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Liderança, gestão e saúde mental com Rodrigo Oliveira, do Mocotó

Responsável por um dos restaurantes mais premiados do Brasil, o chef de cozinha paulistano fala sobre os desafios e a pressão do dia a dia

Bruno Capelas
17 de novembro de 2022
Liderança, gestão, impacto e saúde mental: um papo com o chef Rodrigo Oliveira, do Mocotó
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Todo líder que se preze já deve ter vivido momentos de alta pressão e muito calor. Mas alguns podem dizer que vivem essa tarefa de maneira mais literal do que outros: Rodrigo Oliveira, chef do restaurante Mocotó, é uma dessas pessoas. Responsável pela cozinha (e pela gestão) deste e mais outro cinco casas (incluindo o Caboco, em Los Angeles), ele entrou aos treze anos na cozinha do estabelecimento criado pelo pai em 1973 e não saiu mais, já somando quase três décadas de dedicação ao ramo da restauração. 

No restaurante da Vila Medeiros, zona norte da capital paulista, aprendeu lições sobre liderança e gestão, mas sem perder o instinto humano. “Somos um restaurante nordestino no sertão de uma das maiores cidades do mundo, valorizando a tradição, mas sempre também propondo uma abordagem genuína para o que a gente faz. Hoje temos um super aparato de sistemas, tecnologias, métodos, mas nunca abandonamos o sentimento”, conta o chef.  

Mais do que só servir boa comida, porém, o Mocotó busca transformar a vida de toda uma comunidade, seja oferecendo trabalho ou criando condições para o desenvolvimento das pessoas – segundo estudo do próprio restaurante, o salário médio do “distrito Mocotó” é maior do que a média salarial de um bairro como Pinheiros, algo inesperado para um restaurante na periferia paulistana. “Um restaurante serve para que as pessoas saiam dali melhores do que entraram. E se a gente pode restaurar uma pessoa, descobrimos que também podemos ajudar a restaurar uma comunidade, uma cidade, um país”, afirma Oliveira. 

Na entrevista a seguir, ele conta mais sobre a história do Mocotó e os aprendizados dentro da cozinha nessas três décadas, além de falar sobre temas como saúde mental própria e da equipe, com quem ele resiste usar a palavra “funcionários”. “Não é pelo politicamente correto, mas porque a gente acha que a palavra não dá conta de quem trabalha lá. Funcionário é quem está limitado a uma função: o cozinheiro cozinha, o garçom atende… não é assim: no Mocotó, estimulamos a polivalência”, diz.

Liderar é uma tarefa difícil. Mas liderar uma cozinha, um ambiente cheio de pressão e que vive muito no tempo real, parece particularmente difícil. Como é para você? 

Toda posição de liderança tem seus desafios intrínsecos e suas particularidades, mas concordo que a cozinha tem um nível de complexidade e um dinamismo que é raro encontrar. É preciso lidar com uma equipe numerosa, numa apresentação ao vivo, que depende tanto do desempenho pessoal como do coletivo, muitas vezes usando técnicas complexas e exigentes. É um grupo numeroso e diverso atuando sobre pressão, e num espetáculo interativo, afinal, você tem que lidar com as reações do público o tempo todo. E é um espetáculo sem fim: tem o almoço, depois o jantar, depois o pré-preparo do almoço, e assim vai. Além disso, cozinha é um flerte constante com o desastre. Basta acabar a energia, uma pessoa do time ter um problema, a geladeira pifar no meio do sábado ou um produto atrasar entrega para que as coisas saiam do controle. É muito dinâmico. 

É um cenário bastante complexo. O que fazer para não entrar em parafuso nesse ritmo intenso? 

A maturidade foi me temperando para lidar com essa situação extrema, mas é preciso ter uma mente serena para controlar o caos. Quer dizer: o principal é entender que o controle que a gente tem sobre as coisas é limitado. Não adianta se desesperar ou sair do prumo: no final do dia, a gente não controla os imprevistos, mas tem que ter as melhores respostas. Quando você tem confiança nas suas limitações e sabe que é falível, isso dá tranquilidade para você tomar as melhores decisões e conseguir reagir a situações extraordinárias. 

Quando você tem confiança nas suas limitações e sabe que é falível, isso dá tranquilidade para você tomar as melhores decisões e conseguir reagir a situações extraordinárias.

Uma coisa que me chama a atenção em cozinhas é a ideia das praças ou ilhas, que cuidam de etapas diferentes dos pratos. Cada prato depende de várias dessas praças, tocadas por profissionais diversos. Como é cuidar de um time que tem sabedorias e níveis de experiência diferente? 

