Hoje, 37,3% dos cargos de chefia são ocupados por pessoas negras, enquanto mulheres são ocupam 33% das mesmas posições; para executiva, empresa que quer representar o Brasil precisa ter estratégia de DEI alinhada com o negócio

Construir uma empresa do zero exige mais do que um bom produto ou uma ideia brilhante. Requer também clareza sobre o tipo de cultura que se quer criar — e coragem para defendê-la enquanto tudo à volta ainda está sendo moldado. Gustavo Viegas entende bem disso: CHRO da Cora desde a fundação da fintech, ele se juntou ao time ainda nas primeiras reuniões. “No começo da Cora, nós falávamos de duas coisas: produto e cultura”, relembra.
Com formação em Administração, passagem por gigantes como P&G e Nielsen, e um pé fincado no marketing, Gustavo trocou o foco em consumidor por um olhar mais atento às pessoas dentro das empresas. “Sempre gostei de pensar o comportamento humano. Fiz mestrado e doutorado em comportamento do consumidor, o que, no fim das contas, era estudar psicologia”, conta. A virada definitiva veio quando empreendeu numa consultoria de RH e mergulhou nos bastidores de startups, entendendo como se constrói — ou se destrói — uma cultura de dentro para fora.
Na entrevista a seguir, Gustavo fala sobre os bastidores da construção da cultura da Cora, os dilemas entre performance e bem-estar, e os efeitos do trabalho remoto em uma organização que cresceu mais de 100 vezes desde sua fundação. “Temos a missão de criar uma organização de altíssima performance e, ao mesmo tempo, de ter uma cultura humanizada. Não é fácil fazer isso”, admite. “Mas a liderança precisa dar o exemplo — os comportamentos são aprendidos, mas também são seguidos.”
Tem vários pontos de ligação. Uma curiosidade é que o meu primeiro estágio numa empresa foi em RH, em 2001, na área de recrutamento – o que significava ler currículos em papel o dia inteiro. Minha mãe é psicóloga e eu sempre gostei de pensar o comportamento das pessoas. Minha primeira faculdade foi Engenharia, mas logo no começo eu descobri que algo estava errado: eu tirei 1 na prova de Cálculo e 10 na prova de Ciências Humanas. Demorei um ano para largar a faculdade, fazer Administração e trabalhar em marketing. Fui para multinacionais, trabalhei na P&G, na Vivo, na Sony e na Nielsen. Em algum momento, vi que essa vida de empresa “grande” não era muito para mim, até cheguei a ser demitido. E nesse momento, também cheguei à conclusão que eu precisava estudar – porque as decisões que eu tomava nas grandes empresas não me pareciam bem embasadas.
Fiz mestrado e doutorado, estudando comportamento do consumidor – o que no fim das contas era estudar psicologia. Nesse meio tempo, fui trabalhar numa empresa menor e acabei caindo como diretor de marketing numa ONG, que fazia prestação de serviços de RH para startups de impacto social em países emergentes. Sei que parece pomposo, mas a empresa tinha nove pessoas – e me ajudou a descobrir o ecossistema de inovação. Em certo momento, a ONG acabou, mas a mantenedora ofereceu uma linha de investimento para quem quisesse empreender.
Eu decidi abrir uma consultoria de RH com outros dois sócios – só que o sócio de RH decidiu sair em três meses. Nós cometemos muitos erros, mas eu tive muito contato com várias startups. Aí, eu pude ver a cozinha, os bastidores, enquanto tinha de me tornar um profissional de RH, criando produtos e prestando serviços. Eu aprendi pra caramba nesse período – e uma das empresas que era cliente era a Moip, fundada pelo Igor Senra e pelo Leonardo Mendes. Quando eles venderam a empresa e decidiram começar a Cora, eles me convidaram para começar a empresa com eles. Estou aqui há seis anos, continuo aprendendo pra caramba, mas me encontrei.
Ao começar a Cora, a primeira coisa que eles fizeram foi fazer uma lista de tudo que deu errado quando eles criaram a Moip. Segundo o Igor, no topo dessa lista estava “demorar demais para cuidar do RH e ter uma área de pessoas forte”. Meu convite teve a ver com isso: no começo da Cora, nós falávamos de duas coisas. Produto e cultura. Meu primeiro trabalho com eles no Moip foi justamente ajudar a tangibilizar a cultura da empresa, e aqui a gente fez isso muito mais rápido. A partir da cultura, muita coisa irradiou para outros processos, como no processo seletivo.
Não é muito diferente da cultura de hoje. Sabíamos desde o início que queríamos criar uma empresa em que as pessoas tivessem autonomia para fazer o que elas fazem de melhor, com muita transparência. Até hoje, isso parte da própria liderança. É também uma cultura muito humana, de querer que todo mundo trabalhe junto de verdade – e não por obrigação. Ao mesmo tempo, é uma cultura de fazer as coisas acontecerem com agilidade. É preciso colocar logo as coisas na roda, pondo os produtos na mão do cliente. Temos um cuidado grande de ser uma com cultura do erro, de não criar problema para quem erra. É óbvio, somos um banco, não podemos cometer erros críticos que prejudiquem o sistema ou os clientes. Mas os erros de experimentação são estimulados. A missão que temos é gigantesca – e se não olharmos para os melhores do mundo e fizermos algo parecido, não vai dar certo.
