Imagine a seguinte pergunta provocativa: se sua empresa parasse de contratar cargos de entrada hoje, isso a tornaria mais ágil ou mais vulnerável?

Desde os anos 2000, contratar jovens aprendizes é uma obrigação que faz parte do dia a dia de muitas empresas no Brasil, graças às exigências da Lei do Aprendiz (nº 10.097/2000). Na farmacêutica Apsen, porém, essa obrigação ganhou contornos mais amplos: virou uma oportunidade de impacto social, formação profissional e inovação dentro da companhia.
Criado em 2021, em meio à pandemia, o programa Brilhe na Apsen: Primeiro Emprego foi desenhado para ser uma porta de entrada qualificada para o mercado de trabalho. “O jovem aprendiz está em um momento de vida diferente, ainda construindo sua visão de futuro. Nosso papel é oferecer estrutura, apoio e aprendizado para que ele possa, de fato, escolher um caminho”, afirma Claudio Reis, gerente de Desenvolvimento Humano e Organizacional da empresa.
Desde sua criação, o projeto já auxiliou na formação de mais de 190 pessoas, além de trazer resultados para a companhia, com inovações que vão das linhas de produção à segurança do trabalho. Além disso, o Brilhe na Apsen: Primeiro Emprego também tem um foco em impacto social: na edição atual, com 52 alunos, 32 deles são provenientes de ONGs, escolas públicas ou em situação de vulnerabilidade social. “Desde o primeiro dia, nós buscamos deixar claro que os jovens são colaboradores da empresa que estão aqui para errar e aprender”, conta o executivo.
Na entrevista a seguir, Reis fala mais sobre como o programa surgiu e porque ele faz a diferença no dia a dia da Apsen, que emprega 2,1 mil pessoas em suas operações.
Um programa como esses ajuda a lembrar os colaboradores mais antigos que o nosso propósito é de cuidar de vidas, é sermos humanos e não pragmáticos. É algo que mostra que a cultura é viva – e não fica só na parede.
Somos uma indústria farmacêutica 100% nacional e estamos há 56 anos no mercado. É o tipo de indústria que se chama de indústria de donos: não temos investidores externos ou capital aberto. Hoje, na presidência, temos a segunda geração da família, com o Renato Spallicci, filho dos fundadores, e a Renata Spallicci, que é neta dos fundadores. Nossa produção é focada em medicamentos que tragam inovação e acessibilidade, sendo inspirados pela saúde para cuidar das pessoas. Isso gera uma cultura humanizada, onde as pessoas são o centro de tudo, e essa é a conexão com o nosso programa de jovens aprendizes. Hoje, empregamos 2,1 mil pessoas – e para nós, são 2,1 mil experiências e vidas. E uma das coisas que a Renata disse quando trouxe a ideia do programa é que a empregabilidade é uma das principais ferramentas que temos para, como empresa, ajudar a transformar a sociedade.
Nós temos jovens aprendizes aqui na Apsen desde o começo dos anos 2000, quando surgiu a lei que regula esse tipo de trabalho. Sempre tivemos o cuidado, mantendo o número necessário, mas não era um programa específico. Durante a pandemia, o que aconteceu foi que muitas pessoas passaram a nos procurar nas redes sociais com o desejo de trabalhar na Apsen. E aí a Renata trouxe essa necessidade do cuidado e da empregabilidade saudável, buscando entender como poderíamos pegar as pessoas em torno da Apsen e dar empregabilidade para os jovens, tendo ainda um foco em vulnerabilidade social. Decidimos unir isso com o que já tínhamos com os jovens aprendizes, criando um programa, que é o Brilhe na Apsen: Primeiro Emprego. Brilhe na Apsen é uma marca que já usamos para diversos programas internamente. Em 2021, criamos o programa e em 2022 executamos a primeira turma, com 65 jovens. Eles entram juntos, participam de um processo de aprendizado. De segunda a quinta-feira, eles trabalham com a gente, e na sexta-feira tem um curso. Nosso grande objetivo aqui é ajudá-los a estarem preparados para o mercado de trabalho – seja por uma candidatura interna aqui ou por processos externos. Hoje, estamos começando o programa com a terceira turma.