Saber colocar as peças certas nos lugares certos é algo que vale para qualquer equipe. Na cozinha, existem as questões técnicas – será que a pessoa sabe cuidar do corte da carne, do ponto, ter a atenção com o calor? – e as questões de personalidade. Tem gente que adora a adrenalina do serviço, a correria das comandas sendo cuspidas e ter que entregar tudo, e tem gente que gosta de previsibilidade e ritmo de produção.

No Mocotó, a gente tem estimulado a polivalência. A gente não usa mais a palavra funcionário. Não é pelo politicamente correto, mas porque a gente acha que a palavra não dá conta de quem trabalha lá. Funcionário é quem está limitado a uma função: o cozinheiro cozinha, o garçom atende… não é assim. No Mocotó, desde quando a pessoa entra, como auxiliar de cozinha ou estagiário, ela passa por todas as partes da casa. Temos cinco praças distintas na cozinha – e construímos um time que joga em qualquer posição dessas praças, conhecem os processos do restaurante. Ao longo do tempo, entendemos que essa característica da equipe é o que o nos ajuda a chegar a um resultado superior.

Foto: Ricardo D’Angelo (Divulgação)

Saúde mental é um tema cada vez mais em pauta. Existe uma descrição clássica de cozinhas serem ambientes marciais. Dá para cuidar da saúde mental do time nesse contexto? O que fazer? 

É um tema super delicado, porque hoje envolve tanto as pressões do trabalho quanto as pressões da vida moderna. A fórmula do Mocotó para lidar com isso é criar uma organização o mais horizontal o possível, onde a gente superestimula a comunicação com franqueza e liberdade, sem abrir mão das responsabilidades. Temos um processo de seleção que é bastante artesanal: buscamos pessoas novas por meio das pessoas que já estão na casa. Isso acaba criando vínculos entre as pessoas, reforça os laços, cria uma rede de suporte emocional e prática muito interessante.

Além disso, sabemos que saúde mental e física andam ligadas, temos uma preocupação enorme com isso – hoje, oferecemos plano de saúde para toda a equipe e também para um dependente. Se a pessoa ou a família não estiver com saúde, a chance dela ter uma instabilidade emocional ou mental é muito maior. 

Rodrigo, cozinhar, liderar uma cozinha e gerir um restaurante são habilidades bem diferentes. Como foi, para você, transformar essa empresa familiar numa marca de referência, profissionalizar essa gestão? 

Um amigo definiu, com muita precisão, uma vez, que o Mocotó é muito mais acontecido do que planejado. Eu trabalho na casa desde os 13 anos, ano que vem faço 30 anos de carreira. Na época, quando eu comecei, éramos eu, meu pai e mais três pessoas trabalhando. Meu pai é um retirante, sertanejo, com um grande tino empreendedor, mas com muito pouco recurso para profissionalizar o restaurante. Eu cresci nesse meio, nunca trabalhei em outro lugar, não tive experiência prévia além do Mocotó. Muito do que eu fiz foi pela intuição, e acho que, para o bem e para o mal, fomos tocando o Mocotó dessa forma singular.

Hoje, acredito que temos um serviço de excelência, mas de forma inclusiva, ligada ao seu contexto. Somos um restaurante nordestino no sertão de uma das maiores cidades do mundo, valorizando a tradição, mas sempre também propondo uma abordagem genuína para o que a gente faz. Hoje temos um super aparato de sistemas, tecnologias, métodos, mas nunca abandonamos o sentimento. Tem decisões que tomamos que não se justificam numa planilha. Se a gente olhasse só para os números, nunca daria para justificar, mas nós tomamos. 

Dá para citar alguma dessas decisões? 

Dá. Há alguns anos, a gente tinha um plano de saúde para todos os colaboradores. Era um bom plano, mas veio um reajuste enorme nos valores. Muitas das pessoas que trabalhavam no Mocotó tinham dependentes, então a gente sabia que aquele aumento ia tornar impeditivo para elas pagarem. Tínhamos a opção de procurar outro plano, tentar renegociar… e o que decidimos foi contratar um plano melhor, pelo mesmo preço do que seria o plano anterior com o reajuste. Já que não dava para fugir do aumento, decidimos oferecer algo melhor. E decidimos incluir os dependentes. Se a gente tivesse um conselho, algo que profissionalizasse a gestão, isso jamais passaria. Mas no Mocotó temos um controle muito horizontal: conversei com nosso time de gestão e a decisão foi tomada em 15 minutos de conversa. Não dá para mensurar o impacto que isso traz no resultado, mas a verdade é que temos resultados positivos desde sempre. Assumir esse custo, essa responsabilidade com as pessoas, não fez com que os resultados piorassem. 

