Programas de desenvolvimento interno de talentos estão em alta e movimentam o mercado de recursos humanos, além de promoverem a diversidade nos negócios
PcD: desafios de inclusão e o que o RH tem a ver com isso
Neste 21 de setembro, Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, conversamos com especialistas e empresas que têm buscado promover iniciativas para criar uma cultura genuinamente diversa e inclusiva
Imagine a cena: um jovem profissional vai a uma entrevista de emprego e, chegando lá, não consegue se comunicar com o recrutador. Pode parecer distante da realidade de muitas pessoas, mas para surdos essa é uma vivência comum – e apenas um exemplo das muitas barreiras que pessoas com deficiência (PcD) enfrentam ao tentar se inserir no mercado de trabalho, em um cenário que segue complexo e desafiador.
Segundo a última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), com dados de 2019, 17,3 milhões de pessoas com mais de dois anos de idade tinham alguma deficiência no Brasil, o que corresponde a 8,4% dessa população. Das que tinham idade para trabalhar (mais de 14 anos), apenas 28,3% estavam no mercado de trabalho (ante 66,3% das sem deficiência).
Os dados, por si só, já mostram que há um longo caminho a ser percorrido. Se, de um lado, pessoas com deficiência ainda se deparam com diversos empecilhos para se sentirem verdadeiramente incluídos, do outro, empresas têm tido dificuldade de contratar.
Sobram vagas
Implementada há mais de 30 anos, em 1991, a Lei de Cotas (Lei 8.312/91) foi uma tentativa de garantir uma presença mais significativa das pessoas com deficiência na força de trabalho. Ela estabelece que empresas com cem ou mais empregados devem reservar um número determinado de vagas para pessoas com deficiência. Contudo, hoje, ainda sobram posições. De acordo com dados mais recentes do Portal da Inspeção do Trabalho, de 2020, apenas 49,5% das vagas reservadas para pessoas com deficiência estão ocupadas.
Do lado das organizações, preencher as vagas para PcD nem sempre é fácil. A consultoria Alvarez & Marsal tem tido dificuldade de ocupar 30 vagas dedicadas a este público, abertas desde abril. Até agora, só 6 foram preenchidas. O principal motivo? Faltam candidatos.
Para contornar esse problema, a empresa oferece incentivo financeiro para funcionários que indicam profissionais com deficiência para integrar o time, além de ter um banco de talentos exclusivo para PcD. Todas as pessoas que se inscrevem nesse banco de dados são entrevistadas.
Além disso, um recrutador especializado está à frente da iniciativa. “Não dá para ser qualquer recrutador. A pessoa precisa de um mínimo de letramento para fazer uma entrevista com atenção aos detalhes e acolhimento”, explica Lilian Giorgi, diretora sênior de RH da Alvarez & Marsal.
Algumas empresas têm tentado contornar o problema por meio de programas de capacitação profissional. É o caso da L’Oréal Brasil, que este ano lançou o 2º DiversiFica, que, em parceria com a Talento Incluir, ofereceu 60 vagas para curso de capacitação na área comercial. A ideia é, após o final, reter alguns dos talentos.
O Itaú Unibanco também promoveu iniciativas para fomentar a contratação de PcD. No ano passado, por exemplo, uma edição exclusiva de um evento voltado para estagiários rendeu 26 novas contratações. Ainda em 2021, ofereceu um curso de capacitação em tecnologia para profissionais com deficiência, que resultou na contratação de mais de 150 novas pessoas.”Recentemente, o Itaú anunciou um novo conjunto de valores corporativos, chamado de ‘Cultura Itubers’, e um deles é ‘A gente quer diversidade’. Portanto, diversidade está ainda mais enraizada na cultura do banco, podemos esperar cada vez mais programas de recrutamento afirmativo para profissionais com deficiência”, diz Maria Julia Azambuja, superintendente de Diversidade, Atração e Seleção.
Leia também: Procura-se equidade: a importância das vagas afirmativas no mercado de trabalho
Principais desafios para PcD no mundo do trabalho
Carolina Ignarra, CEO e fundadora da Talento Incluir, enumera três principais desafios que essas pessoas encontram para se inserir no mercado de trabalho. Em primeiro lugar, a inclusão é feita por obrigação. “A maior parte das empresas contrata por causa da Lei de Cotas. O caminho é fazer por convicção. As empresas precisam entender que é o certo a se fazer”, defende.