O jovem aprendiz chega para a empresa numa condição de vida diferente, numa perspectiva diferente. O estagiário já tem um caminho de carreira definido, ele já está cursando uma faculdade e buscando uma projeção dentro da organização. É outro sentimento. Já o jovem aprendiz é diferente, às vezes ele não tem nem noção da carreira
que quer seguir, é natural até ajudarmos em transições da carreira. E isso traz um nível de motivação e pertencimento para os colaboradores e para os gestores que é diferente, por conta da percepção de ajudar a mudar a vida de alguém. Além disso, o jovem aprendiz nos provoca muito na postura. O estagiário costuma chegar com uma configuração corporativa, ele sabe um pouco como se portar. O jovem aprendiz não, ele questiona o dress code ou certas posturas. Eles perguntam coisas no onboarding que parecem óbvias, mas que não são – e isso ajuda a transformar a empresa. Até por isso, criamos também o que o mercado chama de “best friend”, mas aqui são as nossas Estrelas Guia: um profissional que vira o melhor amigo do jovem aprendiz e ajuda a tirar essas dúvidas.
Pela lei, é possível determinar que os jovens fiquem quatro ou seis horas por dia com a gente, com duração de 24 ou 18 meses, respectivamente. Iniciamos o programa com seis horas de jornada, e vimos que estávamos atrapalhando a jornada de estudo deles. Para entrar, o jovem aprendiz precisa estar cursando o Ensino Médio, e fica aqui com a gente no contraturno – ou seja, estuda de manhã e vem para cá à tarde ou vice-versa. Na Apsen, eles ficam de segunda a quinta-feira; na sexta, tem o curso complementar, em uma instituição de ensino parceira. Nós temos vários tipos de cursos: desde aspectos comportamentais, com comunicação corporativa, inteligência emocional ou gestão de tempo, até um aspecto mais técnico do universo farmacêutico, entendendo toda a trilha de um produto, da fabricação até a distribuição. É um conteúdo que muitos profissionais da indústria não sabem. Alguns dos cursos também são dados de maneira digital. Outra coisa que temos são rodas de conversas com os profissionais da Apsen. No final do curso, temos ainda uma espécie de TCC, no qual eles são desafiados a trazer melhorias para a empresa, deixando um legado para a companhia.
Um dos meus preferidos é o Colarinho Inclusivo. Nós temos colaboradores surdos, que fazem parte da produção e do administrativo. Na fábrica, todo sinal de risco vem através de um aviso sonoro. Para garantir a segurança desses colaboradores, os alunos propuseram que os colaboradores surdos tivessem um colarinho de cor diferente no seu avental, para que quem está ao redor saiba que ele não pode ouvir o sinal e o traga para um lugar seguro. Outro projeto é o Ciclo do Bem, que é um programa social. Nos banheiros da empresa, tem uma caixinha com os dizeres: “se precisar, pegue; se puder, deixe”. Ali, são deixados absorventes, para ajudar as mulheres a não passar um aperto caso aconteça. Outros resultados são mais ligados à produção: um grupo analisou uma máquina de produção na fase final da fabricação dos medicamentos, no qual as caixas estavam frequentemente rasgando por conta de uma peça desgastada. A peça foi trocada e o problema não foi resolvido. Aí os alunos criaram uma capa vinílica para que o medicamento deslize na esteira, evitando que as caixas rasguem. Para terminar, vale citar o fato de que muitas máquinas tem manuais gigantescos, e os alunos propuseram colocar QR codes nas máquinas para que cada profissional de manutenção possa acessar o manual digitalmente – evitando tanto o gasto com impressão, como também facilitando para que o técnico acesse sempre o manual mais atualizado.
Desde o primeiro dia, nós buscamos deixar claro que os jovens são colaboradores da empresa que estão aqui para errar e aprender. Não existe um nível de cobrança no mesmo nível de quem está no estágio ou em início de carreira, como assistente ou analista. Com isso em mente, vou dar o exemplo dos jovens que estão conosco no RH – um em desenvolvimento, outro em recrutamento. A aprendiz que está em recrutamento nos ajuda a planilhar todos os processos seletivos. Como empresa, temos um cuidado de dar uma resposta a todas as pessoas que entram em contato com a gente – e essa aprendiz ajuda a planilhar esses contatos. Mas é uma planilha simples? Não, porque para fazê-la, é preciso entender como funciona o processo de recrutamento, e isso faz com que a gente ensine esse processo desde a base. Já a jovem de desenvolvimento já está conosco há mais tempo, ajuda até na criação de apresentações para treinamentos. Para a grande maioria, é o primeiro emprego deles. Para não constranger ninguém, vamos colocando as funções aos poucos. Quem está em engenharia ajuda em um controle de orçamento, quem está em marketing entra em rodas de ideias e participa de mercados simples. Nossa preocupação é que eles sejam inseridos de fato, em uma tarefa simples mas efetiva – e que leve ao conhecimento do que aquela área significa para a empresa.