Da Vila Medeiros, vocês desdobraram o Mocotó para diferentes conceitos de restaurantes e formatos, como o Esquina Mocotó e o Balaio. Como é essa ideia de buscar novos formatos, de inovar a cultura adiante, sem forçar a barra ou se repetir? 

Abrimos o Esquina Mocotó, aqui na Vila Medeiros, exatamente 40 anos depois de fundar o Mocotó. O Mocotó é de 1973, o Esquina nasceu em 2013. Já tínhamos recebido incontáveis convites para reproduzir o Mocotó em outros lugares, especialmente em outras partes mais abastadas da cidade, mas para nós não fazia sentido repetir o Mocotó em qualquer contexto.

O Esquina surgiu quando a gente encontrou dois sócios do mercado financeiro. Eles fizeram o convite e falaram: “a gente te ajuda a abrir o restaurante que você quiser, no lugar que você quiser da cidade”. Eu aceitei: disse que queria abrir um restaurante de cozinha brasileira na Vila Medeiros e eles toparam. E aí eu abri o Esquina, que foi super premiado, tivemos estrela Michelin e mantivemos a estrela até o fechamento.

Quando fechamos, percebemos duas coisas. A primeira coisa é que a Vila Medeiros podia sim ter um restaurante estrelado. A segunda é que a Vila Medeiros não precisava de um restaurante estrelado. O Esquina era uma casa completamente diferente do Mocotó: ele tinha uma cozinha paulistana, de grande liberdade criativa, se apropriando de toda essa diversidade de São Paulo. A gente não sabia como fazer, mas aprendemos muito, foi muito enriquecedor.

Depois, veio o convite para fazer uma filial do Mocotó no Instituto Moreira Salles. Nós demoramos quase três anos para topar – e topamos quando percebemos afinidade desse conceito de inclusividade que o Instituto prega com a brasilidade que a gente propôs. Eu só não aceitei abrir uma filial, porque o IMS tinha um contexto único. Aì veio o Balaio, que fala de brasilidade, de um Brasil sem fronteiras, misturando vários cantos do País. E tem o Café Mocotó, que é uma edição de bolso do Mocotó, cujo sucesso dá força para a nossa comunidade. A central de produção da comida que vai para os Cafés Mocotó é o próprio Mocotó. É daqui da Vila Medeiros que sai recurso, logística, para essas partes. Sâo esses canais de contato direto com o público que geram emprego e renda na Vila Medeiros. E, além disso, recentemente a gente abriu o Caboco, em Los Angeles, que não repete o Mocotó, nem o Esquina, nem o Balaio. Ele é inspirado no Brasil, mas também dialoga com a Califórnia, com os produtos locais, a cultura de jantar do americano. Cada contexto merece um restaurante diferente, né? 

Para fechar, Rodrigo: impacto é uma palavra muito recorrente na boca dos executivos hoje em dia. Como você consegue medir o impacto do Mocotó hoje em dia?

Um dia fomos fazer uma apresentação para um banco europeu e queríamos falar do impacto do Mocotó na nossa comunidade. Como mensurar isso? Propus da gente fazer um cálculo do IDH do Mocotó. Se o Mocotó fosse um distrito de São Paulo, qual seria o IDH dessa nossa família? Descobrimos algumas coisas interessantes: o nível de escolaridade é maior que o da média da cidade, mesmo de algumas das regiões mais prósperas. Muita gente no restaurante faz faculdade em carreiras que não têm nada a ver com a função – tem um caso de gente que fez Contabilidade enquanto trabalhava aqui, terminou a faculdade, hoje trabalha em grande escritório e volta como cliente.

Nosso salário médio é o dobro do salário médio do nosso distrito, a Vila Medeiros, e é superior ao salário médio de Pinheiros. E aí eu me dei conta que se a gente tiver mais negócios prósperos nas comunidades, a gente vai ter um enriquecimento em todos os sentidos: saúde, cultura, acesso. Isso tem a ver com o próprio conceito de restaurante. A palavra “restaurante” tem a ver com restaurar uma pessoa. Um restaurante serve para que as pessoas saiam dali melhores do que entraram. E se a gente pode restaurar uma pessoa, descobrimos que também podemos ajudar a restaurar uma comunidade, uma cidade, um país. É uma das nossas grandes missões.

Bruno Capelas é jornalista. Foi repórter e editor de tecnologia do Estadão e líder de comunicação da firma de venture capital Canary. Também escreveu o livro 'Raios e Trovões – A História do Fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum'.