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Creches no local de trabalho são diferencial para empresas, famílias e crianças

Apesar de não serem obrigatórios por lei, espaços trazem benefícios para o desenvolvimento na primeira infância e facilitam a vida de trabalhadoras; engajamento, retenção e atração de talentos também servem como incentivos para as organizações

Bruno Capelas
5 de julho de 2024
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Está na lei: segundo a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), toda empresa que tem mais de 30 funcionárias acima dos 16 anos tem a obrigação de conceder auxílio-creche para suas colaboradoras. Mais que isso, o direito a creche foi reconhecido em 2022 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como um direito constitucional tanto de crianças quanto de mães – em seu voto, a ministra Rosa Weber declarou que oferecer educação infantil é imprescindível para assegurar às mulheres a segurança no exercício do direito do trabalho e da família, já que elas enfrentam maiores dificuldades para conciliar vida pessoal, familiar e laboral. 

Não é pouco: segundo pesquisa da Universidade de Princeton e da London School of Economics, a carreira das mães no Brasil é 37% mais afetada que as dos pais nos 10 anos após o nascimento do primeiro filho – o país exibe número bem acima das médias de Europa (29%), Ásia (26%), América do Norte (25%). Visando não só reduzir esse tipo de disparidade, mas também diminuir o impacto da reinserção das mulheres no mercado de trabalho após a maternidade, diversas empresas oferecem creches no local de trabalho. Mais significativa do que apenas um depósito na conta da colaboradora ou uma linha a mais no contracheque, esse tipo de política não é exatamente nova, mas pode trazer vantagens para as organizações, as mães e as crianças. 

É o que acontece, por exemplo, na Bosch, que oferece creche – a Kinderhaus– para os filhos dos colaboradores nas unidades de Curitiba e de Campinas, ambas em parceria com o Sesi Paraná. Em cada local, cerca de 100 crianças entre 4 meses e 4 anos de idade recebem não só atenção e cuidados, mas até mesmo uma aprendizagem bilíngue entre português e inglês, diariamente, das 5h15 da manhã às 18h30. Em Curitiba, por exemplo, o espaço contém solário, biblioteca, brinquedoteca, playground externo, lactário e sala de amamentação. 

“Nossa experiência nos mostra que a proximidade com o local de trabalho permite à mãe uma maior flexibilidade, principalmente no período de amamentação materna, de deslocamento, atenção e atendimento às necessidades da criança”, conta Fábio Amaral Machado, gerente de Recursos Humanos da Bosch Campinas. “Sabemos o quanto é difícil o retorno ao trabalho após o nascimento e o impacto desse retorno na estrutura emocional das mães, que muitas vezes se sentem divididas entre a profissão e a maternidade.” 

Fábio Amaral

De acordo com o executivo, o investimento nas creches está ligado à noção da responsabilidade social da empresa, que há décadas aporta recursos em projetos de educação. “Investir na primeira infância pode ter um impacto significativo no desenvolvimento cognitivo, emocional, social e físico das crianças, com influência direta na saúde, no aprendizado e no comportamento delas”, lembra o gerente de RH. 

A criação de creches nos locais de trabalho também traz benefícios para a própria organização, afirma Machado – e isso tanto de um ponto de vista amplo quanto no dia a dia. “A Kinderhaus tem contribuído para o aumento da satisfação, o desenvolvimento profissional e a motivação no trabalho das colaboradoras mães. Além disso, pudemos constatar o crescimento de mulheres nos diversos níveis da organização e temos certeza de que o fato de termos a Kinderhaus nos auxiliou muito neste crescimento”, complementa o executivo. “Experimentamos o impacto no clima e a leveza que as crianças nos trazem quando fazemos ações em parceria com a Kinderhaus.” 

Disputa de modelos

Em algumas empresas, os dois modelos coexistem – como é o caso da farmacêutica Aché, que oferece creche às colaboradoras que trabalham nas áreas administrativa e industrial na fábrica de Guarulhos, na Grande São Paulo. Já o auxílio-creche é oferecido a quem trabalha nas outras quatro plantas da empresa espalhadas pelo País. 

Em ambos os casos, a empresa nota maior acolhimento da criança e da família, além de tranquilidade e seguridade no retorno das mães ao trabalho, mas há diferenças. “A creche corporativa também proporciona maior facilidade de participação da mãe no desenvolvimento da criança, sem o receio de se ausentar no trabalho para ir a uma reunião escolar, por exemplo, visto que esses encontros são proporcionados dentro da empresa”, destaca Andreia Vitoriano, diretora executiva de Pessoas do laboratório. 

Andreia Vitoriano

O tempo de deslocamento e a confiança na relação entre família e instituição escolar também são pontos positivos para a adoção de creches corporativas, destaca Marina Fragata, diretora de Políticas Públicas da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (MSCV), especializada no apoio à primeira infância. “É preciso olhar pela perspectiva do cuidado. Se a creche está muito distante, o tempo de deslocamento é maior e, por consequência, essa mãe fica com menos tempo de qualidade para dedicar à criança”, diz ela. “Uma relação de confiança entre família e escola, por sua vez, também contribui para que a criança tenha mais segurança ao explorar o mundo e descobrir sua própria identidade.” 

Marina Fragata

Essa relação de confiança é algo que, para as empresas, se desdobra nos atributos de marca empregadora. “Para a empresa, este é um benefício diferencial no momento de contratação e retenção de talentos. Além disso, manter políticas que possibilitem o desenvolvimento pedagógico reforça o comprometimento da empresa em levar mais vida às pessoas”, destaca Andréia, do Aché. Segundo a executiva, a creche corporativa teve satisfação de 94% dos colaboradores na pesquisa de satisfação interna realizada ao final do ano passado. 

