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‘O analfabeto do século XXI é quem não sabe desaprender para aprender’, diz Benito Berretta, da Hyper Island

Diretor nas Américas da consultoria global de aprendizagem dá dicas para líderes, RHs e colaboradores engajarem numa jornada de educação continuada; para executivo, sair da bolha e ter humildade são posturas fundamentais para ‘cérebro seguir ativo’

Bruno Capelas
23 de julho de 2024
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Foi-se o tempo em que as pessoas saíam da faculdade com um diploma na mão e todo o conhecimento necessário para suas carreiras na cabeça. Mais do que nunca, a velocidade de transformação do mundo (e não só da tecnologia) impõe inúmeros desafios a quem está no mercado de trabalho, precisando aprender de maneira contínua. Mas abrir a cabeça para novas ideias pode ser um desafio na vida adulta – e não é à toa. 

“Para aprender na vida adulta, é preciso primeiro desaprender para depois reaprender. É algo que dá trabalho – e curiosamente, é doloroso, porque esse esforço está numa área do cérebro similar à de processar a dor”, explica Benito Berretta, diretor geral nas Américas da Hyper Island, consultoria global de aprendizado fundada na Suécia em 1999. Aos 60 anos, o uruguaio comanda a organização no continente, com sua abordagem baseada nas experiências práticas que já ajudou mais de 2 mil organizações em todo o mundo. 

Na entrevista a seguir, Berretta fala não só sobre os quesitos que toda pessoa deve ter para aprender na vida adulta – curiosidade, intencionalidade e meta aprendizagem –, como também explica que o medo não é a melhor arma para incentivar equipes e liderados nesse caminho. Ele também fala sobre os efeitos que a necessidade de aprendizado contínuo pode causar na cabeça das pessoas e dá dicas de como utilizá-la para o bem. 

“Quem aprende mais costuma ter um cérebro mais longevo, o corpo vive mais anos e tem menos doenças, porque corpo e mente estão conectados”, diz o executivo. Temas como inteligência artificial, burnout e ‘bolhas de informação’ também aparecem no papo, cujos principais trechos podem ser lidos a seguir. 

Muita gente que está no mercado de trabalho hoje cresceu com a ideia que bastava fazer faculdade, talvez saber um idioma e pronto, você estaria pronto para uma carreira inteira. Não é bem assim hoje, mas muita gente tem dificuldades para aprender. Por quê?

Vou dividir essa resposta em um aspecto mais filosófico e outro mais concreto. Para isso, precisamos de um contexto rápido: quando se é criança, o cérebro aprende idiomas, matemática, tudo de maneira fácil. Ele tem o que se chama de neuroplasticidade, que é uma capacidade inata de aprender padrões, novas linguagens e habilidades. Com o tempo, essa habilidade vai se tornando mais difícil de usar. Não é porque o cérebro não consegue aprender depois de adulto: segundo Robert Kegan, que estudou os neurotransmissores, a gente aprende até o último dia de vida. A questão é que quando somos jovens, o cérebro é uma tabula rasa, e depois ele vai criando caminhos. Para aprender na vida adulta, é preciso primeiro desaprender para depois reaprender. É algo que dá trabalho – e, curiosamente, é doloroso, porque esse esforço está numa área do cérebro similar à de processar a dor. Claro, há um percentual da população, estimado em 13% das pessoas, que são aprendizes naturais. Elas tem uma curiosidade inata. Mas de maneira geral, as pessoas precisam de três coisas para aprender algo na vida adulta. Elas precisam estar curiosas para aprender algo. Elas precisam ter intencionalidade na aprendizagem. E precisam aprender a aprender, entendendo a meta aprendizagem – isto é, como elas aprendem. Odeio dar as más notícias, mas a gente vai ter que continuar aprendendo, porque quem aprende a vida toda tem uma vida mais plena e mais feliz. O analfabeto do século XXI é quem não sabe desaprender para aprender. 

