Desde que chegou à Daiichi Sankyo, em 2019, o sociólogo Irineu Silva tem ajudado a construir uma transformação silenciosa dentro da farmacêutica japonesa. À frente de um time de mais de 600 pessoas no Brasil, ele lidera iniciativas que vão da formação de novas lideranças à ampliação da representatividade – em um ambiente onde 60% dos cargos de gestão já são ocupados por pessoas de grupos diversos.
Com mais de duas décadas de experiência na área, Irineu acredita que o RH precisa ser, acima de tudo, um guardião das pessoas.“Quando entrei, ouvi do presidente que ele já tinha um diretor financeiro para cuidar das finanças, e precisava de um RH que cuidasse das pessoas. Essa frase virou um norte para mim”, conta o executivo.
Sob sua liderança, a empresa consolidou iniciativas como o Farol da Diversidade, ferramenta que acompanha a evolução dos indicadores de inclusão, e reforçou programas de desenvolvimento voltados a mulheres, pessoas negras e em situação de vulnerabilidade.
Ao mesmo tempo, ele vê um novo desafio emergindo no horizonte. “A grande questão da atualidade é a saúde mental”, diz. “Ela está cada vez mais presente, seja na vida dos colaboradores ou de suas famílias, e exige da liderança uma escuta mais atenta, sensível e preparada.”
Desde os primeiros testes vocacionais, ainda no Ensino Médio, a área de humanas apareceu muito forte para mim. Quando fui fazer Ciências Sociais, o curso era dividido em três grandes eixos: Ciência Política, Sociologia e Antropologia. Dessas, Antropologia tinha um viés muito forte sobre a questão da cultura, que é fundamental no mundo corporativo. Na Sociologia, também lembro de estudar muito a sociologia do trabalho. Estávamos nos anos 1990 e era uma forma de muitas mudanças na gestão do trabalho. O engraçado é que eu comecei no segmento de indústria farmacêutica na área comercial, depois passei por algumas áreas de suporte e de negócios. Em determinado momento, fui convidado a fazer parte de um projeto de responsabilidade social, apoiando entidades que cuidavam de crianças – e acabei me aproximando do RH, de forma acidental, até que acabei fazendo a transição. Foi um momento muito interessante de fazer a transição, com a área de RH indo muito além das relações trabalhistas.
Como foi fazer essa transição do comercial para o RH? O que você teve de aprender?
Teve três pilares importantes. Um foi na área teórica: fiz um MBA na FIA, voltado para a gestão de pessoas. O segundo foi aprender com pessoas que já atuavam na área, fazendo benchmark com outras empresas. E o terceiro envolveu muito a equipe que existia na empresa. Costumo dizer que eu nunca vou saber fazer um processo seletivo como faz uma gerente de recrutamento e seleção. É muito importante ter pessoas que se complementam – e ter a humildade de que você nunca vai controlar todas as áreas. É importante ter uma equipe capaz.
Como foi sua chegada à Daiichi em 2019?
Foi muito interessante. O presidente atual, Marcelo Gonçalves, brincou comigo que precisava de um RH que cuidasse das pessoas – porque, para as finanças, ele já tinha o diretor financeiro. Para ele, o diretor financeiro é quem vai olhar para a economia no plano de saúde. O RH tinha que de fato zelar pelas pessoas. E isso me ajudou muito quando cheguei, até porque eu tinha a convicção de que as pessoas fazem a diferença mesmo. A primeira coisa que fiz foi mandar um e-mail para todos os funcionários me apresentando e perguntando o que poderia ser melhorado na companhia. Da mesma forma, também levei a mesma pergunta para a matriz. E isso foi a base para criar o nosso plano estratégico de RH ao longo dos últimos anos e que tem funcionado bastante.
Ao contrário do que acontece em outros setores, o nível de remuneração e benefícios é alto no setor farmacêutico. É um movimento interessante, mas também é um desafio para quem está nesse mercado, porque deixa de gerar diferenciais. Como você vê essa questão?
Você tem razão: é um segmento que tem remuneração e benefícios atrativos. Mas o principal fator nessa discussão sobre gestão de talentos para nós está no clima organizacional. Não é incomum ouvirmos que nossos colaboradores receberam propostas, mas decidiram ficar porque gostam de trabalhar aqui. É um caminho que faz muita diferença para nós. Outra questão importante é a do propósito: nós trabalhamos com medicamentos de oncologia, e isso faz muita diferença na percepção das pessoas sobre o trabalho. Acabamos de doar antídoto para metanol para o governo federal, e isso faz com que as pessoas percebam a relevância do que fazem. O ambiente e o propósito ajudam muito.
