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Por que a startup Salvy trata sua cultura como um produto 

Fundada há dois anos, empresa que busca repensar telecomunicações decidiu revisar e atualizar aspectos da cultura como se ela fosse um software; documento com ‘data de validade’ ajuda a guiar processos e lidar com ansiedade da evolução das empresas, diz CEO Artur Negrão

Bruno Capelas
16 de outubro de 2024
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No dia a dia do RH, é comum que muita gente pense que a cultura da empresa é algo imutável: um conjunto de padrões, características, crenças e comportamentos que foram previamente determinados ou surgiram espontaneamente, mas que se mantém iguais ao longo do tempo. Mas, em tempos de tantas mudanças no universo do trabalho, será que funciona assim mesmo? E se a cultura muda de maneira constante, como evitar a ansiedade? 

Para a startup curitibana Salvy, uma operadora virtual para empresas de diferentes tamanhos no Brasil, a forma de lidar com essas dúvidas foi tratar a cultura como produto – com direito até a escrever documentos com números do lado, como “2.0” e propor uma data de validade para esse conjunto de padrões, regras e atitudes. “Com uma data de validade, as pessoas entendem que aquelas regras não vão durar para sempre, nem por muito tempo. Para mim, enxergar cultura como produto é antecipar o fato de que, tal como um produto, a empresa vai evoluir”, explica o CEO e cofundador Artur Negrão, que comanda uma equipe de 20 pessoas. 

A primeira versão da cultura da Salvy, conta ele nesta entrevista, foi escrita quando apenas os sócios trabalhavam na empresa – mas surgiu antes mesmo da startup ter uma tese de negócios definida. Já a segunda surgiu há alguns meses, quando a empresa passou de poucas pessoas para a casa das dezenas, e contou tanto com a participação dos fundadores quando de todos os colaboradores. A próxima, projeta o executivo, deve vir só no final de 2025 ou começo de 2026, mas não é algo que tire os cabelos do CEO. 

Na entrevista a seguir, Artur fala sobre como a cultura da Salvy foi moldada e como ela evoluiu; explica também o que há no documento que determina a cultura da empresa e como ele foi remodelado nos últimos meses, além de mostrar um pouco de sua visão de liderança e como o papel de cuidar de Pessoas está atrelado ao cargo de CEO. Ele também fala sobre as lições que podem ser aprendidas com tal visão por organizações de diferentes tamanhos. “Uma empresa que tem as mesmas diretrizes há 10 anos não se preocupa com o tema, porque é impossível dizer que não houve mudanças em 10 anos. A grande importância por trás dessa filosofia é que os ciclos têm de ser respeitados e as empresas precisam se reavaliar com frequência – e isso independe do tamanho delas”, afirma. 

Antes de começar, Artur, é importante entender contextos. Então, o que a Salvy faz?

A Salvy é uma operadora para empresas que busca simplificar o processo de contratação, gestão e pagamento de linhas móveis no Brasil. Hoje, entendemos que no status quo, as empresas têm um relacionamento ruim com empreendedores, que são obrigados a assinar contratos de longo prazo, vinculados a multas, em processos difíceis de gerenciar e com pouco acesso a tecnologia. Muitos clientes com 2 ou 3 mil linhas ainda usam Excel para fazer essa gestão. Acreditamos que o problema de telecomunicações hoje é de software, não de rede, então fornecemos isso. Além de dar a tecnologia, a gente também tira os contratos da fidelidade e integra as informações com o sistema do RH. Estamos há dois anos em operação, temos 700 clientes, cerca de 20 colaboradores e já levantamos duas rodadas de investimento. 

Esse contexto é importante para saber o estado atual da empresa. Uma das tuas missões como fundador e CEO é organizar a cultura da organização. Como essa discussão surgiu pra você? 