Questão de gênero

Uma das principais diferenças entre as diversas creches corporativas existentes no Brasil é o critério para preenchimento das vagas. Em todos os casos, crianças que conseguem uma vaga têm garantia da matrícula no ano seguinte, mas a prioridade varia entre as empresas. Na Aché, por exemplo, o benefício é destinado às crianças de até 4 anos, seja para as colaboradoras ou para colaboradores viúvos, divorciados e separados que detenham a guarda dos filhos – mas não para os filhos dos colaboradores que são casados, por exemplo. 

Já na Bosch, os filhos das colaboradoras têm prioridade, sendo que as vagas remanescentes vão para os os pais que trabalham na planta. “Os estudos e trabalhos tiveram início na escuta ativa das mulheres e de suas necessidades. Saber que elas tinham um lugar seguro e com qualidade para deixar os filhos durante suas jornadas de trabalho foi uma das nossas principais preocupações”, explica Machado, gerente de RH da Bosch Campinas. “Isso era um fator-chave para atenção e retenção dessas profissionais, por isso o projeto foi idealizado para atendê-las como o primeiro grupo prioritário.” 

É uma discussão importante – e que pode contribuir ou não para a redução das disparidades de gênero dentro das famílias e das organizações. “Um dos principais desafios é que as empresas assumam a coparticipação de pais e mães na criação dos filhos. 

Se antes a mãe ficava em casa para cuidar das crianças, agora ela também sai para trabalhar. A contribuição das empresas aqui é crucial para o bem-estar da criança, mas isso não pode colocar a mulher em desvantagem”, avalia Marina Fragata, da Fundação MSCV. 

Se antes a mãe ficava em casa para cuidar das crianças, agora ela também sai para trabalhar. A contribuição das empresas aqui é crucial para o bem-estar da criança, mas isso não pode colocar a mulher em desvantagem

Na Natura&Co., por exemplo, desde 2018 o berçário é voltado para atender tanto colaboradores quanto para colaboradoras que tenham filhos de até dois anos e 11 meses. “Direcionamos nossas ações não apenas para as mães, mas para as famílias, pois acreditamos que o compromisso com o desenvolvimento dos filhos não é um trabalho exclusivo às mulheres. Nosso foco é criar consciência sobre a corresponsabilidade em relação aos cuidados com a criança”, declarou a empresa em um comunicado enviado a Cajuína.

Atualmente, 170 crianças são atendidas pelos berçários da empresa – 54 estão na unidade da Natura em Cajamar, enquanto outras 116 estão na sede administrativa da empresa, na capital de São Paulo, conhecida como NASP (Natura São Paulo). Em nota, a companhia afirma que “respondendo a uma crença fundamental da Natura, de que a vida é um encadeamento de relações, oferecer berçário aos filhos e filhas de colaboradores e colaboradoras é investir nos vínculos primordiais que são os vínculos entre mães, pais, filhas e filhos”. 

Fazer bem feito

De acordo com Marina Fragata, da Fundação MSCV, cuidar da primeira infância é um ponto importantíssimo para uma sociedade melhor. “Nessa fase, que vai de 0 a 6 anos, 90% das conexões cerebrais são formadas. É uma janela de oportunidades. Nesse sentido, uma boa educação infantil é importante para o desenvolvimento integral da criança e, futuramente, está associada a maiores níveis de sucesso acadêmico e profissional e à redução de desigualdades”, comenta a especialista. 

Mas ela pondera que as empresas precisam tomar cuidado com o tipo de benefício que oferecem. “Estudos indicam que creches e pré-escolas de baixa qualidade não geram efeitos positivos na escolaridade futura e podem até mesmo ter um impacto negativo no processo de aprendizagem da criança, em relação ao que ocorreria se ela não frequentasse a educação infantil”, afirma Marina. 

Não à toa, muitas empresas utilizam o apoio de parceiros pedagógicos, como a Bosch faz com o Sesi Paraná. “Somos responsáveis por zelar pela segurança das crianças no que diz respeito à infraestrutura. Já a parte pedagógica, gestão dos colaboradores e administração da creche, fica com o Sesi”, diz Machado. Segundo o executivo, o cuidado com as normas de atendimento é o que determina, por exemplo, o tamanho dos espaços oferecidos. “Mais do que a ampliação física, temos que levar em consideração também legislações dos órgãos de educação que determinam regras para o número correto de crianças, espaço físico apropriado e os impactos na dinâmica do modelo de aprendizagem”.

De acordo com Marina Fragata, quatro pontos são os principais de acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que norteia a educação no País. “Segundo a BNCC, a creche é um espaço de educação e cuidado e tem como eixo curricular as interações e as brincadeiras. Nesse sentido, uma educação infantil de qualidade precisa, necessariamente, olhar para quatro pontos estruturantes: infraestrutura; currículo; interações e práticas pedagógicas; e equipe e gestão”, diz.  

Para ela, porém, oferecer creche é apenas um primeiro passo. “Os gestores precisam olhar para as pessoas, e não somente no ambiente de trabalho”, afirma a especialista, que reforça a importância de políticas como lactário na empresa e licenças parentais estendidas. Outro ponto importante é a flexibilização de horários. “É algo que permite que tanto pais quanto mães possam se ausentar para levar o filho ao médico ou para ir a reuniões e eventos das escolas”, diz. “Há um provérbio africano que diz que é ‘preciso uma vila para cuidar de uma criança’. Nós precisamos não só ativar essa vila, mas também conscientizá-la da potência do seu papel.”

Bruno Capelas é jornalista. Foi repórter e editor de tecnologia do Estadão e líder de comunicação da firma de venture capital Canary. Também escreveu o livro 'Raios e Trovões – A História do Fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum'.