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“O RH precisa ser tanto pragmático quanto profético”, diz Richard Barrett

Referência global em cultura organizacional, autor britânico fala sobre propósito, valores humanos e o papel dos líderes na construção de empresas mais conscientes

Michele Loureiro
5 de novembro de 2025
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Em um mundo em que as empresas correm para adaptar-se à revolução tecnológica, às novas relações de trabalho e às pressões por propósito e bem-estar, o britânico Richard Barrett propõe uma inversão de lógica: antes de falar em performance, é preciso compreender a consciência. Engenheiro de formação, referência global em cultura organizacional e liderança baseada em valores, Barrett defende que o verdadeiro diferencial competitivo está na coerência entre o que as organizações declaram e o que realmente praticam. 

Fundador do Barrett Values Centre e criador do modelo que leva seu nome, usado por companhias e governos em mais de 90 países, ele se tornou uma das vozes mais influentes no debate sobre liderança consciente e evolução cultural nas empresas. Em uma entrevista exclusiva para Cajuína, Barrett fala sobre a transição de sua carreira da engenharia para o estudo da alma das organizações e analisa como temas como diversidade geracional, etarismo, tecnologia, bem-estar e até mesmo o offboarding se tornaram centrais na gestão contemporânea. 

Entre provocações e reflexões, ele defende que o papel do líder do futuro será o de transmissor de confiança e coerência, capaz de sustentar culturas que integrem ego e propósito – e de transformar ambientes corporativos em espaços onde as pessoas possam prosperar de forma autêntica e sustentável. 

Quando os funcionários conectam seu trabalho com aquilo que tem significado, o alto desempenho se torna um resultado natural.

O senhor é formado em Engenharia. O que o levou a sair da área para estudar cultura organizacional e valores humanos? Houve um momento-chave que despertou esse interesse?

Comecei minha carreira como engenheiro porque era fascinado pela maneira como os sistemas funcionam – ou seja, como estrutura, projeto e processo criam ordem a partir da complexidade. Com o tempo, percebi que os sistemas mais desafiadores e imprevisíveis não eram mecânicos ou tecnológicos, mas humanos. As organizações frequentemente fracassavam não por causa de estratégias falhas, mas porque os líderes negligenciavam os motores invisíveis do comportamento – valores, confiança e significado. Essa percepção começou a mudar o foco da minha atenção dos sistemas técnicos para os sistemas culturais.

No final dos meus 40 anos, senti um chamado inegável da minha alma para mudar de carreira. Foi um momento de profunda clareza: eu sabia que estava destinado a dedicar o resto da minha vida a compreender a consciência humana e a cultura. Esse impulso interior me levou a desenvolver o Modelo Barrett, a explorar valores e propósito como motores centrais do desempenho e a integrar psicologia, espiritualidade e pensamento sistêmico em uma nova forma de enxergar liderança e organizações.

Em seu livro “Libertando a Alma da Organização”, você defendeu que valores e propósito são motores de performance. Quais evidências mais fortes consolidaram essa visão ao longo dos anos?

A evidência mais forte e consistente ao longo de três décadas de trabalho com organizações em todo o mundo é: empresas que alinham cultura com propósito e valores superam seus concorrentes em engajamento, inovação e desempenho de longo prazo. Seja a Unilever incorporando a sustentabilidade em sua missão ou empresas menores usando valores compartilhados para construir resiliência, o padrão se repete. Quando os funcionários conectam seu trabalho com aquilo que tem significado, o alto desempenho se torna um resultado natural.

Também vi o contrário: organizações que perseguem metas financeiras de curto prazo, negligenciando cultura e valores, frequentemente enfrentam desengajamento, desconfiança e, por fim, declínio. A evidência mais inegável não está apenas nos dados, mas nas histórias vividas pelas organizações. Nas empresas em que valores e propósito estão vivos, as pessoas prosperam e os resultados acontecem. Naquelas em que estão ausentes, nem a melhor estratégia consegue sustentar o sistema.

O Modelo Barrett evoluiu nas últimas décadas. Que mudanças mais recentes refletem a realidade híbrida e o pós-pandemia?

O Modelo Barrett evoluiu para integrar as novas realidades que as organizações enfrentam. Em especial, a principal evolução está no ambiente híbrido, onde pertencimento e confiança precisam ser cultivados tanto nos espaços físicos quanto nos digitais. Na pós-pandemia, a demanda por segurança psicológica, inclusão e cuidado se tornou inegociável. A cultura deixou de ser pano de fundo para se tornar o sistema operacional da vida organizacional.

Também adaptamos o modelo para destacar como os líderes precisam manter coerência diante de necessidades diversas, como diversidade geracional, bem-estar e a integração entre vida pessoal e trabalho. Nesse contexto, a cultura não é tanto sobre a busca da uniformidade e sim da ressonância: criar condições para que as diferenças possam coexistir sem gerar fragmentação. O mundo pós-pandemia nos mostrou que cultura não é uma “questão secundária”, mas sim de sobrevivência.

Você costuma dizer que “liderança é um estado de consciência”. Quais comportamentos diferenciam líderes que fortalecem ou que destroem culturas de alto desempenho?

