Com mais de 20 anos de experiência atuando em empresas globais com liderança executiva, gestão de talentos e desenvolvimento organizacional, Annmarie Neal é uma executiva americana que sabe bem o que é fazer a gestão de times em processos de mudanças extremas. Com passagens por companhias como Cisco, First Data e RHR International, ela viu de perto o auge da transformação digital. Agora, como Chief People Officer interina da Zendesk, ela soma mais uma revolução ao seu currículo: a chegada da IA, que vai mudar radicalmente o futuro do trabalho.
Responsável por cuidar de mais de 5 mil pessoas no mundo, incluindo um time de 160 colaboradores no Brasil, Annmarie foi um dos destaques do Zendesk Showcase, evento realizado em agosto por aqui pela companhia de tecnologia e atendimento ao cliente. No encontro, ela pautou seu discurso pela necessidade de mudança constante. “As transformações mais significativas acontecem quando a mudança não é apenas uma necessidade, mas um convite, ou uma chance de redesenhar fundamentalmente como a cultura e a liderança se manifestam na organização”, diz a executiva, há seis meses no cargo.
Para Annmarie, sua experiência a ensinou a normalizar a mudança como uma constante e a enxergar a resistência não como obstáculo, mas como um feedback valioso, além de incorporar a capacidade de liderança diretamente no ritmo do trabalho diário. Além de ocupar o cargo na Zendesk, ela também é sócia e diretora de talentos da firma americana de private equity Hellman & Friedman. “A sinergia dos dois cargos está em trazer práticas comprovadas de diversos setores para um ambiente de tecnologia em rápido crescimento. O desafio, claro, é equilibrar ambos os papéis com o mesmo nível de profundidade e intenção, mas é aí que a disciplina do foco estratégico se torna essencial”, diz.
Na visão da executiva, os papéis do RH vão mudar drasticamente nos próximos anos. “O trabalho rotineiro e transacional será automatizado, liberando os profissionais de RH para focar no que realmente importa — criatividade, empatia e pensamento estratégico. Os líderes irão desenhar e orquestrar como pessoas e tecnologia trabalham juntas para moldar estratégias de talentos, construir cultura e gerar resultados”, diz.
Na entrevista a seguir, ela fala sobre a intersecção entre RH e tecnologia e os principais pontos de atenção em tempos de mudanças constantes.
À medida que as organizações se expandem globalmente e mudam rapidamente, manter um senso compartilhado de identidade e propósito se torna mais complexo.
Minha base acadêmica em negócios e psicologia – tanto clínica quanto organizacional – moldou a forma como compreendo o comportamento humano e organizacional em profundidade. Ela influencia minha abordagem em todos os aspectos, desde desenvolvimento de liderança até transformação cultural e eficácia organizacional, sempre alinhada à criação de valor para o negócio. Essa formação é a razão pela qual foco em normalizar experiências, ajudando líderes e equipes a perceberem que aquilo que enfrentam não é apenas administrável, mas esperado. Trata-se de criar ambientes seguros e sólidos onde as pessoas possam atravessar mudanças juntas, com clareza e confiança.
Sua principal responsabilidade hoje é ajudar a Zendesk a gerar valor por meio da melhoria da eficácia organizacional e da liderança. Quais iniciativas concretas já estão em andamento para atingir esse objetivo?
Na Zendesk, temos sido intencionais em construir capacidades de liderança em tempo real, diretamente no fluxo de trabalho. Lançamos programas como o Zendesk Acceleration Program (ZAP) e o Manager Acceleration Program (MAP), ambos projetados para desenvolver líderes por meio de aprendizado prático e alinhado ao negócio. Também estamos incorporando clareza e simplicidade nos processos de decisão, ajudando líderes a agir de forma rápida e confiante, sem complexidade desnecessária.
Para sustentar nossa abordagem, introduzimos um framework de competências de liderança com uma série de master classes — ou, como chamamos, growth circles — sobre temas de alto impacto, como liderar em meio à mudança e construir equipes de alta performance. Nossas comunidades de funcionários também são uma força importante na formação da cultura. Por exemplo, o Women at Zendesk (WAZ) realizou recentemente uma cúpula global focada em crescimento de carreira e aceleração. Esses esforços refletem nosso compromisso de equipar líderes em todos os níveis com a mentalidade e as ferramentas necessárias para prosperar em um ambiente em rápida evolução.
Como você equilibra o desafio de manter uma cultura global unificada e, ao mesmo tempo, respeitar as características de equipes distribuídas pelo mundo? Como faz para localizar sua liderança, adaptando às questões regionais?