Em fóruns de RH, muita gente pergunta isso: como manter a cultura? Como revitalizar a cultura? O primeiro passo é dar o exemplo: as pessoas vivem a partir do que elas enxergam. Os comportamentos são aprendidos, claro, mas também são seguidos – e aqui a liderança da empresa tem uma obrigação. Quando você comete um erro, é preciso ter abertura para isso – e é “quando”, não é “se”, porque não somos robôs. Eu já vivi um caso de faltar com a transparência com a empresa, de uma forma completamente honesta, e fiz questão de ir no All Hands e contar o que aconteceu. Quando a gente pisa fora da linha, é preciso dar o exemplo e falar a respeito. Todo mundo vai acabar atuando de maneira desalinhada em algum momento, e isso tem que ser conversado. Cuidar da cultura começa na entrada. Não interessa se a pessoa vai fazer entrevista para estagiária ou diretora – ela vai ter uma entrevista de cultura. As questões internas tem consequências externas e temos que estar abertos para falar sobre isso. É algo que dá muita transparência para todo o processo.
Muita gente não tem noção do quanto esse processo é rápido. Acho que a primeira coisa que muda são as questões de comunicação. No começo, a maioria das pessoas tem contato direto com a liderança da empresa. Depois, as pessoas vão ter reuniões com os diretores de área, e só eventualmente vão ter uma reunião geral com a alta liderança. As mensagens acabam não chegando de maneira tão rápida para todo mundo. Outra questão é o controle: num grupo de 20 pessoas, dá pra mover “o barquinho” de maneira rápida. Num grande navio, é preciso girar o timão agora para ele se mover daqui a pouco. Uma empresa de 300 pessoas não é tão grande, mas ela pode perder agilidade se não houver um olhar para os processos. Além disso, você começa a ter a criação de áreas – e cada área tem sua complexidade, sua subcultura, e é preciso ter um processo de gestão de performance para entender cada público e os problemas que eles trazem.
Nós temos a missão de criar uma organização de altíssima performance e, ao mesmo tempo, de ter uma cultura humanizada. Não é fácil fazer isso, porque há dilemas reais que acontecem quando alguém tem uma estafa mental. É engraçado: eu sou empreendedor da Endeavor, temos muita mentoria interna ali, e todo mundo coloca essa pergunta como um desafio. É algo que representa a nossa cultura e nosso propósito. Queremos ajudar donos e donas de pequenos negócios a prosperarem, mas não quero fazer isso com uma cultura nociva.
Não dá para adotar uma tecnologia só porque é moda, é preciso ter claro o benefício que ela trará, seja no trabalho do dia a dia ou para oferecer um produto melhor.
Antes de falar do quanto a inteligência artificial torna o cenário mais complexo, é importante falar do quanto ela ajuda. Não dá para adotar uma tecnologia só porque é moda, é preciso ter claro o benefício que ela trará, seja no trabalho do dia a dia ou para oferecer um produto melhor. Para mim, uma boa abordagem é entender o quanto eu perco ao delegar uma tarefa para a IA. Estou perdendo a chance de me relacionar? Estou perdendo a chance de aprender com outra pessoa? Meu viés é de educação. Se eu delegar uma tarefa para IA, quero entender o que eu deixo de aprender e como deixo de colaborar com alguém. Como a gente cria uma empresa colaborativa se quem está colaborando é o agente do fulano com o agente do sicrano? Não dá para perder esses eixos. Além disso, há outro ponto: interação é algo que gera tolerância. Quando você interage com alguém que não é parecido com você, você aprende a tolerar – e isso traz uma série de ramificações.
Uma questão que a gente tem é a de tempo para preencher uma vaga. Às vezes, eu demoro quatro ou cinco meses para preencher uma posição. Por que? Porque a gente tem um processo seletivo construído com intenção desde o começo. Hoje, estamos começando a trabalhar a previsibilidade de acertar numa entrevista de cultura. Aqui, sei que a Cora tem uma previsibilidade acima de 90%. Mas como o processo fica mais eficaz?
Não é tanto assim: nesses 10%, muitas pessoas passam raspando na cultura, mas vão bem no “conjunto da obra”. São pessoas que decidimos dar um voto de confiança e quando entram aqui, elas brilham na cultura. É preciso lembrar que nosso processo também não é só cultura, envolve entrevista técnica, conexão com a liderança. Mas isso se liga a outro ponto, que é o de dar oportunidades para todos se desenvolverem aqui dentro. E voltando nos desafios, outro desafio é traduzir esse propósito em iniciativas que vão ajudar as pessoas.
As mais lidas