Odeio dar as más notícias, mas a gente vai ter que continuar aprendendo, porque quem aprende a vida toda tem uma vida mais plena e mais feliz.

Motivação é um tema importante na aprendizagem, então. Mas por que é tão difícil se motivar? 

Para que alguém possa aprender, tem que ter um motivo, que pode ser intrínseco ou extrínseco. O problema é que hoje uma boa parte da motivação da sociedade é a dopamina. E tem três atividades que geram muita dopamina: se queixar, reclamar de algo e culpar outra pessoa. São coisas que fazem a gente se sentir bem, gerando essa Kim Kardashian dos neurotransmissores. E o problema é que essas três atividades fazem a gente sentir que tem razão, que é o grande inimigo da aprendizagem. Querer aprender é querer sair da ignorância, mas quem tem razão não pode aprender nada. Eu só aprendo quando não sei. Acredito numa nova ideia de sabedoria: não mais naquela imagem de Sidarta, que sábio é quem fica na beira do caminho olhando as pessoas. O exercício intelectual de aprender é importante para a minha felicidade, porque isso me converte numa pessoa melhor.  Se a intencionalidade do que você aprende está vinculada ao que te faz crescer, é fácil aprender – e dá até para colocar a dopamina no processo! 

Como ser intencional, então? 

O primeiro passo é conectar o aprendizado com algum objetivo. Nem todo mundo tem o mesmo. Mas querer ser um bom ser humano, ter uma nova habilidade, ganhar dinheiro, ou mesmo ser mais compassivo ou compreensivo, são boas razões. Quem aprende mais costuma ter um cérebro mais longevo, o corpo vive mais anos e tem menos doenças, porque corpo e mente estão conectados. Outro ponto é que a intencionalidade requer um pré-requisito, com o propósito. Quanto mais você adotar a intencionalidade, mais chance tem de conectar o que está aprendendo com o que quer da vida – e isso se torna cíclico quando você repete a jornada de aprendizado. E por fim, o meta conhecimento é importante. Tem uma área do nosso cérebro que nos ajuda a criar um mapa nosso, como se olhássemos nós mesmos “de fora”. É útil para aprender como funciona um processo de aprendizagem, o que melhora a produtividade e reduz as frustrações nesse processo. Mas é difícil: as pessoas só querem colocar no LinkedIn que conquistaram um título, não que elas tiveram quatro semanas de estudo. É colocar a sabedoria no processo, não na chegada. 

Quem ocupa posições no RH e na liderança tem um desafio maior do que só aprender: essas pessoas também precisam convencer seus times a aprender – muitas vezes por uma necessidade da empresa. Como motivar o próximo? 

Quando eu comecei minha carreira, o pessoal tinha uma sigla em inglês para motivação. Era o KITA – ou “kick in the ass” (chute na bunda, em português literal). É o “se você não estuda, você vai ser burro”. Ou aquela frase clássica: “se você quer mandar, tem que estudar”. Mas é um nível de liderança bastante triste aquele que usa o medo. O medo exerce duas forças no corpo humano. Imagine que um cachorro vai te atacar. O que acontece? Primeiro, você se torna capaz de correr 100 metros em pouco segundos, como um Usain Bolt. Ao mesmo tempo, você desliga todas as outras funções porque está focado em sobreviver, não em aprender. Você perde a empatia do que acontece ao seu redor. Você salva, mas fazer isso no longo prazo é péssimo, porque você perde o contexto. 