Na Zendesk, ancoramos tudo em uma base cultural compartilhada — nossos valores, expectativas de liderança e compromisso com a colaboração. Isso cria consistência em todos os mercados. Ao mesmo tempo, reconhecemos que a cultura é vivida localmente, então capacitamos as equipes a adaptarem rituais, formas de trabalhar e estilos de comunicação ao que ressoa em suas regiões. Pessoalmente, começo ouvindo: entendendo o contexto, a história e as nuances. Depois, calibro minha abordagem de liderança para que ela seja autêntica e eficaz em cada geografia, sem perder a conexão com o todo maior.
Os líderes precisam estar preparados para um futuro híbrido – em que habilidades humanas e insights impulsionados por IA coexistem.
Quais são os maiores desafios que o RH enfrenta hoje em empresas globais de tecnologia?
Um dos maiores desafios é escalar a cultura e a coesão no ritmo do crescimento e da mudança. À medida que as organizações se expandem globalmente e mudam rapidamente, manter um senso compartilhado de identidade e propósito se torna mais complexo. Ao mesmo tempo, os líderes precisam estar preparados para um futuro híbrido – em que habilidades humanas e insights impulsionados por IA coexistem. Isso exige uma abordagem fundamentalmente nova para o desenvolvimento de liderança. E, por fim, o RH está constantemente equilibrando duas forças importantes: atender às expectativas dos funcionários por flexibilidade e personalização, enquanto garante que a organização permaneça alinhada, de alta performance e resiliente.
A chave é a integração. Talentos e cultura não podem operar à margem da estratégia de negócios; eles precisam habilitá-la. Incorporamos desenvolvimento de liderança, crescimento de carreira e construção de capacidades diretamente na execução das prioridades estratégicas. Por exemplo, quando entramos em um novo mercado ou lançamos um produto, investimos simultaneamente na liderança e nas equipes necessárias para entregá-lo com eficácia. Medimos o impacto por meio de engajamento, retenção e resultados de performance, todos vinculados a marcos estratégicos. Assim, não estamos apenas desenvolvendo pessoas por desenvolver, mas mostrando uma ligação direta entre o fortalecimento dos talentos e a conquista de resultados de negócios.
Que competências e habilidades você considera indispensáveis para os profissionais de RH no cenário atual e no futuro próximo? E o que a empresa faz para ajudar os colaboradores a se desenvolverem?
Os profissionais de RH hoje não podem se prender a práticas antigas. Precisam ser afiados em dados, culturalmente preparados para liderar equipes globais e diversas, e prontos para assumir ambientes híbridos em que humanos e IA atuam como co-pilotos. Programas de liderança, projetos práticos e desafios reais já fazem parte do dia a dia. Além disso, incentivamos fortemente o aprendizado contínuo, aproveitando ferramentas de IA e redes de pares próximas, para que nosso time não apenas acompanhe as mudanças, mas se mantenha à frente. Nesse jogo, se você não evoluir rápido, já está ficando para trás.
A IA oferece uma oportunidade poderosa de remodelar a experiência do funcionário ao eliminar fricções do dia a dia. Assim como os clientes esperam um serviço rápido e personalizado, os funcionários também – e a IA entrega isso em escala. Ao automatizar tarefas rotineiras e fornecer acesso imediato às informações certas, a IA libera o RH e as equipes de serviço para focarem em trabalhos de maior valor humano, como coaching, bem-estar e saúde organizacional. Ela também possibilita suporte personalizado, aprendendo com as necessidades dos funcionários e oferecendo recomendações mais inteligentes e proativas. Em última análise, a IA ajuda a Zendesk a tratar os funcionários com o mesmo cuidado e rapidez que oferecemos aos nossos clientes, resultando em equipes mais engajadas, produtivas e satisfeitas.
A IA está remodelando a aquisição de talentos ao tornar o processo mais eficiente, inclusivo e orientado por dados. Desde a prospecção até a triagem, a IA ajuda a identificar candidatos mais adequados com rapidez, reduzir vieses ao focar em habilidades e experiências, e personalizar a comunicação em escala. Na Zendesk, já utilizamos IA para agilizar o matching de candidatos, aumentar a produtividade dos recrutadores e fornecer insights mais ricos que orientam melhores decisões de contratação. Isso permite que nossas equipes de talentos gastem menos tempo em tarefas repetitivas e mais tempo construindo relacionamentos significativos com candidatos, garantindo que a experiência seja tanto humana quanto tecnológica.
Nos próximos anos, os papéis de RH vão mudar drasticamente. O trabalho rotineiro e transacional será automatizado, liberando os profissionais de RH para focar no que realmente importa: criatividade, empatia e pensamento estratégico. Os líderes irão desenhar e orquestrar como pessoas e tecnologia trabalham juntas para moldar estratégias de talentos, construir cultura e gerar resultados. O RH terá um papel maior em ajudar os funcionários a desenvolverem as habilidades necessárias para prosperar neste mundo híbrido, garantindo que a tecnologia aprimore a experiência humana no trabalho, e não a substitua.
