Neste artigo, a professora da FDC Elisângela Furtado propõe uma discussão sobre liderança e dá dicas de competências e técnicas que podem ser desenvolvidas para liderar a si mesmo

Passar uma carreira toda dentro da mesma empresa é um feito para poucos profissionais hoje em dia. Mas a trajetória de Valéria Balasteguim, há quase três décadas na Electrolux, está longe de passar da monotonia: formada em Pedagogia, a VP de RH para a América Latina chegou à companhia quando o local ainda respondia pelo nome de Refripar, dentro do Grupo Prosdócimo, vendido nos anos 1990 para a multinacional sueca. De lá para cá, foram diferentes funções nos vários subsistemas do RH, além de uma experiência de seis anos na matriz europeia.
“No escritório da Suécia, tinha pessoas de 50 nacionalidades diferentes. Quem é brasileiro está acostumado a trabalhar só com brasileiros, então lidar com tantas culturas ao mesmo tempo foi muito bacana. Foi um super aprendizado”, conta ela sobre o período na Suécia, quando chegou a ser a VP de RH para a área global de Operações da Electrolux. Ao voltar ao Brasil, no início de 2020, outro desafio foi o começo da pandemia – enquanto muitos de seus bens pessoais ainda estavam vindo de navio da Europa para cá.
“Os dois grandes legados que a pandemia nos trouxe são que o RH não tem todas as respostas e que as respostas estão nas pessoas”, diz a executiva, que rememora episódios importantes dessa trajetória na entrevista a seguir. Longe de olhar apenas para o passado, porém, Valéria está de olho em grandes desafios para a área hoje em dia, como o uso de inteligência artificial e as questões de saúde mental.
O RH nunca teve um momento tão importante quanto agora: ele vai dizer o que é o profissional do futuro – que tem que ser humano, inovar, ser criativo e ter pensamento crítico.
Eu sou formada em Pedagogia. E quando eu estava na faculdade, eu fiz um curso sobre educação de adultos – na época, estava na moda falar sobre educação para trabalhadores em fábrica e foi um tema que me chamou muito a atenção. Era algo que eu não tinha muito contato, mas achei interessante. Nesse período, a Refripar, que fazia parte da Prosdócimo – e hoje é a Electrolux – abriu uma vaga justamente para trabalhar com educação de adultos, num sistema bem próximo do EJA (Educação de Jovens e Adultos). E foi lá que eu comecei, num mundo completamente novo: eu ainda estava na faculdade e muitos tinham idade para serem meus pais. Eu fui para ensinar e acabei aprendendo muito mais, era uma troca muito rica, muito desafiadora – imagina o que é passar conteúdo para quem já trabalhou na fábrica o dia inteiro e precisava daquele conhecimento para seguir na empresa. Era muito difícil: na época, muita gente aprendia mais por tentativa e erro do que pelo conteúdo.
Acabei entrando no RH por um caminho diferente, mas depois fiz várias coisas na área: de treinamento, passei por recrutamento, remuneração & benefícios, também fui HRBP, ficando muito próxima do negócio. Até 2014, quando tive uma transformação de carreira, eu passei por todos os subsistemas de RH – a única coisa que eu não tinha feito era negociação com sindicatos, algo que não era muito a minha praia.
Na época em que a Electrolux comprou a Prosdócimo, eu estava migrando do centro de educação para trabalhar como RH, dentro da fábrica. Foi uma migração interessante. A Prosdócimo era uma empresa nacional, extremamente paternalista – os fundadores chegavam a sortear uma casa no final do ano para os colaboradores. Era um foco muito assistencialista. Já a Electrolux tinha uma visão mais profissional, buscando engajar os colaboradores e que eles tivessem orgulho de pertencer à empresa, mas também que eles fossem autônomos e não fossem dependentes da organização.