Líderes que fortalecem a cultura são aqueles que demonstram presença, humildade e empatia. Eles ouvem profundamente, são capazes de regular seus estados emocionais e criam ambientes de segurança psicológica. Reconstroem a confiança quando ela é quebrada e são um modelo de alinhamento entre valores e ação. Em resumo, eles criam coerência no campo cultural pela maneira como se comportam.

Em comparação, líderes que enfraquecem a cultura operam a partir do medo e do ego. Eles silenciam as vozes discordantes, se apegam ao controle ou privilegiam resultados de curto prazo em detrimento da confiança de longo prazo. Seus comportamentos geram ansiedade e fragmentação no sistema. A diferença é marcante: líderes conscientes sustentam a frequência da confiança, enquanto líderes inconscientes transmitem medo. 

Sobre etarismo: quais impactos mais preocupam as empresas hoje e que políticas efetivas ajudam a reduzir vieses contra profissionais mais experientes e maduros,  sem excluir os mais jovens?

O etarismo me preocupa porque priva as organizações da sabedoria justamente no momento em que ela é mais necessária. Profissionais maduros frequentemente carregam com eles anos de experiência, capacidade de reconhecer padrões e resiliência, mas são facilmente deixados de lado. Isso leva à perda da mentoria, do enfraquecimento do diálogo intergeracional e da fragilização das culturas corporativas. Também reforça uma mensagem cultural perigosa: o valor da contribuição do ser humano diminui com a idade, o que não é verdade. 

As políticas mais eficazes criam reciprocidade entre gerações. O que mais ajuda nesse processo são ideias como mentoria intergeracional, trajetórias de carreira flexíveis, aposentadoria gradual e valorização das contribuições com base na sabedoria, e não na idade. O objetivo não é privilegiar uma geração em detrimento de outra, mas criar uma cultura em que diferentes fases da vida se complementam. Quando projetadas de forma consciente, as organizações podem se tornar espaços onde tanto a energia das novas gerações quanto dos profissionais maduros florescem juntas. 

Quando os líderes compreendem que as diferenças geracionais podem ser vistas como complementares, e não opostas, a confiança floresce e a cultura se torna mais coerente. 

Em relação à diversidade geracional, quais são os erros mais comuns das empresas ao lidar com equipes multigeracionais — e que práticas criam de fato confiança entre Baby Boomers, Millennials e Gen Z?

O erro mais comum é tratar Baby Boomers, Geração X, Millennials e Geração Z como categorias fixas, ao invés de pessoas em evolução. Esse estereótipo frequentemente leva à polarização, em que as diferentes gerações criticam umas às outras, ao invés de aprenderem juntas. Outro erro é querer impor a visão de mundo de uma geração a todas as outras, o que gera desconexão.

As práticas que inspiram confiança são aquelas que convidam ao diálogo e à reciprocidade. Para construir pontes é importante criar círculos de histórias em que cada geração compartilha suas experiências formativas, programas de mentoria recíproca e projetos conjuntos que conectam diferentes visões de mundo. Quando os líderes compreendem que as diferenças geracionais podem ser vistas como complementares, e não opostas, a confiança floresce e a cultura se torna mais coerente. 

Leia também: Conflito geracional: que tal abandonar rótulos e integrar as gerações nas organizações?

No livro “A Nova Psicologia do Bem-Estar Humano”, você fala sobre integrar ego e propósito. Como essa visão pode ajudar a combater a exaustão e o cinismo organizacional?

A exaustão frequentemente surge quando as pessoas vivem apenas a partir da dimensão do ego – um foco unilateral por segurança, poder/status ou desempenho sem conexão com um sentido mais profundo. Isso leva à exaustão e ao cinismo, porque a energia do ego é limitada. Quando o propósito é integrado, o trabalho se torna uma expressão do desejo de servir, ao invés de ser apenas uma sequência de entregas. Essa integração reabastece a energia, porque conecta o indivíduo a algo maior do que ele mesmo.

Em termos organizacionais, alinhar as necessidades do ego com um propósito significa criar funções em que as pessoas possam compartilhar tanto suas competências quanto os desejos de sua alma. Isso reduz o cinismo, porque restaura a coerência entre vida interior e exterior. As pessoas deixam de sentir que estão se vendendo para sobreviver, e passam a contribuir para uma causa que importa para elas. Esse alinhamento é um antídoto profundo contra a exaustão.

O uso da análise de dados tanto de cultura quanto de pessoas cresce continuamente. Como encontrar o equilíbrio entre dados úteis e invasão de privacidade? Quais métricas são éticas e eficazes? 

O equilíbrio está na transparência e no consentimento. Os funcionários devem saber o que está sendo medido e por que, tendo certeza de que o propósito é apoiar o desenvolvimento de cada um, e não os controlá-los ou explorá-los. Sem essa base, a análise pode rapidamente se tornar invasiva e destrutiva para a confiança.