Como as empresas podem preparar seus departamentos de Recursos Humanos para aproveitar plenamente o potencial da IA? O que vocês já fazem internamente?
O primeiro passo é construir alfabetização em IA, ajudando equipes de RH e líderes a entender tanto as possibilidades quanto as limitações da tecnologia. A partir daí, as empresas devem experimentar com casos de uso seguros e de alto impacto, que reduzam o trabalho manual e melhorem a experiência do funcionário. Na Zendesk, por exemplo, já automatizamos elementos de recuperação de conhecimento e matching de candidatos, o que libera nossas equipes para focar em trabalhos mais estratégicos e centrados no ser humano. Também incentivamos o aprendizado contínuo e a experimentação, para que nossa função de RH evolua em paralelo à tecnologia.
O time de RH da Zendesk utiliza as soluções desenvolvidas pela própria empresa. Pode compartilhar exemplos práticos de como essas ferramentas são usadas internamente?
Recentemente, tomamos a decisão estratégica de unificar nossas equipes de ITSM e People Operations sob uma única liderança. Essa mudança nos dá uma oportunidade única de demonstrar como nosso produto de Employee Service (ES) apoia todo o ciclo de vida do funcionário, desde a contratação e engajamento de talentos até sua gestão e reconhecimento. Essa abordagem integrada está gerando melhorias significativas em como atraímos, retemos e alocamos nossos talentos.
Que benefícios concretos vocês já observaram, seja em produtividade, engajamento ou experiência do colaborador?
Do ponto de vista da experiência do funcionário, os indivíduos se beneficiam de suporte em tempo real por meio de nossos recursos de busca avançada, conteúdos atualizados e mensagens instantâneas. No lado da produtividade, todas as nossas equipes de suporte colaboram em uma única plataforma e utilizam o Zendesk Co-Pilot, que agilizou a entrega de serviços e tornou a excelência algo natural. Utilizamos dados para identificar oportunidades de otimização, necessidades de treinamento e estabelecer KPIs claros pelos quais as equipes são responsáveis. Também observamos maior uso de autoatendimento com nosso produto Guide, que capacita os funcionários a encontrarem respostas por conta própria.
Essa vivência interna influencia no aprimoramento das soluções oferecidas ao mercado?
Sem dúvida. Usar nossas próprias soluções internamente nos dá insights reais que moldam diretamente e melhoram os produtos que oferecemos aos clientes. É um ciclo de feedback poderoso que nos ajuda a inovar mais rápido e a construir ferramentas que realmente atendam às necessidades dos usuários.
Quais são as principais prioridades estratégicas que você pretende impulsionar na Zendesk nos próximos anos?
Nossas prioridades estão centradas em escalar a cultura globalmente, incorporar capacidade de liderança por meio de programas internos e aproveitar plenamente a IA para elevar tanto a experiência do cliente quanto a do funcionário. Continuaremos investindo no desenvolvimento de talentos, inclusão e formas de trabalhar que equilibrem agilidade com pertencimento, garantindo que a Zendesk continue sendo um lugar onde pessoas e inovação prosperam juntas.
Se não personalizarmos a experiência do funcionário com base em insights reais, estaremos perdendo uma enorme oportunidade de manter nossos melhores talentos engajados e reconhecidos.
Na sua opinião, quais tendências de gestão de pessoas e tecnologia vão moldar o futuro do trabalho?
Para mim, o futuro do trabalho não é sobre humanos versus máquinas. É sobre como trabalhamos juntos, usando a tecnologia para apoiar o que fazemos de melhor: conectar, inovar e tomar decisões inteligentes. Cultura é o que vai diferenciar as empresas – e isso é certamente verdade para a Zendesk. Se nossa cultura não evoluir, ficaremos para trás. Não acredito que desenvolvimento de liderança possa ser algo para marcar uma vez por ano. Precisa estar entrelaçado ao fluxo diário de trabalho, de forma real, relevante e acontecendo naquele instante. Líderes precisam ser ativados como portadores da cultura, líderes de negócios e gestores de pessoas. E se não personalizarmos a experiência do funcionário com base em insights reais, estaremos perdendo uma enorme oportunidade de manter nossos melhores talentos engajados e reconhecidos. Os vencedores serão aqueles que construírem ambientes de trabalho onde as equipes se sintam valorizadas, compreendidas e energizadas para entregar seu melhor.
Leia também: Na B3, tecnologia e pessoas andam de mãos dadas em direção à IA