Foi um momento bastante transformacional e que teve muita interação com a matriz na Suécia. Um dos primeiros dificultadores é que as pessoas nem sempre falavam inglês, e era preciso discutir tecnologias que existiam lá mas não aqui. Além disso, também houve uma transformação na gestão, do estilo brasileiro, familiar, para o estilo sueco, que olha menos para o comando e controle e mais para consenso, discussão, planejamento antes de execução. Por outro lado, o movimento mais importante da Electrolux foi que em momento algum eles decidiram que as lideranças brasileiras teriam que ir embora. A liderança brasileira continuou e teve uma evolução natural. Algumas pessoas saíram, outras chegaram, mas houve um processo de aprendizado gigantesco num curto espaço de tempo. Falando do RH, saímos do papel assistencialista para um papel profissional.
Naquele período, estava cheia de dúvidas do que iria fazer. Como disse, já tinha passado por todos os sistemas e passado por desafios como integração de empresas do grupo na América Latina. Eu tinha uma mentora da Suécia e falei para ela que gostaria muito de ter uma experiência internacional. E no final de 2013 ela voltou para mim e falou que tinha um projeto para eu ficar dois anos lá, junto com a minha família, trabalhando na área global de compras. A proposta é que eu ficasse um ano na área global de compras e um ano criando um programa de desenvolvimento para alta liderança, uma escola de negócios interna da organização.
Em meados de 2015, meu chefe me chamou e pediu para eu ficar mais um tempo lá, em uma posição maior do que a que eu ocupava. Foi um choque: eu não me sentia preparada, mas ele me fez enxergar algumas habilidades que eu tinha e que me capacitaram para o cargo – como a visão de uma região, ou a capacidade de comunicação. Acabei sendo a primeira VP de RH de operações, uma área que é tipicamente masculina.
No fim das contas, acabei ficando seis anos na Suécia, em temporadas que foram excelentes para mim, porque tive a oportunidade de trabalhar com outras regiões, percebendo as diferenças. No escritório da Suécia, tinha pessoas de 50 nacionalidades diferentes. Quem é brasileiro está acostumado a trabalhar só com brasileiros, então lidar com tantas culturas ao mesmo tempo foi muito bacana. Foi um super aprendizado. No final de 2019, eu tive alguns problemas pessoais e comuniquei o time que precisava voltar para o Brasil – e acabei voltando como VP de RH da América Latina no começo de 2020. Cheguei em janeiro e em fevereiro veio a pandemia.
Na hora de liderar, o sueco é muito baseado no consenso, na discussão e no planejamento, mas de uma forma muito tranquila. Eles não têm uma fala impositiva ou se sentem donos da razão. Independentemente do nível de liderança, existe uma discussão de ideias, todos são convidados a dar um ponto de vista, e eles sempre pensam muito no longo prazo. No dia a dia, também tem aspectos diferentes: se uma reunião começa às 8h, todos estão na sala às 8h – e não às 8h10, como acontece aqui.
Outra coisa é a questão da hierarquia: aqui, se você reporta para um vice-presidente, normalmente a reunião acontece na sala do vice-presidente. Lá, não: o meu chefe normalmente vinha até mim quando precisava falar. São exemplos sutis, mas que mostram o jeito de pensar da liderança deles. E tem outra questão forte: a equidade é uma coisa vivida no dia-a-dia lá. É muito comum um homem sair às 15h para buscar o filho na escola ou ficar em casa porque tem alguém doente.
Também tem alguns aspectos difíceis. Como o sueco tem essa liderança pelo consenso, muitas vezes você chega no final de uma reunião e fica em dúvida se ele concorda ou não com algo. Ele sempre vai forçar a reflexão. Ele nunca vai dizer para você não fazer algo, mas sempre vai perguntar se você acha que é o melhor caminho. Outro ponto difícil dessa maneira de trabalhar é que, às vezes, leva-se muito tempo para chegar a um consenso. Para o latino, que é ansioso, pode ser difícil lidar. O processo pode ficar moroso, pode ser lento.
