para professor da Faculade Cásper Líbero, problema é coletivo, mas organizações podem remediar assunto com planejamento, hierarquização e respeito.
“Tô sem tempo”. “Minha agenda está cheia até o mês que vem”. “Não tenho tempo para nada”. Pare e pense: quantas vezes você falou alguma dessas frases – ou o popular “sem tempo, irmão” – nas últimas semanas? Não é só você: ao longo dos últimos anos, há uma sensação corrente de que estamos todos ficando cada vez mais sem tempo, trabalhando demais e até mesmo curtindo nosso tempo de lazer de maneira produtiva – atire a primeira pedra quem nunca fez uma meta de leitura ou de séries assistidas ao longo do ano.
Entender como chegamos a esse patamar é justamente uma das missões do livro Sem Tempo Para Nada, do cientista social, jornalista e professor da Faculdade Cásper Líbero Luís Mauro Sá Martino. “Há pelo menos 120 anos, nós trabalhamos no tempo da tecnologia em vez de fazer a tecnologia trabalhar no nosso tempo. Como estamos todos nessa, a velocidade é cumulativa: cada um de nós, sem pensar, acaba apressando os outros, o que faz de repente todo mundo ficar acelerado e sem tempo”, diz o professor a Cajuína.
É uma postura que pode gerar múltiplos problemas, seja no nível individual ou nas organizações – de cansaço e perda de produtividade até o velho conhecido burnout. Na entrevista a seguir, Luís Mauro fala não só sobre como essa questão da “falta de tempo” não é um problema individual, mas sim da sociedade em que vivemos. Ele também sugere algumas posturas e maneiras que as organizações e as lideranças podem olhar para o tema, evitando piorar uma situação já bastante complicada.
“Um primeiro e importante passo para melhorar o nível de saúde mental e desempenho é um planejamento de cultura voltado para respeitar o tempo das pessoas. Outro ponto importante é estabelecer regras de uso e de acionamento dos funcionários, como, por exemplo, não mandar mais mensagens depois de um determinado horário”, diz o pesquisador. Ele também recomenda que nós todos paremos de glamourizar o excesso de trabalho.
É uma péssima cultura. Voltar do feriado e dizer que trabalhou em vez de descansar? Isso não é vestir a camisa da empresa, é se preparar para vestir um avental hospitalar.
O nome do seu livro é “Sem Tempo Pra Nada”, uma sensação que é bastante comum nos dias de hoje – e só parece piorar. Para começar: como é que a gente chegou nesse patamar?
Tem várias dimensões que ajudam a explicar essa percepção. Uma é a evolução da tecnologia, que traz um tempo muito rápido, instantâneo. Há pelo menos 120 anos, nós trabalhamos no tempo da tecnologia em vez de fazer a tecnologia trabalhar no nosso tempo – e isso vale para o trabalho e para as relações pessoais. Mandamos mensagem para um amigo e esperamos angustiados a resposta. Mandamos um e-mail e horas depois já mandamos um pedido de confirmação. E como estamos todos nessa, a velocidade é cumulativa: cada um de nós, sem pensar, acaba apressando os outros, o que faz de repente todo mundo ficar acelerado e sem tempo. Há outro ponto importante: a associação de que tempo é dinheiro, o que cria a noção de tempo produtivo. Tempo produtivo é bom, enquanto tempo de descanso gera angústia em quem está descansando, porque você está perdendo tempo – e por consequência, perdendo dinheiro. Isso faz com que a gente preencha as 24 horas do dia – e o corpo humano não foi feito para isso!
Por quê?
Nosso ciclo biológico prevê tempos de descanso, ele não é planejado para ficar ligado 24 horas por dia. Toda a natureza, se a gente analisar, trabalha com ciclos de maior e menor dispêndio de energia. Se esses ciclos são obedecidos, há um equilíbrio. Nós, humanos, temos faixas de tempo nas quais somos mais produtivos e outras em que somos menos produtivos. O ideal seria dormir quando há sono, comer quando há fome e trabalhar quando nos sentimos ativos. Há horas do dia em que a gente se sente bem para trabalhar – da mesma forma que nosso tatataravô neandertal percebia que era hora de caçar. Hoje a gente não caça, mas pega o metrô e vai pro trabalho… só que uma hora o corpo fica cansado (e de um cansaço que não tem como descansar). Em geral, as consequências da falta de tempo são físicas, e uma hora o corpo não aguenta. Às vezes, ouvimos histórias de gente que morreu depois de trabalhar 60, 80 horas direto. São casos extremos, mas todos nós estamos indo por aí.