Outro fator que influencia nesse contexto é o capacitismo, termo usado para descrever a discriminação sofrida por PcDs, que muitas vezes têm de lidar com estereótipos e são subestimadas. “As pessoas chegam muito impactadas por tudo o que passaram, desde a família desestruturada a escolas pouco acessíveis. A pessoa com deficiência que ingressa no mercado vem com questões comportamentais decorrentes desse processo. E o mercado espera pessoas muito prontas, então há esse desalinhamento de expectativas”. Vale destacar que cerca de 67,6% da população com deficiência não tinham instrução ou tinham o ensino fundamental incompleto, segundo a PNS de 2019.
Por fim, a cultura das organizações pode ser outro complicador. Para Andrea Schwarz, CEO da iigual, – consultoria que auxilia na contratação de PcD – o principal desafio é cultural, além da falta de acessibilidade arquitetônica, digital, comunicacional e tecnológica. “Os líderes e gestores, em sua maioria, não são inclusivos e não possuem informações corretas e suficientes para enxergar pessoas com deficiência além das suas deficiências”, afirma.
“Apenas procurar “PCDs” em bancos de dados nichados não funciona”
A frase de Schwarz evidencia que fazer processos seletivos mais inclusivos vai muito além de buscar pessoas para bater a cota. Em primeiro lugar, o ideal é que o site da empresa permita que todas as pessoas tenham acesso às informações e possam se candidatar de forma independente nas vagas. “Me surpreendi ao saber que menos de 1% dos sites podem ser considerados acessíveis. A falta de acessibilidade na internet chega a ser pior do que nas calçadas das cidades”, diz a profissional, também à frente da EqualWeb, tecnologia que trabalha para tornar qualquer site acessível para pessoas com deficiência.
“Me surpreendi ao saber que menos de 1% dos sites podem ser considerados acessíveis. A falta de acessibilidade na internet chega a ser pior do que nas calçadas das cidades”
Para além da tecnologia e da necessidade de promover mais acessibilidade digital, cada caso deve ser avaliado para que as entrevistas sejam também mais inclusivas. Pode ser necessário um intérprete de libras, por exemplo, ou um recrutador mais experiente no assunto.
Ignarra complementa que a metodologia dos processos seletivos deve levar em consideração também os impactos do capacitismo estrutural no comportamento. “Quando a gente pensa em mapear comportamento humano, ele foi desenvolvido com base em quais pessoas, diversas ou não?”, pondera. “Quando a gente exclui para metodologia de um teste uma pessoa surda, ele não lê o comportamento daquela pessoa”.
Convencendo as lideranças
Ter organizações efetivamente diversas e inclusivas passa necessariamente pela cultura. De acordo com as especialistas, é fundamental educar as lideranças e garantir, de cima para baixo, que todos estejam cientes de que a temática é crucial para o bem-estar da corporação.
“É importante entender que uma empresa acessível cria também produtos e serviços mais acessíveis. Acessibilidade, além de ampliar o público consumidor, pode trazer soluções que atendam melhor todas as pessoas, mesmo aquelas que não precisam aparentemente”, diz Schwarz. “As empresas que atingem esse mindset deixam de olhar inclusão como custo e passam a olhar como investimento“.
Profissionais de RH estão atentos a essa questão e têm optado por diferentes estratégias para conscientizar as lideranças. O consenso é que comunicar o tema é o primeiro passo, e isso deve ser feito de diferentes formas: seja com comunicação interna, em convenções, encontro de lideranças ou treinamentos.
Na L’Oréal Brasil, todo novo funcionário, ao entrar, obrigatoriamente passa por um treinamento de diversidade. Além disso, ao longo do ano há uma série de iniciativas, como treinamentos, rodas de conversa e e-mail marketings. “Atualmente temos tido um forte trabalho na conscientização da liderança em prol dessas questões e hoje contamos com mais de 400 líderes já treinados no tema. Isso é essencial para que os gestores possam ser atores de mudança buscando por perfis mais diversos”, conta Márcia Silveira, Head de Diversidade, Equidade e Inclusão.
O Itaú Unibanco também tem promovido capacitações de gestão inclusiva e vieses inconscientes para a liderança. Anualmente, promove as Semanas de Diversidade sobre pessoas com deficiência, que contam com lives de conscientização internas e externas.
Outra boa dica para engajar a liderança é valorizar e comunicar de forma eficiente sobre os cases de sucesso. “Ao longo da minha carreira, já acompanhei líderes que ainda tinham muitas crenças limitantes sobre PcDs e dificuldade de trazer essas pessoas para o time. Quando eles começam a ver pessoas que estão avançando na carreira e contribuindo com o negócio, começam a se sentir também mais seguros em apostar no tema”, diz Andréa Pereira, Senior HR Manager na unico.