Outro ponto ruim é que o sueco não costuma dar feedback. O que eles costumam dizer lá é que se não há feedback, é porque é algo positivo. Mas isso é muito ruim: faz falta alguém dizer que você poderia ter feito algo diferente, direcionado melhor. Essa falta de clareza gera insegurança. Mas isso parte de uma outra filosofia: eles assumem que todos são adultos, devem ser tratados como adultos e sabem o que precisa ser feito. É bacana eles respeitarem a individualidade do outro, mas isso também pode ser desgastante. O sueco é criado para ser independente: na escola, as crianças de dois anos são estimuladas a irem com sapatos que eles possam tirar e calçar sozinhas, com mochilas que elas consigam carregar sozinhas. E no Brasil é diferente, né? Somos acostumados a pedir tudo para todo mundo. Foi um mundo de aprendizado para mim.
Foi super desafiador! Quando eu cheguei, eu não tinha casa para morar. Meu chefe era novo: eu até o conhecia, mas nunca tínhamos trabalhado juntos. Meus pares e meus colaboradores eram novos. Eram vários desafios para equilibrar ao mesmo tempo. Costumo dizer que a pandemia colocou o RH num papel de protagonismo. Um aspecto que foi muito positivo foi que o presidente me chamou e pediu ajuda, e nós criamos um comitê de crise. Todos os dias, nós juntávamos o CEO, a área comercial, a fábrica, o time de saúde, e íamos discutindo o que fazer. Em março, cheguei a colocar 75% da nossa capacidade produtiva em casa. Como as lojas fecharam, teve um mês que não vendemos absolutamente nada, foi desesperador. Na época, meu compromisso com a liderança é que íamos preservar caixa, emprego e a saúde das pessoas. Sem vender, porém, era difícil preservar tudo isso.
A nossa sorte foi que, quando as pessoas já estavam há um mês em casa, o mercado começou a vender online e os nossos produtos são essenciais. Ao ficar em casa, as pessoas foram percebendo que o fogão não funcionava mais tão bem, que a geladeira estava velha, que precisavam de uma máquina de lavar pratos porque não tinham tempo. E aí voltamos a operar. Outro ponto importante do comitê de crise era sempre ouvir muito os colaboradores, entendendo como auxiliar, entendendo as dores das pessoas. Com isso, surgiram várias demandas do pessoal, como apoio psicológico. Hoje temos um benefício chamado Employee Assistance Program (programa de assistência ao empregado, em inglês), em que as pessoas podem pedir assistência psicológica e financeira 24 horas por dia, 7 dias na semana. Mais do que o benefício, a transformação foi do RH estar próximo aos colaboradores – e também aos gestores, para dar o apoio correto ao colaborador. Começamos a trabalhar mais a questão da liderança humanizada, de permitir que o colaborador tivesse uma voz ativa.
Os dois grandes legados que a pandemia nos trouxe são que o RH não tem todas as respostas e que as respostas estão nas pessoas.
Às vezes, estamos no meio do caos e é preciso aprender a viver no caos – e a melhor forma de fazer isso é se conectar com as pessoas, perguntar o que elas precisam. O RH, de maneira geral, tem uma fama de entender as pessoas como se fosse um oráculo. O RH infere coisas. Os dois grandes legados que a pandemia nos trouxe são que o RH não tem todas as respostas e que as respostas estão nas pessoas.
Outro legado importante é que o RH tem sim um papel estratégico na organização. É importante investir em soluções que realmente causem impacto no negócio e nas pessoas. Além disso, tem o ponto de olhar para a liderança e entender que ela tem um papel fundamental na humanização das pessoas. O líder tem um papel muito forte na saúde mental dos colaboradores. Se você não tem uma relação de confiança com seu chefe, você não tem coragem de sair da frente do computador nem para ir ao banheiro.
Além disso, não dá para não falar da questão do digital. Antes da pandemia, o tema do trabalho remoto ainda era uma discussão – que não havia licenças o suficiente, que os servidores não iam suportar… e bem, da noite para o dia isso mudou. A aceleração do campo digital e a possibilidade de trabalhar de casa, que traz vantagens e uma melhor qualidade de vida, é muito interessante.