O primeiro ponto é que todos os nossos colaboradores estão assistidos por um programa de apoio financeiro, psicológico e jurídico – e os jovens aprendizes estão resguardados por isso. Da mesma forma, temos a nossa saúde ocupacional assistida pela clínica Einstein, ligada ao Hospital Albert Einstein, que ajuda muito os jovens com questões de saúde mental ou algum desvio que possa acontecer. Além disso, nós treinamos muito os nossos gestores e colaboradores para lidar com esse público – e prestar atenção mesmo nos comportamentos, se dispondo a ajudar. Nesses treinamentos, muitas vezes temos o apoio da Rede Pavim, um grupo de jovens da geração Z que ajuda a ensinar velhos gestores como eu a lidar de forma mais saudável com os jovens – e também ajudar os jovens a lidar com quem tem mais experiência. Isso também ajuda no desafio de tirar uma barreira em um momento novo da vida deles, cheio de expectativas e realidades. Além disso, no dia a dia nós temos uma atitude muito pró-ativa com o programa, fazendo follow-ups com os gestores e tentando sempre saber com os jovens estão.
A Apsen vive de inovação – e ela não fica só no produto, mas na forma de lidar com as pessoas.
Vou começar falando do aspecto não-financeiro, que acaba ajudando a justificar o financeiro. Nós acabamos de encerrar uma turma. Dos 65 jovens que estavam nela, só três saíram dele – dois pediram para ser desligados e outro não deu justificativas. Dá menos de 5%. Alguns não chegaram a cumprir os 24 meses, mas passaram em processos – cumprindo o nosso papel de trazer empregabilidade. E isso é muito forte para nós, porque a nossa empregabilidade, para muitos desses jovens, concorre com outros tipos de empregabilidade não saudáveis. Saber que o jovem aderiu ao programa e quis ficar, chegando ao final, cumprindo os 75% de presença nas aulas, é um ótimo resultado. Para nós, socialmente, é um bom retorno. Além disso, posso trazer os resultados de que a diversidade traz inovação e gera novos processos, como comentei no caso dos TCCs. Para nós, a diversidade gera felicidade corporativa e segurança psicológica, que por sua vez permitem a disrupção que podem gerar novos processos e ideias. A Apsen vive de inovação – e ela não fica só no produto, mas na forma de lidar com as pessoas. É um custo que mais que se justifica. Mas o principal para nós é a questão do propósito da empresa. Um programa como esses ajuda a lembrar os colaboradores mais antigos que o nosso propósito é de cuidar de vidas, é sermos humanos e não pragmáticos. É algo que mostra que a cultura é viva – e não fica só na parede.
Para começo de conversa, um programa como esses precisa estar conectado diretamente com as causas da empresa. O jovem é alguém a ser desenvolvido, então a expectativa que pode existir com os resultados é uma consequência – mas não uma obrigação direta. A primeira coisa que eu faria como RH é formatar a mente para entender que aquele jovem colaborador vai funcionar de uma maneira diferente dentro da empresa. Tem que ser parte da cultura. A empresa precisa se perguntar se ela vai saber encarar o jovem aprendiz dessa forma. Outro segredo é formar turmas: nós já tínhamos jovens aprendizes, mas de maneira pontual – e isso tinha um impacto diferente. Hoje, com as turmas, conseguimos ter um trabalho fluido, bacana mesmo, com a criação de um grupo. É algo que permite a criação de histórias de vivência, de pertencimento. A terceira coisa que eu falaria é investir nesse processo de educação complementar, levando os ativos de capital humano dentro da empresa para participar. Se temos um treinamento de comportamento, quem dá as aulas são os profissionais do RH; se tem um treinamento de comunicação, o professor vem do time de marketing. É algo que enriquece muito a experiência deles, mas também dos colaboradores da empresa, e gera um engajamento muito bacana.
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