A cultura foi um dos primeiros temas que discutimos, antes mesmo da própria tese de negócios da empresa existir. Eu e o Lucas, meu primeiro sócio, discutimos desde sempre a empresa que a gente queria ter, sempre buscando uma cultura consciente. A cultura sempre existe, independentemente se a organização pensa nela ou não, então queríamos ser bem claros neste aspecto. Fizemos um primeiro documento e, depois de dois anos, sentimos que ela precisava ser atualizada. Dois anos é uma marca importante na vida de uma empresa, até porque muitas morrem nesse período, mas começamos a perceber que estávamos numa nova fase. Por outro lado, nós percebemos que não pensávamos na Salvy do futuro, e que deveríamos encarar a cultura como um produto, entendendo que ela tem momentos diferentes e que novos desafios vão surgir com a chegada de mais pessoas e outras expectativas. Por isso, decidimos rever aquele primeiro documento, considerando a chegada de mais dois sócios. Sentamos bastante, escrevemos juntos e separados para transcrever o que a gente entendia como cultura da Salvy, no que a gente chamou de Salvy 2.0. 

O que havia no primeiro documento e não fazia mais sentido? 

As mudanças eram muito menos sobre tirar coisas e mais sobre adicionar novos elementos. Percebemos que algumas questões que colocamos no começo ficaram naturais. Um exemplo: não usamos PowerPoint, nós escrevemos. Não é sobre usar as ferramentas, mas sim sobre como tomamos decisões, com base na escrita e em argumentações. Outro ponto é que a gente sempre pensou em flexibilidade de políticas, mas não estava determinado como seria um day off ou como funcionam as férias. Não eram questões que nos preocupavam na época. No documento 2.0, tem um pouco mais de contexto, de direcionamentos, mas seguimos com a mesma essência de liberdade e responsabilidade. Acho que ter direcionamentos é natural porque temos mais gente envolvida na empresa. Outra adição é a colaboração: antes, o time era tão pequeno que isso não era um tema. Hoje, falamos sobre o que é colaboração, o quanto queremos de colaboração e como fazer isso. 

Essa versão 2.0 da cultura virou um documento? Como ele está disponível para o time? 

Hoje, nós temos um documento de cultura, o Handbook, que consiste de três camadas. A primeira trata dos valores e crenças, dos padrões de conduta que acreditamos serem importantes para as pessoas que estão aqui. A segunda camada versa sobre princípios e diretrizes, sobre como a gente espera que as pessoas ajam com base nos valores. E a última camada é o que chamamos de manual Salvy, que é bem tática: fala sobre como falar no Slack, como tomamos decisões e reuniões, como fazemos feedbacks. É uma camada bem ampla que diminui o tipo de abstração. E isso é importante: tendemos a achar que cultura é sobre valores e crenças, mas as pequenas ações do dia a dia também tem muito a ver com isso. 

Vocês já tinham “uma cultura” antes de criar a versão 2.0 do documento, espalhada pelo time. Qual foi a reação da equipe ao receber esse novo material? Houve estranhamento? 

Esse era um grande receio nosso. Mas, ao terminar a primeira versão desse novo documento, nós sentamos com o time todo numa sala e fizemos todos pararem para ler o texto de forma síncrona, fazendo comentários. Para nosso alívio, as provocações surgiram em torno de pequenos detalhes e adições, e não em torno de questionamentos de tópicos que não eram “a cara da Salvy”. Nessa fase, sinto que nenhum valor ou princípio mudou, mas sim a forma como as frases estavam escritas. Depois que o time nos ajudou a construir essa segunda versão, peguei as anotações, passei a limpo e aí publicamos esse documento 2.0. 

Nem todas as empresas têm cultura escrita. De que maneira ter um documento ajuda vocês? É um elemento que auxilia a rampagem de pessoas ao chegarem na empresa? 

Ainda não trouxemos muitas pessoas desde a Salvy 2.0, mas essa lógica nos ajuda muito no processo de contratação. Tentamos usar uma lógica behaviorista, procurando os comportamentos das pessoas na entrevista. Uma coisa é entregar um projeto, outra é saber como a pessoa entregou esse projeto. Fazemos perguntas no processo seletivo para entender se as pessoas têm os mesmos valores, para que elas cheguem prontas, de maneira natural. Não queremos evangelizar ninguém, mas sim selecionar com base na cultura. Foi algo que buscamos a inspiração nos Princípios de Liderança da Amazon, é uma baita referência. 

Muitas organizações hoje defendem que o presencial é essencial para a criação e manutenção de uma cultura. Como a Salvy funciona em termos de modelo de trabalho? 

