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Benefícios ligados à fertilidade ganham espaço nas empresas no Brasil

Oferecer congelamento de óvulos e Fertilização In Vitro (FIV) acompanha as mudanças sociais e garante mais autonomia à mulher, mas também aquece as discussões sobre o impacto da maternidade na carreira e as possíveis pressões no ambiente de trabalho; para especialistas, tudo depende da cultura da empresa

Redação
24 de junho de 2024
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Por: Caroline Marinho e Gumae Carvalho

Não é raro ouvir relatos de mulheres que decidiram adiar a maternidade. Frases como “quero ser mãe, mas não agora” ou “ainda não sei se quero ter filhos” são cada vez mais comuns. O último levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostrou que a proporção de mulheres que optam por engravidar mais tarde, entre 35 e 39 anos, aumentou 63%, enquanto o número de mães com até 19 anos caiu 23% no mesmo período. Já dados da Associação Brasileira de Reprodução Assistida apontam que o congelamento de óvulos subiu para 70% em todas as clínicas do Brasil após a pandemia. A expectativa é de que esse mercado movimente US$ 21,7 bilhões em 2025, segundo a consultoria Research and Markets. 

De um lado, estão as mudanças sociais dos últimos anos, com a ressignificação do papel feminino e o maior foco de muitas na carreira. De outro, o avanço da medicina reprodutiva, que abre a possibilidade de procedimentos mais seguros, como congelamento de óvulos e Fertilização In Vitro (FIV). São novos tempos que exigem políticas corporativas diferentes. As gigantes de tecnologia nos Estados Unidos foram as primeiras a olhar com mais atenção para esse movimento. Em 2014, Apple e Meta anunciaram um subsídio de US$ 20 mil para o congelamento de óvulos. Depois, empresas como Intel, Bank of America e Johnson & Johnson também seguiram essa tendência. 

Essa mudança vem impulsionada pelo desejo de algumas mulheres em priorizar a carreira ou ter uma garantia de fertilidade no futuro, em caso de alguma doença grave, por exemplo. Esse foi o caso, aliás, que deu origem ao benefício de congelamento de óvulos oferecido pela Meta, ainda sob o nome de Facebook. Na época, uma funcionária procurou Sheryl Sandberg, então CCO da empresa, dizendo ter recebido o diagnóstico de câncer e que não poderia ter filhos a não ser que congelasse seus óvulos – um procedimento muito caro. Sheryl levou a história para o pessoal de RH e, da conversa, surgiu a ideia do benefício.

Lina Nakata

No entanto, é fundamental que a iniciativa faça parte de um amplo programa de parentalidade e, principalmente, reflita a cultura e propósito da organização. Apenas oferecer o benefício, sem analisar todos os aspectos por trás da maternidade, como o receio de perder o emprego após a licença ou não conseguir alcançar os objetivos profissionais desejados, pode colocar tudo a perder. Isso porque, segundo Lina Nakata, professora da FIA Business School e uma das responsáveis pela Pesquisa FIA – Lugares Incríveis para Trabalhar, ao ter esse benefício disponível, as pessoas – homens e mulheres – podem entender que a maternidade deve ser postergada ou, até, evitada. “Talvez a empresa não queira passar esse recado, mas para não haver nenhuma distorção, é fundamental que o benefício esteja alinhado com a cultura organizacional”, explica.

Uma das recomendações da especialista é realizar uma pesquisa interna antes, ouvindo as pessoas, suas demandas e necessidades. Foi exatamente isso que a PepsiCo fez. A possibilidade de congelamento de óvulos com o subsídio da companhia surgiu de uma sugestão dada no grupo de afinidades que discute a pauta de gênero, o EmpoderA. “Revisamos constantemente nossos benefícios e programas para tornar o ambiente de trabalho mais acolhedor e, dessa forma, fazer com que os profissionais se sintam escutados e apoiados”, explica Nadja Minami, diretora de remuneração e benefícios na PepsiCo Brasil. De acordo com ela, a empresa também leva em consideração pesquisas de mercado que sinalizam o desejo mais tardio de ter filhos.

Por meio do programa Minha Hora, a companhia oferece, além do congelamento de óvulos, fertilização in vitro, inseminação artificial, entre outros procedimentos com um reembolso anual de até R$ 25 mil. O benefício, voltado para todos os funcionários e seus companheiros, independentemente de gênero, tem o intuito de apoiar quem deseja engravidar ou planejar o melhor momento para isso. 