Mais do que a percepção de falta de tempo, há quem diga que um sintoma comum hoje é o de que ninguém fica mais entediado. Faz sentido?
A nossa percepção do tempo está ligada ao ter o que fazer. Quando você tem o que fazer, o tempo é compartimentado; quanto menor cada parte for, mais se sente que está fazendo muita coisa. Quando somos crianças, o compromisso é ir pra escola e fazer a lição de casa, então você tem horas e horas livres até chegar a noite. O tempo se dilata, a gente tem a sensação de que nada acontece. Já na vida de adulto, é o contrário: cada minuto é ocupado com alguma coisa. Não há mais tempo vazio: no tempo de uma tarefa aparece uma notificação, e depois outra, e depois outra. Se a gente está em home office, tenta dar conta de home e de office ao mesmo tempo. É um número crescente de eventos para encaixar em 24 horas e isso dá a sensação de que o tempo está passando cada vez mais rápido. E para dar conta de todas as tarefas, vamos cortando do nosso tempo elementos superficiais, como vida social, lazer, tempo de sono, até chegar na saúde, no cuidado… e chega uma hora em que falamos que não vivemos mais.
Você falou de notificações, de conexão. Como a internet muda a percepção de falta de tempo?
Começo com um disclaimer: o problema não é a internet, nem as redes sociais nem o celular. O problema é das pessoas e do nosso uso de tecnologia. Para retomar as rédeas do próprio tempo, uma das primeiras atitudes que a gente deve fazer é controlar o tempo de uso de redes sociais e internet, que são baseadas em estímulos infinitos. Uma postagem estimula a ver a outra. De um post para outro, quando você vê já foi uma hora perdida. O ponto aqui é aprendermos a cuidar da tecnologia e não deixar a tecnologia cuidar de nós. Eu nasci nos anos 1980, quando o pessoal falava mal da televisão. Mas tem uma beleza aí: a TV tem um botão chamado “desligar”, e o segredo era apertar esse botão. A gente pode aplicar a mesma lógica ao celular, às redes sociais. Para dar tempo que o tempo passe, às vezes é importante sentir tédio – essa sensação maravilhosa e pouco contemporânea.
Na primeira resposta, o senhor falou sobre a questão do reforço coletivo na sensação de falta de tempo – cada pessoa vai pressionando a outra, num círculo vicioso. Como as empresas podem ajudar para que as pessoas se pressionem menos?
Nosso problema com o tempo é social, ele tem que ser endereçado pela sociedade. Dito isso, não existem soluções individuais para problemas coletivos. Nas organizações, existem culturas. É claro que nenhuma organização é isolada do resto do mundo, mas elas têm culturas. Um primeiro e importante passo para melhorar o nível de saúde mental e desempenho é um planejamento de cultura voltado para respeitar o tempo das pessoas. Organizar o tempo ajuda todo mundo a manter e melhorar sua saúde, mental ou física. É fácil começar com procedimentos simples, como planejar as atividades e lembrar que nem tudo é uma emergência. Se o ramo da empresa lida com emergências, não é algo radical, mas… se tudo é uma emergência, o problema está no planejamento – e o resultado disso é pânico. O começo é planejar e hierarquizar as tarefas. Outro ponto importante é estabelecer regras de uso e de acionamento dos funcionários, como, por exemplo, não mandar mais mensagens depois de um determinado horário. Não é pra criar uma lei marcial, claro, mas é gerenciar para que ninguém se sinta sobrecarregado por responder uma mensagem às 21 horas. Hierarquização, planejamento e respeito são bons começos.
