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Capacitação de jovens é alternativa das empresas contra escassez de talentos e ‘skills do futuro’

Velhos conhecidos, programas de estágio e trainee devem ser remodelados; além disso, ações de capacitação contínua se tornam cada vez mais relevantes

Maria Clara Dias
19 de dezembro de 2023
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Contratar e reter talentos tem sido um dos principais desafios dos RHs na atualidade – especialmente após a pandemia, quando a queda de barreiras físicas transformou essa disputa numa corrida global. Para quem trabalha com pessoas, um antídoto para esse problema antigo pode vir de uma prática histórica: a contratação e qualificação de jovens. Afinal de contas, pode parecer mais simples forjar o perfil de um profissional do zero do que buscar no mercado alguém que compartilhe de visão, valores e habilidades exigidas pela organização. Mas, para isso, as empresas precisam cada vez mais remodelar seus programas de estágio e trainee, atendendo às demandas de um público cada vez mais engajado, conectado e em busca de propósito.

Se antigamente o jovem recém-contratado tinha de estar à disposição para tarefas operacionais – incluindo o clássico “servir cafezinho” –, essa realidade parece estar chegando ao fim. Mais do que nunca, as empresas sentem que é preciso aproveitar o período ao lado de profissionais novatos para desenvolver competências mais visadas, aumentando a complexidade dos programas de estágio e trainee. Alguns deles até se tornam cada vez mais parecidos com especializações e pós-graduações, incluindo treinamentos técnicos e comportamentais, mentorias com diferentes lideranças da empresa e um ambiente amigável para a proposição de ideias e sugestões de soluções de negócio. Tudo com o propósito de preparar recém-chegados ao mercado — e, é claro, reter esses talentos por ali pelo maior tempo possível.

Se antigamente o jovem recém-contratado tinha de ‘servir cafezinho’, hoje as empresas querem aproveitar profissionais novatos para desenvolver competências mais visadas, aumentando a complexidade dos programas de estágio e trainee.

Na gigante de bens de consumo P&G, dona de marcas como Always, Pampers e Gillette, o programa de estágio agora tem vocação gerencial, dedicado exclusivamente à formação dos novos líderes da companhia. Uma vez dentro da empresa, os estagiários são testados a desenvolver projetos periódicos capazes de solucionar problemas reais da empresa, além de receberem mentorias, treinamentos formais e serem envolvidos em uma lógica de “peer buddy”, que inclui trocas constantes com funcionários com mais tempo de casa, em pares.

“Se falarmos com qualquer funcionário, ele dirá que nossa empresa é uma grande escola”, diz Raissa Ribeiro, gerente sênior de pessoas da P&G. “Aqui não existe a história de estagiário pegar cafezinho. Na P&G, entendemos que a primeira experiência profissional de um jovem também pode pavimentar o caminho dele até uma posição de gestão, e queremos dar a eles os insumos para chegar lá”, afirma a executiva. Ribeiro é, ela mesma, um exemplo da política de valorização de longo prazo da companhia, já que ingressou na P&G também como estagiária.

Raissa Ribeiro, Gerente Sênior de Pessoas da P&G

Segundo a gerente, 70% das posições de liderança da P&G são hoje ocupadas por profissionais que já foram estagiários. A cultura de valorização de jovens talentos se estende também à seleção de novos entrantes: hoje, menos de 20% das contratações consideram experiência de mercado. Os outros 80% são compostos por pessoas formadas, mas sem experiência, e que vieram do próprio programa de estágio, hoje principal porta de entrada na empresa.

“Costumamos falar que, na P&G, o próximo CEO já está entre nós, e possivelmente é um estagiário. Só não sabemos quem ele é ainda.”

Os resultados também são, em parte, intangíveis. Na P&G, diz Raissa, isso se traduz na percepção positiva sobre a marca empregadora. “Na prática, vemos que as pessoas se beneficiam e enxergam o valor nisso tudo. Hoje, 90% dos estagiários aprovam o programa, a dinâmica criada em torno dele e, por isso, afirmam que indicariam a P&G para outras pessoas”, diz. “A visão, como um todo, é de que investir em um jovem talento é positivo não apenas para ele, mas para toda a empresa. Costumamos falar que, na P&G, o próximo CEO já está entre nós, e possivelmente é um estagiário. Só não sabemos quem ele é ainda.”

Cadê o talento que estava aqui?

Analisar os principais gaps profissionais da empresa e entender a melhor maneira de preenchê-los é também uma preocupação do banco BS2, que em 2021 criou um programa de estágio em tecnologia, visando suprir uma lacuna deixada pelo próprio mercado. Diante de uma dificuldade gritante de encontrar profissionais para vagas em tecnologia, a decisão do BS2 foi a de trazer jovens sem experiência e treiná-los de acordo com as demandas mais urgentes do negócio, atuando como uma “fábrica interna de talentos”, com frutos a médio e longo prazo.