É uma estratégia muito usada no antigo sistema de “comando e controle”, mas não costuma funcionar… 

O medo pode funcionar para que alguém atinja uma meta – como a pressão de ser mandado embora. Mas no momento em que o medo é retirado da equação, a pessoa esquece tudo o que aprendeu. Já quando a aprendizagem está conectada ao desenvolvimento, a pessoa não esquece. É um clássico: se uma empresa oferece um curso obrigatório, as pessoas não aprendem nada. Mas se o treinamento é livre, quem vai aprende. A sociedade do chicote não vai longe. Ela dá menos trabalho, mas dá menos resultado. Um bom exemplo é a metodologia ágil: ela gera muito aprendizado em ciclos curtos, mas ela requer um planejamento, requer ajustes semanais. É essa a diferença. Dito isso, tem três coisas que os líderes podem fazer. Os times que mais aprendem são aqueles em que os líderes se mostram vulneráveis e facilitadores. É raro: normalmente o líder é ou quer ser o herói. Às vezes, os bons líderes cometem erros de propósito nas apresentações para ver se alguém capta o erro e mostra que aprendeu. Ou é o líder que fica calado e deixa o time conduzir a apresentação – mas está lá para solucionar qualquer problema. E a gente precisa lembrar que o líder não é um super-humano, pelo contrário. E os líderes tem que lembrar que existe um ganho enorme inspirando os demais: é saber que o time está pronto para ajudar. Se o teu time é bom, das duas uma: ou você é um bom líder ou você tem muita sorte. Qualquer um dos dois é um bom cenário! 

A gente precisa lembrar que o líder não é um super-humano, pelo contrário.

Nos últimos anos, muita gente correu atrás de cursos e workshops sobre temas “da moda”, como foi o caso do metaverso. Há um clima de “tem que sempre estar aprendendo”, que pode levar muitas pessoas a uma espécie de burnout de aprendizagem. Como evitar isso? 

Tem muita gente que não busca aprender de acordo com o propósito, mas com uma moda. Antes de escolher estudar algo, vale a pena se perguntar se é de fato uma moda. Para que alguém precisa saber do metaverso? Será que muitas aplicações de AI não são apenas planilhas de Excel melhoradas? Claro, é algo que é preciso dedicar tempo, é sempre importante saber um pouco sobre o que está acontecendo no mundo, mas é importante refletir antes de focar. Agora, o que causa o burnout é algo diferente, embora esteja relacionado. Um burnout nasce da nossa incapacidade de falar não para o que não é importante e da incapacidade de falar sim para o que é importante. No meu caso, é falar sim para minha família, é ligar para minha mãe todo dia e ler Dom Quixote. Quando você se conecta com o que importa, é mais fácil de aprender. Já quem está com burnout é a pessoa que não consegue falar não – mesmo que esse não seja muitas vezes um não positivo. Quer um exemplo? Se o chefe pedir pra você trabalhar no final de semana, você responde que não consegue porque precisa estar com a família e diz que vai buscar soluções. Pronto, você mostra a importância de não trabalhar e busca soluções junto com ele. 

Ao entender que o aprendizado é contínuo, muitas empresas podem correr o risco de estar sempre “aprendendo”, “pesquisando”, mas nunca colocando em prática. Como assegurar que a aprendizagem se aplique no dia a dia? 

É preciso fazer com que as pessoas aprendam a praticar. A abordagem da Hyper Island está baseada na aprendizagem experiencial, algo que se baseia numa ideia de Franz Liszt, músico húngaro do século XIX. Ele vivia excursionando pela Europa, e em toda cidade que ele chegava, ele reservava uma noite para reunir os pianistas locais. Ele fazia as pessoas tocarem o piano e também tocava para elas, e pedia feedback sobre a sua técnica. Isso é o que hoje se chama masterclass: aprender fazendo e aprender com os outros. Nossos programas de trabalho tem sempre uma parte inspiracional, uma prática pessoal e depois uma prática grupal. Nesse funil, tem uma questão importante que é a aprendizagem coletiva, que é mais poderosa do que a aprendizagem individual. Por que? Porque é assim que a gente aprende desde pequeno. Um menino aprende a falar por observação: dos 0 aos 2 anos, ele não tem linguagem, mas tem observação, e nosso cérebro é incrivelmente plástico nessa ferramenta. O aprendizado é comunitário. A melhor maneira de uma equipe aprender algo é trabalhar como as formigas: elas primeiro trabalham individualmente, mas depois se unem em grupos. Se você só aprende individualmente, não consegue maximizar. Quem só trabalha coletivamente, porém, pode acabar ficando medíocre. Essa combinação maximiza a escala e a mudança. Além disso, temos outras ferramentas importantes, como um diário em que você registra o seu aprendizado, para entender como você aprende. Existe também um ponto muito importante para o aprendizado, que é ter a humildade de que a gente não sabe nada. Já mostrou o Efeito Dunning-Kruger que a pessoa mais ignorante é aquela que sabe um pouquinho, mas acha que sabe muito. 