Em muitas áreas, há questões geracionais – e um pensamento comum da liderança é o clássico “se eu passei por isso, quem está vindo aí tem que passar também”. É uma cultura que talvez não faça mais sentido hoje. Como sensibilizar as lideranças nesse tema?
É algo que pode ser bem difícil. Um ponto pra gente pensar é que os tempos não são mais os mesmos. Hoje, vivemos num grau de agitação diferente de 10 ou 20 anos atrás – e as exigências precisam estar ligadas às suas épocas. O segundo ponto para convencer líderes é lembrar que pessoas exaustas trabalham mal: em nome da produtividade, é mais importante manter uma cultura de tempo saudável. O terceiro é olhar pras condições de trabalho: será que precisamos de uma velocidade grande só porque há precarização das condições? O problema é a falta de pessoal? São questões econômicas, de planejamento. Claro que não dá para acreditar que a alternativa milagrosa é simplesmente contratar mais gente, mas acredito que é uma questão de entender o quanto se pode preservar a saúde mental num controle organizacional. Outro ponto é parar de glamourizar o excesso de trabalho. Essa é uma péssima cultura. Aquilo de voltar do feriado e dizer que trabalhou em vez de descansar? Isso é péssimo – e não é vestir a camisa da empresa, é se preparar para vestir um avental hospitalar.
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Antigamente, o trabalho era medido pelo relógio de ponto. Hoje, cada vez mais pessoas trabalham com a lógica de produtividade – que no começo pareceu interessante, mas pode ser uma enorme armadilha se não for bem cuidada. Como evitar essa armadilha?
De novo, não acredito que haja solução individual. As empresas sofrem uma pressão imensa umas das outras, o que gera um efeito cumulativo perverso. É uma questão de concorrência de mercado: se você fecha no domingo e outra empresa abre, ela ganha dinheiro e você não. Não acho que existam heróis nem vilões, mas há escolhas. Abrir no domingo significa que você vai acabar com o domingo de quem trabalha na sua empresa, vai gerar angústia, vai gerar problemas para quem precisa cuidar dos filhos ou da casa, o transporte público é mais lento… Não acho que seja justificar ou passar pano, mas este é um problema sistêmico – e dentro dele, há espaço para pequenas bondades ou pequenas maldades. Enquanto sociedade, precisamos repensar como um conjunto: por que precisamos abrir aos domingos? Precisamos de empresas que funcionem até meia noite? É preciso repensar, e eu tenho esperança – até porque já conseguimos transformar instituições que pareciam eternas e se pautavam na exploração de seres humanos.
Nos últimos tempos, falamos muito sobre flexibilidade e trabalho distribuído dentro das empresas. Por um lado, é ótimo; por outro, pode ser o estopim para comunicações fora do horário, horas extras e muita confusão. Como evitar isso?
A solução é uma das mais antigas, simples de falar e difícil de fazer: ter regras. Qualquer tipo de trabalho, com ou sem demanda, com ou sem horário, tem de estabelecer o que funciona bem para todos. É a arte de negociar e explicar que cada um tem seu tempo. Se tem duas pessoas em partes diferentes do planeta, é possível combinar um horário que funcione para ambos. É respeito. Em relação ao trabalho por demanda, é uma opção cada vez mais frequente para vários setores da sociedade, enquanto outros ainda seguem na jornada fordista, exatamente igual ao século XIX. Para quem trabalha por demanda, a responsabilidade é pensar sobre como o controle do tempo faz bem ou mal. Trabalho por demanda pode ser uma benção, mas pode ser uma armadilha: se não há tempo para determinar o trabalho, a tendência é aumentar indefinidamente essa carga.
Hoje em dia, há muitos cursos de gerenciamento de tempo e atividades nesse sentido, até mesmo aplicativos. Há soluções individuais que funcionem? Ou pelo menos paliativos?