“Estagiário, para nós, não é mão de obra barata. No BS2 ele não é exposto a atividades banais e administrativas”.

Naquela época, o banco mapeou 10 áreas nas quais não era comum a presença de estagiários, dada a complexidade dos cargos e funções – em especial, em segmentos considerados sisudos, como câmbio, gestão orçamentária ou segurança da informação. Desde então, essas mesmas áreas vêm sendo abastecidas com jovens com pouca ou nenhuma experiência, mas que são treinados pelo próprio time do BS2.

“Estagiário, para nós, não é mão de obra barata. No BS2 ele não é exposto a atividades banais e administrativas”, diz Patrícia Braga, superintendente de Pessoas e Cultura do BS2. “Longe de fazê-lo apenas preencher planilhas, valorizamos a habilidade comportamental que já vem com cada um deles, e cuidamos do desenvolvimento das habilidades técnicas. É um processo conduzido a muitas mãos, e que recebe apoio de todas as lideranças”. O resultado está num esforço contínuo do time de RH do banco para continuar mapeando, anualmente, vagas em aberto que podem ser preenchidas por estagiários ao invés de profissionais mais gabaritados do mercado.

Patrícia Braga, Superintendente de Pessoas e Cultura do BS2

Por trás da criação de uma política de capacitação de jovens talentos há também o interesse de formar uma mão de obra hoje cara ao mercado: a de profissionais de tecnologia. Até o final da década, mais de 1 milhão de vagas permanecerão em aberto devido à ausência de profissionais qualificados, estima a consultoria McKinsey. “A proposta do nosso programa é treinar jovens para áreas muito nichadas no mercado e que vão demandar, cada vez mais, profissionais qualificados no futuro”, complementa Braga.

Até o final da década, mais de 1 milhão de vagas de tecnologia permanecerão em aberto devido à ausência de profissionais qualificados, estima a consultoria McKinsey.

Desde que iniciou o projeto há pouco mais de dois anos, o BS2 contratou cerca de 60% dos estagiários que passaram pelo programa. Dentre eles, 41% já receberam alguma promoção. Além dos números, Patrícia destaca melhorias no engajamento e fidelização dos jovens entrantes. “Se mantemos uma boa narrativa e desafios alinhados, vemos resultados. Percebemos que pessoas que começaram como estagiários são promovidas mais rapidamente, pois elas mostram que estão mais adaptadas à cultura, o que as possibilita mostrar resultados muito mais rápido”, diz.

Formação para dar conta do crescimento

Se de um lado há empresas que depositam suas fichas ao seguir a lógica de “caça-talentos” envolvendo jovens recém-chegados ao mercado de trabalho por meio de programas robustos de estágio, há outras que têm por objetivo manter uma jornada de amadurecimento contínuo para quem já está dentro do negócio.

É o caso da rede de atacarejos Assaí. Em 2023, a iniciativa de educação corporativa da empresa completa dez anos com uma estatística de fazer cair o queixo de muita empresa embrionária nos esforços de educar funcionários: no período, a empresa viu quintuplicar o número de colaboradores que concluíram o curso. Ao mesmo tempo, a taxa de turnover, desafio histórico do setor, caiu mais de 50%.

“Não basta acelerar as carreiras [das pessoas], mas ajudar a fazê-las se sentirem confortáveis em assumir posições superiores, desafios mais ousados. Essa educação é de nossa responsabilidade.”

Apelidada de Universidade Assaí, a iniciativa busca capacitar colaboradores na ponta da operação e levá-los a cargos de alta gestão. Para isso, dividiu sua atuação em cinco verticais, por lá apelidadas de “escolas de formação”. São elas: Atacado, Liderança, Operações, Comercial e Desenvolvimento Técnico e Comportamental. Apesar de focar em áreas específicas da operação, a universidade concentra trilhas de formação padrão, além de mais de 3 mil cursos e treinamentos que são disponibilizados livremente em uma plataforma digital – os temas, só para ficar na letra E, variam de Excel a ESG.

Fernanda Toniolo, Gerente de RH do Assaí

Por ter ganhado tração em meio à pandemia, a iniciativa de educação do Assaí tem boa parte do seu DNA no ambiente digital. Em uma plataforma online, colaboradores têm acesso a diferentes trilhas de conteúdo contendo materiais didáticos como vídeos, livros e outros conteúdos. “Entendemos a Universidade como uma ferramenta. Ela não é um portal ou um lugar, ela é uma jornada dentro de uma cultura de aprendizagem que se conecta com o que a empresa quer”, diz Fernanda Toniolo, gerente de RH do Assaí. Além disso, todas as novas lojas físicas nascem com sua própria sala de aula, como destaca a executiva. “Uma loja nascer com uma sala já equipada é simbólico. Sinaliza que educação, e capacitação de talentos é uma prioridade para nós”.

“A Universidade Assaí não é um portal ou um lugar, ela é uma jornada dentro de uma cultura de aprendizagem que se conecta com o que a empresa quer”.