Algumas coisas têm me preocupado bastante, como a questão da saúde mental. É um tema que ainda é tabu nas organizações, mesmo nos círculos de amizade. Depressão era vista como fraqueza até outro dia. Hoje, o Brasil é o país mais ansioso do mundo segundo a OMS. Somos o país que mais consome ansiolíticos. São sinais fortes. Não falo isso por causa da NR-1; na verdade, acho que a NR-1 veio para fazer as pessoas acordarem para esse tema. Mas o tema me preocupa: hoje temos uma boa cultura, uma liderança humanizada, um canal de apoio para os colaboradores, mas como a gente dá continuidade nesses esforços? Esse é um problema que vai persistir e vai sempre existir – até porque há muitas pesquisas que mostram que um líder tem mais impacto na saúde emocional do colaborador do que o próprio cônjuge, por exemplo. É um sinal para se prestar atenção. E as organizações têm um papel fundamental em olhar para esse tema.
A outra grande preocupação que eu tenho é sobre preparar a organização para utilizar a inteligência artificial da melhor forma possível. Aqui no Brasil, há várias cisões sobre esse tema: tem uma vertente muito otimista e outra muito pessimista sobre o uso de IA. E o nosso desafio é evitar essa cisão. Hoje, internamente, nós usamos o Copilot e estimulamos muito os colaboradores a utilizarem, entendendo como ele pode ser usado para tarefas rotineiras e permitindo que as pessoas tenham mais tempo para conversar entre si, para interagir. Como RH, precisamos estar atentos aos movimentos para manter os profissionais focados no futuro. O RH nunca teve um momento tão importante quanto agora: ele vai dizer o que é o profissional do futuro – que tem que ser humano, inovar, ser criativo e ter pensamento crítico. Isso é o ser humano, mas como preparar as pessoas para esse futuro?
Um ponto bem importante da cultura sueca, como você disse, é a qualidade de vida. E sim, a Suécia é o país com o maior índice de suicídios no mundo. Quando cheguei lá, essa foi a primeira pergunta que eu fiz. Uma das coisas que descobri é que não são todos os países que medem essa taxa – e muitos não medem porque não sabem como tratar o tema. Isso foi uma surpresa para mim. Mas, de maneira geral, o sueco preza muito pela qualidade de vida. Lá, período de férias é férias mesmo: ninguém vai mandar email, nem vai te escrever. Eles também separam muito o trabalho com a vida pessoal.
Aqui no Brasil, a gente convive com as pessoas com quem a gente trabalha, frequenta a casa dos colegas no final de semana. Lá, não, as coisas são mais separadas. É até curioso: como eles não têm muito o aspecto relacional, eles têm um momento que eles chamam de fika, que é uma espécie de café, onde cada um leva um doce e eles conversam sobre a vida pessoal. É por isso também que eles têm muito a coisa de chegar no horário, ir embora no horário, cada um cuida da sua vida. E como isso interfere na cultura – e na nossa cultura latina?
A Suécia traz bons questionamentos para a discussão de qualidade de vida, do bem-estar, e isso gera uma série de políticas globais e práticas que temos que ter. Hoje, temos uma série de iniciativas nesse sentido – do estímulo à atividade física, acompanhamento médico, campanhas de conscientização de saúde, uma série de aspectos diferentes. Também temos políticas muito restritas sobre o número de horas extras que cada pessoa pode fazer. Outro ponto muito forte é a inclusão. O nosso mote é “venha como você é”. Como a Suécia é um país muito igualitário, eles trazem muito esses simbolismos e buscam que a gente transforme também a nossa cultura para esse estilo de vida sueco – o que se reflete em aspectos como diversidade, como igualdade de gênero, até na licença parental.
Vou indicar o livro que estou lendo agora: Antifrágil, do Nassim Nicholas Taleb. É um livro que fala muito sobre a imprevisibilidade do mundo e a forma como mudamos o nosso olhar para coisas que, antes, nós sempre víamos como normais. É um livro bastante provocativo para fazer as pessoas pararem para refletir sobre os novos tempos.
As mais lidas