É de cada um. Vou fazer uma comparação ruim, ok? O aquecimento é global, mas tem gente que vai comprar um ar condicionado, um ventilador ou vai passar calor. Se todos pensarmos juntos, talvez a gente resolva o problema. Mas é difícil juntar os três para resolver isso (e especialmente, convencer quem está no ar condicionado). No dia a dia, cada pessoa sabe onde o calo aperta. E eu não aponto dedos acusadores: se alguém achou um bom método de gestão de tempo, acho ótimo. No âmbito individual, fico feliz demais. Quando escrevi o livro, não quis criar um receituário fácil, do tipo “largue a internet”. Não dá para se desconectar se você trabalha com internet. Não dá para falar pra alguém dar um passeio no bosque quando está estressado se a pessoa mora na cidade. Mas é preciso pensar em estratégias realistas, e aí o paliativo para cada pessoa pode funcionar.
No começo da entrevista, você falou sobre o problema de achar que tempo é dinheiro. Então tempo não é dinheiro?
Não, tempo é qualidade e dinheiro é quantidade. Precisamos reaprender que tempo é qualidade. É claro que muita gente coloca valor numa hora de trabalho, por exemplo. Mas será que esse valor paga uma hora com sua namorada, com seu filho ou com um amigo? Como sociedade, precisamos revalorizar o tempo como qualidade. Cada instante é importante, e não dá para recuperar o tempo. Se eu não viver aquele instante, nada vai recuperar o tempo. É claro que a gente precisa trabalhar e pagar boletos. Mas, às vezes, é importante valorizar essa qualidade e segurar as pontas.
Muita gente que fala sobre gestão de tempo reforça a necessidade de um uso significativo do tempo livre. Mas que uso significativo é esse? E como as empresas podem incentivar essas atividades?
Não sei o quanto as empresas poderiam fazer além de respeitar tempo livre como tempo livre. Outra coisa importante: tempo livre não serve só para recarga de bateria. Do ponto de vista do indivíduo, é importante respeitar o tempo livre enquanto tempo livre. O Theodor Adorno já falava disso num ensaio dos anos 1960 chamado Tempo livre: na época, ele já notava que usávamos com o tempo livre a mesma lógica do tempo de trabalho, como se fosse um tempo de produção de descanso, como se fosse obrigatório você se divertir. A gente também é cobrado hoje para que o lazer obedeça a essa lógica de produtividade – como naquelas competições de quantos livros você leu num ano. Não à toa, muita gente chega das férias precisando de férias.
Outra questão importante sobre o tempo é o fato de que ele não é igual para todo mundo. Como aspectos como gênero ou classe social afetam essa percepção que a gente tem sobre o tempo?
Você tem razão: existe uma enorme desigualdade de tempo referente a questões como gênero, classes sociais e etnias. É fácil perceber isso numa questão como o deslocamento de uma pessoa para chegar até sua empresa. Se alguém demora duas horas para chegar no trabalho, sabe o que acontece com esse corpo? Ele já chega exausto para trabalhar. Há outro marcador com o qual a gente precisa lidar: há organizações hoje que abrem espaços para que uma funcionária cuide do filho. Pô, que bacana, mas… cadê o pai? Por que o tempo do pai é mais “importante” que o tempo da mãe? Por que o tempo não pode ser trabalhado para ele cuidar da criança? O uso do tempo está muito ligado às questões sociais, geográficas e étnicas de uma sociedade.
Pra fechar, você tem alguma dica de filme ou livro sobre tempo que pode ampliar essa discussão?
Tem um filme muito bonito, bem antigo, chamado O Tempo é uma Ilusão. É um filme de 1944, que conta a história de um jornalista que, todos os dias, recebe de um senhor o jornal do dia seguinte. Ao saber quais são as notícias, ele começa a correr atrás das histórias, e toda noite surge a edição do dia seguinte. Até que um dia ele recebe a edição do dia seguinte e a manchete é a morte dele. É um filme interessante pra gente pensar o quanto de controle a gente tem sobre o tempo. Indico ainda o livro de um filósofo alemão chamado Hartmut Rosa, que trabalha as questões de tempo e aceleração social. O livro se chama Aceleração. Um livro e um filme, porém, são diversões específicas. Além disso, deixo uma reflexão: pense, do seu tempo livre, em qual tempo é seu mesmo e como você vai aproveitar cada instante sabendo que ele é único.
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