A ação faz parte do programa Doce Começo, que existe na companhia há mais de 10 anos e oferece suporte em todo o período de gestação, nascimento ou adoção, incluindo acompanhamento pré-natal com orientações e dicas para auxiliar numa melhor gestação e desenvolvimento do bebê até um ano. O programa também contempla a possibilidade de extensão da licença maternidade ou parental por mais 60 dias, totalizando 180 dias de afastamento, bem como opções de retorno gradativo, com redução da jornada de trabalho pela metade nos 30 dias subsequentes ao término da licença maternidade ou parental, e auxílio-creche. “A ideia central é garantir a possibilidade de preservar a fertilidade daquelas que optam em mães um pouco depois”, afirma Nadja.

Facilitar o sonho 

Mara Borsato, coordenadora da microbiologia e parasitologia da área técnica do Grupo Fleury, sempre quis ter filhos, mas foi postergando a decisão por diversos fatores. Até que, aos 37 anos, já bem realizada profissionalmente e tendo conquistado muitas coisas na carreira, a vontade de ser mãe aumentou. “Na época, cheguei a pensar em fazer Fertilização In Vitro (FIV), mas, como não tinha um parceiro, tive medo da produção independente”, conta. Um pouco depois, ao completar 38 anos, a companhia inaugurou o Fleury Fertilidade e foi o incentivo que a executiva precisava. “Fui uma das primeiras a utilizar o benefício”, diz. Mara passou por um tratamento especializado e entre consultas, exames e medicações, realizou o primeiro ciclo e conseguiu congelar 14 óvulos.

Mara Borsato


Segundo ela, o apoio da empresa foi essencial. “Em todo o processo, fui apoiada tanto por minha equipe de trabalho quanto por meus familiares. Vejo o benefício como uma forma de ajudar a viabilizar e até facilitar o sonho da maternidade ou mesmo trazer tranquilidade em ter o óvulo congelado para um futuro”, diz. Agora, Mara tem planos reais e próximos. “Estou com 40 anos e quero ter um filho antes de completar os 42 anos”.

Atualmente, os mais de 15.000 funcionários do Fleury têm acesso a tratamentos de fertilidade com descontos de até 40%, mas Kelly Bitencourt, coordenadora de qualidade de vida e bem-estar do Programa Viver Melhor do Grupo Fleury, ressalta a importância de acolher e respeitar os momentos de vida de cada colaborador. “Sabemos que muitas mulheres adiam a maternidade em detrimento da carreira, porém a reflexão precisa ir além disso”, afirma. 

Kelly Bitencourt

Nesse sentido, a companhia trabalha o tema de ponta a ponta por meio do programa Viver Melhor, criado em 2013. “De lá para cá, apoiamos nossas pessoas desde o planejamento familiar, que envolve abordar os diversos modelos de famílias existentes, até o acompanhamento às pessoas gestantes e a oferta de uma linha de cuidado também para as crianças, se necessário”, explica. O apoio consiste em oferecer atendimento de uma equipe multidisciplinar, composta por psicólogos, assistentes sociais, ginecologistas e urologistas. “A ideia é que a decisão seja pautada exatamente naquilo que a pessoa deseja, sem nenhum medo ou receio”, afirma. 

Os dois lados do benefício

Se por um lado o congelamento de óvulos é visto como uma forma de libertação para as mulheres, há quem entenda que o benefício também possa ter efeitos colaterais exploratórios – como a pressão de uma empresa para manter uma executiva por mais tempo no trabalho ao postergar uma gravidez. Essa é uma das observações de Lucy van de Wiel, professora do King’s College, em Londres, e autora de Freezing Fertility: Oocyte Cryopreservation and the Gender Politics of Aging (Congelando a Fertilidade: Criopreservação de Oócitos e a Política de Gênero do Envelhecimento, em tradução livre). 

Para empresas que oferecem o congelamento de óvulos como benefício, a análise de Lucy sugere implicações tanto positivas quanto negativas. Enquanto pode ser visto como um apoio às escolhas de carreira e autonomia das mulheres, também pode perpetuar pressões no local de trabalho e adiamento do planejamento familiar por razões econômicas. Os empregadores precisam considerar os quadros éticos e de suporte ao oferecer tais benefícios, garantindo que as funcionárias estejam totalmente informadas e apoiadas durante o processo. 

“A ideia não é incentivar o uso desse benefício, mas mostrar que é algo vantajoso quando a pessoa precisar e quiser congelar seus óvulos”, acrescenta Lina Nakata, professora da FIA Business School. Já a ginecologista especialista em reprodução humana Graziela Canheo, diretora médica da La Vita Clinic, acredita que uma das vantagens de as empresas oferecerem a oportunidade de algumas de suas funcionárias congelarem os óvulos é, justamente, a discussão que essa iniciativa provoca. “Fala-se muito em planejamento de carreira, mas precisamos falar também de planejamento reprodutivo”, diz. 