As métricas mais éticas e eficazes focam em confiança, pertencimento, alinhamento de valores e segurança psicológica. Esses são indicadores preditivos da saúde cultural e do desempenho. Eles respeitam a privacidade, ao mesmo tempo em que oferecem aos líderes uma visão significativa da realidade vivida na cultura da empresa. Quando tratadas com cuidado, as análises podem se tornar um espelho da cultura, ao invés de um mecanismo de vigilância. 

Quais transformações culturais recentes mais o impressionaram e que práticas poderiam ser replicadas em outros contextos?

Fiquei bastante impressionado com organizações que usaram a pandemia como um momento de redefinição, incorporando flexibilidade, bem-estar e inclusão em seu núcleo. Muitos líderes perceberam que a cultura não era apenas um sistema de apoio, mas o verdadeiro alicerce da resiliência. Esse reconhecimento transformou a forma como as organizações encaram o tema do propósito e do pertencimento.

Práticas que valem a pena serem replicadas incluem rituais híbridos de pertencimento, tomada de decisão dirigida por valores e o bem-estar do colaborador incorporados como infraestrutura cultural. Essas mudanças não são específicas de setores; elas podem ser adotadas por qualquer organização que queira levar a cultura a sério. O que mais me impressiona é que essas transformações, muitas vezes, nasceram da necessidade – e, ainda assim, revelaram possibilidades de futuros mais humanos. 

As culturas prosperam quando os líderes geram frequências coerentes de confiança e propósito. 

Que três capacidades serão essenciais para os líderes na próxima década diante da disrupção tecnológica, dos riscos geopolíticos e da pressão por propósito?

A primeira é a presença consciente. Ou seja, a capacidade de regular o próprio estado interior, transmitir confiança e manter coerência em contextos turbulentos. A segunda é a agilidade cultural: a capacidade de se adaptar rapidamente sem perder a identidade, de se mover com a disrupção mantendo a ressonância. A terceira é a gestão do propósito, alinhando a ação organizacional não apenas com o lucro, mas também com o bem-estar das pessoas e do planeta.

Por trás das três, está a habilidade do líder de trabalhar com frequência e coerência. Os líderes do futuro precisarão entender que são transmissores de energia, moldando o campo cultural pela frequência que sustentam. As culturas prosperam quando os líderes geram frequências coerentes de confiança e propósito. Elas se fragmentam quando os líderes transmitem medo e incoerência.

O processo de offboarding muitas vezes é negligenciado nas empresas. Como torná-lo parte da cultura organizacional e até um diferencial para a marca empregadora?

As saídas dos colaboradores são tão significativas culturalmente falando quanto as entradas. Quando o desligamento é mal-conduzido, ele gera danos tanto nos que partem quanto nos que ficam. Quando conduzido com cuidado, torna-se um poderoso sinal de integridade e respeito. O desligamento não deve ser uma transação, mas um rito de passagem, honrando a contribuição do colaborador e oferecendo a oportunidade de um fechamento de ciclo.

As organizações que se destacam nessa área constroem rituais de gratidão, mantêm redes de ex-colaboradores e apoiam transições com dignidade. Isso cria embaixadores da empresa, ao invés de críticos. Com o tempo, a forma como uma organização lida com as despedidas se torna parte de sua marca. Empresas lembradas por honrar as pessoas no final de suas jornadas conquistam a confiança e a lealdade daqueles que permanecem.

Você acredita que a cultura organizacional é um ativo que pode ser “medido e gerido” como finanças e operações? Quais indicadores devem estar no radar do conselho de administração?

A cultura pode e deve ser medida, mas não da mesma forma como as finanças. Dados financeiros acompanham transações; dados culturais acompanham confiança, pertencimento e alinhamento de valores. Eles podem ser intangíveis, mas são os indicadores preditivos de resiliência e desempenho de longo prazo.

Os conselhos de administração devem monitorar níveis de confiança e engajamento dos funcionários, o alinhamento com o propósito organizacional e a segurança psicológica. Esses indicadores não são menos importantes: eles predizem desde a inovação até a retenção dos colaboradores, além dos resultados financeiros. Conselhos que deixam de medir a cultura correm o risco de gerir apenas a superfície, ignorando os motores mais profundos da sustentabilidade. 

Que conselhos você daria aos profissionais de RH que precisam equilibrar pressões de curto prazo com a construção de culturas sustentáveis de longo prazo?

Profissionais de RH precisam aprender a sustentar um duplo foco: é preciso atender às necessidades imediatas, ao mesmo tempo em que mantêm a visão de longo prazo da alma da organização. Isso exige coragem, porque as pressões de curto prazo são sempre mais imperativas. A chave é tomar decisões com base em valores, garantindo que até mesmo as escolhas urgentes não prejudiquem a confiança e o pertencimento de longo prazo.

Meu conselho é pensar o RH tanto como pragmático quanto profético. Pragmaticamente, entregando o que é necessário hoje; profeticamente, protegendo a integridade da cultura para o amanhã. A verdadeira vocação do RH não é apenas gerir processos, mas ser o guardião da arquitetura interior da organização.

Michele Loureiro é repórter há 18 anos. Com passagens por redações como Exame, Época Negócios e Folha de S.Paulo, é apaixonada por contar histórias que mudam as vidas das pessoas.

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