Uma das tuas marcas à frente do RH da Daiichi Sankyo é a bandeira de diversidade e inclusão. Como era o ambiente nesse assunto quando você chegou?
Foi outro desafio bem relevante que o presidente me trouxe quando cheguei. Logo de início, criamos um workshop com todos os líderes, olhando para as forças e as fraquezas da empresa. Ali, percebemos que a comunicação e o planejamento podiam melhorar, mas sobretudo a diversidade e a inclusão. Ao longo dos anos, começamos a desenvolver ações – como os grupos de afinidade, hoje eu mesmo faço parte do grupo de afinidade Afro Sankyo. Além disso, começamos a criar ações a partir dos comitês. Uma das nossas primeiras iniciativas foi um programa de estágio focado em pessoas negras. É um programa que temos até hoje, mas que também traz como critério a vulnerabilidade social. E é um programa que faz a diferença na empresa, já temos tido um número de retenção muito grande. Temos metas de aumentar o número de pessoas negras na liderança, assim como o de mulheres. Hoje, ainda não temos o número que queríamos, mas estamos fazendo o trabalho desde o começo: trazendo estagiários que viram analistas, e esses analistas, por sua vez, viram coordenadores. Temos que dar oportunidade para quem geralmente não tem oportunidade.
Trazer representatividade na liderança é uma questão que tem surgido em muitas organizações, seja na questão étnico-racial ou de gênero. Como vocês estão trabalhando esse tema dentro da Daiichi?
Nós temos lançado mão de uma série de programas. De partida, é importante identificar o que está acontecendo. Por exemplo, temos um índice menor de líderes mulheres na nossa força de vendas. O que fizemos? Abrimos uma roda de conversa e percebemos que algumas mulheres não queriam se candidatar às vagas de liderança. Por quê? Em alguns casos, muitas não queriam viajar por conta dos cuidados com filhos. A partir disso, temos tentado desmistificar algumas questões – e ao mesmo tempo, flexibilizar o trabalho para entender como ele pode se tornar conciliável com a maternidade. Em Salvador, por exemplo, nós flexibilizamos o tamanho de uma área para estar condizente com a disponibilidade da nossa líder de vendas. Em paralelo, também estamos sempre mapeando as mulheres que têm potencial para serem líderes, levando-as para um programa de aceleração de lideranças femininas. Outra forma de resolver essa dúvida que as pessoas têm é usando o job rotation: nós abrimos espaço para a pessoa testar a posição de líder durante um período determinado. Se ela não se encaixar, pode voltar para a função anterior dela sem perder nenhum benefício. Mas normalmente, tem dado certo.
É preciso respeitar a individualidade do colaborador, sabendo como intervir ou oferecer ajuda.
Quais são os desafios que você enxerga para o RH no futuro?
A grande questão da atualidade é a saúde mental. É uma temática que está cada vez mais presente – seja na vida dos colaboradores ou na família deles. É um tema para o qual temos preparado a nossa liderança, prestando a atenção em como lidar em diferentes aspectos. Às vezes o trabalho é um problema, mas também pode ser uma válvula de escape para questões pessoais. É preciso respeitar a individualidade do colaborador, sabendo como intervir ou oferecer ajuda. Outro ponto que chama a nossa atenção é como as gerações mais novas tem uma incidência maior nesse aspecto. Além disso, há toda a temática da inteligência artificial, mas gostaria de falar mais sobre como ela tem nos ajudado muito com dados, dentro da disciplina de People Analytics. É um desafio, mas também pode trazer muitas oportunidades, especialmente fazendo o RH olhar mais para a estatística.
Irineu, para fechar: alguma indicação de leitura?
Essa está fácil. Indico o “A Organização Sem Medo”, da Amy Edmondson. É um livro muito interessante. Ela estava fazendo doutorado em Psicologia, olhando para hospitais, buscando entender o que gerava os erros médicos. A tese inicial dela é que os times de melhores resultados eram aqueles que erravam menos. E após seis meses de observação, ela percebeu uma correlação interessante: as equipes de melhor desempenho eram aquelas que erravam mais. E ao fazer a discussão sociológica, ela entendeu que as melhores equipes não erravam mais, mas sim tinham segurança psicológica para revelar seus erros. No livro, ela descreve não só isso, como também abre a discussão sobre a importância da segurança psicológica nas equipes, que é um tema super importante hoje em dia.