A ambição em relação ao aprendizado contínuo dos funcionários não é à toa. A Universidade Corporativa segue o ritmo de crescimento extremamente agressivo da própria rede — e do mercado de atacarejos em geral. No Assaí, apenas em 2022, foram 60 inaugurações de lojas. O crescimento exige a habilidade de fazer contratações de forma ágil: para cada novo ponto de venda, são gerados cerca de 300 empregos diretos, da frente de caixa à reposição de estoques e gerência. “O crescimento do negócio precisa refletir no crescimento da nossa própria força de trabalho”, avalia. “Sabemos que para toda empresa, preparar o time e suas pessoas é algo primordial”, diz Toniolo.

Nesse contexto, a visão é de que não basta contratar aos montes, mas é preciso garantir que quem está envolvido seja capaz de acompanhar a evolução do próprio negócio e ganhe as habilidades necessárias para isso, ela pontua. “Não basta acelerar as carreiras, mas ajudar a fazê-las se sentirem confortáveis em assumir posições superiores, desafios mais ousados. Essa educação é de nossa responsabilidade”, ressalta a executiva.

E por falar em posições superiores, o Assaí envelopa suas promoções à subgerência ao desenvolvimento interno de talentos novatos. Atualmente, todos os subgerentes de lojas são funcionários promovidos após passagem pelo programa de trainee e devidamente preparados para essa posição após treinamentos dentro da Universidade interna.

O desafio da cultura

Manter a unidade do discurso e ao mesmo tempo engajar todos os colaboradores a fomentar uma cultura de aprendizado é um dos principais desafios para empresas que miram programas bem estruturados. Afinal, para criar uma cultura centrada em desenvolvimento de novos profissionais, é preciso que todo e qualquer líder esteja empenhado em colaborar.

Para Patrícia, do BS2, o alinhamento cultural é um passo fundamental para implementar programas duradouros e que vão além do modelo batido de estágio proposto atualmente. Ela também pontua que é necessário dar o exemplo, evidenciando de maneira clara aos líderes e demais colaboradores da empresa os benefícios de uma política de capacitação de quem começa, via de regra, sem qualquer experiência. “Não é um benefício de mão única. Mostramos aos líderes os resultados, como nossa força de marca e percepção, as avaliações positivas dos funcionários e do mercado, a redução do turnover e o tempo economizado em novos treinamentos que seriam necessários caso eles sempre contratassem novas pessoas. Contra dados não há argumentos”, diz.

A própria mudança do BS2 para um banco totalmente digital, um movimento que ganhou força em 2018, incentivou a adaptação de múltiplos profissionais. Em 2022, a empresa criou a iniciativa “Academia Ágil”, na qual capacitou cerca de 400 funcionários em temas ligados ao universo digital. “Somos uma empresa que prepara as pessoas para atuarem em novos papéis. E entendemos que quando fazemos isso a empresa ganha mais velocidade, reduz conflitos e entrega produtos de mais qualidade aos clientes. Não há espaço para desperdício de tempo e a entrega passa a ser focada no que realmente precisa de atenção”, complementa Braga.

Considerar as perspectivas pessoais e aspirações futuras desses talentos, sejam eles recém-chegados ao mercado ou não, é fundamental para o sucesso de qualquer programa de estágio, trainee ou capacitação contínua da força de trabalho.

Criar um programa de estágio capaz de superar estigmas relacionados à subvalorização do estagiário não é tarefa simples, destaca Raissa, da P&G. Para não tatear no escuro, destaca a executiva, é preciso manter as bases da cultura corporativa, mas também abraçar temáticas que acompanhem o frenesi tecnológico — e que despertem o desejo dos estudantes. Segundo a gerente de talentos, é preciso que as empresas estejam antenadas às principais tendências do momento, como redes sociais e inteligência artificial, por exemplo.

Com o boom de ferramentas e tecnologias que otimizam o dia a dia operacional, as empresas devem também se atentar à valorização dos talentos em sua essência “humana”. Em consenso, as executivas concordam que considerar as perspectivas pessoais e aspirações futuras desses talentos, sejam eles recém-chegados ao mercado ou não, é fundamental para o sucesso de qualquer programa de estágio, trainee ou capacitação contínua da força de trabalho.

O cuidado com o indivíduo, da perspectiva de desenvolvê-lo como parte de uma cultura, é o que realmente importa“, diz Raissa, da P&G. No final, todos teremos acesso à inteligência artificial, mas o que vai fazer diferença é a cultura de uma empresa e o fato de um colaborador entender que essa cultura está o ajudando a construir seu futuro profissional”.

Jornalista de negócios, empreendedorismo e tecnologia. Passou por publicações como Exame, Época Negócios e Autoesporte, além de colaborar com reportagens especiais para a Gazeta do Povo. É vencedora do Prêmio de Destaque em Franchising na categoria Jornalismo de Revista pela ABF em 2022.