Graziela Canheo

A maioria das mulheres que vai ao consultório de Graziela sente que ainda não é o momento de ter um filho, tendo ou não um companheiro. Por isso, é importante que as companhias trabalhem esse tema de forma mais ampla, com campanhas de conscientização sobre futuro reprodutivo, mostrando que o congelamento de óvulos não é garantia de um bebê no futuro, mas uma oportunidade. “Trata-se de oferecer conhecimento e informação para que a mulher possa optar congelar seus óvulos ou não, decidir se quer ser mãe e continuar a trabalhar depois ou não, se deseja deixar a carreira para cuidar do filho ou não. A opção de escolha é o mais importante.”

A ideia não é incentivar o uso desse benefício, mas mostrar que é algo vantajoso quando a pessoa precisar e quiser congelar seus óvulos

E ter essa possibilidade disponível na companhia pode fazer toda a diferença nessa decisão. Até porque não é um tratamento barato. Dependendo da clínica e considerando as medicações e os procedimentos de coleta dos óvulos, além de congelamento, descongelamento, fertilização e implantação do embrião formado no útero, o total empenhado pode chegar a R$ 30 mil. 

Porém, é fundamental que o apoio da empresa vá além disso, com a oferta de outros benefícios que vão desde suporte psicológico até maior flexibilidade de horários (para consultas, por exemplo). Na PepsiCo há a iniciativa Mente em Equilíbrio, que conta com ações como terapias sem coparticipação, nem limites de sessões; rodas de conversa entre área e com  direcionamento de um psicólogo, e Linha de Apoio (EAP) para atendimento telefônico voltado ao apoio à saúde mental, jurídica e financeira.

Nesse processo de conscientização, um passo fundamental, na opinião de Maria Candida Baumer de Azevedo, sócia da People & Results, especializada em carreira e cultura empresarial, é ajudar a mulher a saber exatamente o porquê de ter um filho. “A responsabilidade materna não está em proporcionar uma boa creche ou escola, mas em ter a mãe presente diretamente na criação daquele bebê”, diz. 

Maria Candida

Motivo definido sobre ser mãe ou não, o passo seguinte, segundo Maria Candida, é definir e alinhar o papel de todos os envolvidos, do cônjuge aos avós, passando pela empresa. No âmbito organizacional, é preciso ter claro que a maternidade não é um empecilho para a ascensão profissional. É crucial, nesse sentido, que as companhias aprendam a conviver com regras mais flexíveis, que permitam conciliar a criação de filhos e uma jornada profissional de alta performance. 

Além disso, defendem as especialistas, as empresas devem deixar claro que a oferta do benefício não busca fomentar uma cultura empresarial em que as mulheres se sintam pressionadas a adiar a maternidade. Por essa razão, tem de estar bem alinhado com os valores da empresa; caso contrário, o que poderia ser um impulsionador da marca empregadora (como uma organização que valoriza a família em todas as suas formações possíveis) torna-se um grande empecilho para atrair e reter as melhores profissionais.

A atuação do RH

O que a área pode (e deve) fazer em relação ao benefício do congelamento de óvulos

Apoiar colaboradoras em suas escolhas reprodutivas por meio do congelamento de óvulos demanda da área de RH ações e postura para, também, promover um ambiente inclusivo e saudável. Veja a seguir, algumas delas:

1 – Realizar sessões informativas sobre o congelamento de óvulos, esclarecendo dúvidas e fornecendo informações detalhadas sobre procedimentos, custos, taxas de sucesso e possíveis riscos. Isso ajuda a reduzir o estigma e a aumentar a conscientização sobre essa opção. 

2 – Trabalhar na conscientização de todos os funcionários, principalmente dos líderes, por meio de treinamentos sobre vieses inconscientes, inclusão, diversidade e letramentos.

3 – Criar uma política clara sobre como os funcionários podem acessar o benefício, incluindo critérios de elegibilidade, limites de idade e regras para reembolso de custos. É importante definir claramente quais partes do processo serão cobertas pelo plano de benefícios da empresa, incluindo consultas médicas, procedimentos de congelamento e armazenamento dos óvulos​ 

4 – Oferecer suporte por meio de aconselhamento ou encaminhamento a profissionais especializados. Algumas pessoas podem enfrentar ansiedade ou preocupações emocionais ao considerar o congelamento de óvulos.

5 – Criar redes ou grupos de apoio entre funcionários que passaram pelo processo ou que estão considerando essa opção. Contar com grupos de afinidade também pode ajudar.

6 – Permitir que os profissionais ajustem seus horários para acomodar consultas médicas relacionadas ao congelamento de óvulos. Isso demonstra apoio e compreensão da importância desse processo para a saúde e bem-estar.

7 – Manter contato com as pessoas que optaram pelo procedimento para verificar seu bem-estar e oferecer suporte contínuo.

8 – Garantir que o processo de congelamento de óvulos seja tratado com discrição e confidencialidade.