Esse trabalho de convencimento, muitas vezes, precisa ser focado. Giorgi conta que, na Alvarez & Marsal, que possui 15 unidades de negócio, ela começa a convencer as pessoas mais estratégicas para a pauta e depois, já com esses exemplos bem-sucedidos, fica mais fácil ampliar sua atuação. “A gente vai permeando aos pouquinhos, é uma construção. Ter uma liderança que apoia, que se engaja e está junto nessas iniciativas faz toda diferença”.
Inclusão no cotidiano
Para promover mais inclusão no dia a dia, as especialistas defendem que ações pontuais não bastam. O ideal é construir uma jornada de atuações, que abrace diferentes frentes. “A gente não muda a cultura com uma pitadinha de sal, a gente muda com muito tempero”, afirma Ignarra. Além de palestras e cartilhas sobre o assunto, recomenda-se que os gestores tenham suporte no dia a dia para endereçar essa temática.
Grupos de afinidade também são apontados como uma forma eficiente de engajar pessoas. Tanto a L’Oréal quanto o Itaú Unibanco têm utilizado o recurso que acabam por traçar planos de ações e iniciativas que acabam impactando toda a cultura organizacional. “Eu, como RH e como PcD, acho muito enriquecedor porque dá um conforto e um sentimento de que estamos no mesmo barco, passamos pelas mesmas dificuldades, mas superamos. Isso é super interessante para a vida, e é um aliado importante dentro da construção de uma cultura de diversidade real”, afirma Pereira.
Outras medidas simples mas efetivas para facilitar a inclusão desse público no dia a dia são: estimular a criação e a prática do hábito de se autodescrever antes de ministrar um treinamento ou de iniciar uma apresentação; adotar o uso de legendas automáticas disponíveis pela plataforma da Microsoft Teams nas reuniões; trabalhar em conjunto com o time de facilities da empresa, garantindo que acessibilidade seja um ponto forte tanto nas espaços quanto nas ferramentas de trabalho.
É essencial dar voz e visibilidade a cada pessoa com deficiência e agir no one-on-one para a corporação ser mais acessível para todos. “Já que cada um tem uma vivência muito particular, o ideal é promover conversas semanais dos gestores com as pessoas, e não só com PcDs”, diz Ignarra.
Schwarz ressalta que não tem outro jeito que não seja treinar a liderança de forma contínua e aprender com os próprios colaboradores com deficiência. “Existe uma frase muito verdadeira que foi cunhada na Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência que diz: “Nada sobre nós, sem nós”.
Modelo híbrido e trabalho remoto
A pandemia do Covid-19 trouxe diversos impactos para a forma como trabalhamos e para o universo corporativo (e já falamos sobre isso aqui e aqui). Para pessoas com deficiência, não foi diferente: o trabalho remoto e o modelo híbrido trouxeram uma série de novas dificuldades e possibilidades.
Para além da necessidade de adaptação ao trabalho remoto, as empresas tiveram de lidar com situações diversas. No Itaú Unibanco, por exemplo, foi preciso usar máscaras faciais transparentes em agências com funcionários surdos, para viabilizar a comunicação por leitura labial com colegas de trabalho e gestão.
Schwarz afirma que as pessoas com deficiência foram as mais prejudicadas com a pandemia. “Foram as primeiras a serem demitidas e as últimas a serem contratadas na média em comparação com outros grupos. Isso aconteceu por diversos fatores, entre eles capacitismo e também porque as pessoas com deficiência ocupam, em sua maioria, cargos operacionais e pouco estratégicos”.
Entretanto, com a aceleração da transformação digital, muitas pessoas com deficiência foram beneficiadas. Sistemas como o Google Meet, por exemplo, passaram a oferecer legendas ao vivo, e pessoas com dificuldade de locomoção também tiveram a sua rotina facilitada.
Hoje, as empresas têm como desafio pensar em inclusão também com o trabalho híbrido, remoto e flexível. Aqui, as especialistas afirmam que é preciso encontrar um equilíbrio: se cada caso deve ser olhado individualmente pelos gestores, as organizações também precisam tomar cuidado para não criar políticas diferenciadas dos demais colaboradores.
“O trabalho remoto não pode justificar a falta de acessibilidade, nem a falta de convivência”, diz Schwarz. “Entretanto é importante entender a particularidade de cada caso e escutar a pessoa com deficiência. Ela deve poder participar da solução do seu caso, se for necessário, pois não podemos generalizar quando o tema envolve pessoas com deficiência, já que as necessidades específicas variam de caso a caso.”
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