Inteligência artificial é o tema da vez. Uma das pautas que têm chamado a atenção é o surgimento do cargo de “engenheiro de prompt”. Há quem possa dizer que é apenas uma pessoa que sabe fazer boas perguntas – algo que a humanidade sabe que é importante pelo menos desde Sócrates e seu método de questionamento. Como você vê essa questão? 

Saber fazer perguntas é muito importante. Isaac Rabi, prêmio Nobel de Física, tem uma história muito interessante sobre isso: ele era judeu e emigrou da Europa pros EUA no começo do século XX. Ele era pobre e morava no Brooklyn na infância. Quando voltava da escola, a mãe dele sempre perguntava se ele tinha feito uma boa pergunta – e não se ele tinha aprendido. A razão pela qual ele se converteu num cientista, diz ele, é porque sua mãe lhe mandava fazer perguntas. E sim, fazer perguntas é o tema central da inteligência artificial hoje. Mas fazer perguntas, qualquer um faz. Fazer uma boa pergunta, porém, requer alguns passos. Para fazer uma boa pergunta, é importante ter clareza dos seus vieses cognitivos. Segundo, isso depende de um modelo mental – e entender que, na nossa realidade, duas coisas podem estar certas mesmo sendo contraditórias. É como o exemplo que eu dei entre o pensamento individual e o coletivo. A melhor saída são os dois ao mesmo tempo, mas eles não podem acontecer necessariamente ao mesmo tempo. Fazer uma boa pergunta depende da capacidade de compreender essa polaridade: se você fizer uma pergunta maniqueísta a uma IA, ela vai responder A ou B. Agora, se fizer uma pergunta complexa, ela vai considerar isso. Niels Bohr já dizia: contrário de uma verdade simples é uma mentira; o contrário de uma verdade complexa é outra verdade complexa. É algo quântico, que o ChatGPT ainda não está capacitado para lidar. Ele roda em cima de padrões, algo que a gente faz há muito tempo – na Econometria, por exemplo. 

Para fechar, qual dica o senhor dá para quem quiser continuar aprendendo pela vida toda? 

Uma regra muito importante é sair da bolha. Se você vive numa bolha de informação, você acha que vai sair aprendendo, mas talvez só repita o que outras pessoas falaram antes. Quando eu vivia no Uruguai, eu morei na favela, e isso me ensinou a sair do meu lugar. Não precisa ir longe: muita gente acha que pra aprender precisa ir pra França, mas tem muito pra gente descobrir no interior do Brasil. É bom ter a cultura europeia, mas tem tanta coisa incrível e diversa no Brasil, que ajuda a gente questionar nossas certezas. Olha todos os elementos que você acredita serem corretos e converse com quem nunca olhou pra eles. Quer aprender a ser jovem? Vai falar com os velhos. Quer descobrir como lidar com plano de saúde? Vai falar com alguém que não tem. Não é algo que você precisa fazer toda hora, mas é importante. Acho muito tedioso passar o ano com as mesmas pessoas, falando das mesmas coisas. Fico brutalmente entediado – e por isso me considero um aprendiz eterno.

Bruno Capelas é jornalista. Foi repórter e editor de tecnologia do Estadão e líder de comunicação da firma de venture capital Canary. Também escreveu o livro 'Raios e Trovões – A História do Fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum'.