Tivemos essa conversa na hora de escrever a versão 2.0. Desde o início, a Salvy sempre teve um escritório, mas as pessoas podiam tomar a decisão de ir se quisessem, quando quisessem. Somos remote-first: se tem uma reunião marcada, ela é sempre remota, por princípio. Hoje, não conseguimos nos ver como uma empresa que muda o modo de trabalho do nada. Assim como várias políticas, não há regras, mas seguimos como uma empresa em que cada pessoa pode fazer o que quiser. Temos muita gente na nossa cidade, Curitiba, temos rotinas presenciais, mas preferimos manter essa liberdade. 

Quando você fala em pensar a cultura como um produto, é inevitável pensar em atualizações. A próxima versão do documento será uma versão 2.1 ou uma 3.0? 

A princípio, vamos direto para a 3.0. É difícil revisitar esse tipo de documento com frequência e trazer as discussões para o dia a dia. Imaginamos que voltaremos a essa discussão no fim de 2025 ou começo de 2026. Um aspecto que nos norteia é o caminho típico do venture capital, que coloca nossa próxima etapa como uma Série A. É um momento em que as empresas mudam com alguma força: aumenta a quantidade de pessoas, a governança, a organização começa a ter um board. Acreditamos que nesse momento será preciso revisitar esse documento de novo. 

Você já pensa sobre como vai ser a cultura lá na frente? Ou que mudanças vão vir? 

Sei dos desafios que vão vir, mas não sei quais mudanças virão. O time será maior, teremos um conselho, teremos mais receita e mais clientes, além do fato de que vamos precisar de uma governança maior. São temas que podemos antecipar. Além disso, há discussões que eu imagino que podem acontecer: vamos ser full remote ou seguiremos contratando muita gente em Curitiba e região? Vamos seguir com política 100% flexível? Mudaremos a forma de tomar decisões? Mas não sei o que vai mudar. 

Quando falamos de mudanças, é bastante comum que elas venham acompanhadas de ansiedade. Como manter a ansiedade em dia? 

Não falamos muito disso, para ser sincero. É uma das belezas de tratar a cultura como um produto: ter uma data de validade para ela funciona para não termos a ansiedade para mudar. Na verdade, a ansiedade é oposta: é saber que o jeito que as coisas funcionam hoje não vão funcionar no futuro. Essa ansiedade tende a atrapalhar mais do que a ansiedade sobre o que vai mudar. Mas é isso: não é uma data específica, não está marcado no calendário especificamente. O que consigo imaginar é que a versão 2.0 começará a ser questionada pelo dia a dia e a 3.0 precisará começar a surgir – e aí, em vez de abraçar a ansiedade de abafar a mudança, será o momento de construir uma nova versão da cultura. 

Toda essa discussão acontece em meio ao fato de que a Salvy é uma empresa que ainda não tem um RH estabelecido. Como é ser um CEO que olha para Pessoas sem ter um RH? 

Acho que o grande desafio é o tempo: como CEO, eu olho também para o marketing, de maneira que se eu não parar e colocar um tempo na agenda para me organizar, as coisas não andam. Por outro lado, hoje o escopo é mais simples, com velocidade: todos os sócios participam das decisões do que fazer com pessoas, reformulações, rotinas. E quando falamos de contratação, isso está na mão dos gestores. Se precisa abrir uma vaga, um dos sócios tem que escrever um documento explicando porque a vaga deve ser aberta, quais são as alternativas, e todos os sócios têm que estar confortáveis com o processo, por exemplo. 

Tratar a cultura como um produto não é algo único para uma empresa do porte da Salvy. Que tipo de ensinamento essa abordagem pode trazer para outras empresas? 

Para mim, o principal ensinamento é entender que colocar uma data de validade tem valor. Com uma data de validade, as pessoas entendem que aquele documento e aquelas regras não vão nem durar para sempre, nem por muito tempo. Uma empresa que tem as mesmas diretrizes há 10 anos é uma empresa que não se preocupa com o tema. É impossível alguém dizer que não houve mudanças em 10 anos, sejam elas na tecnologia, no mercado ou nas lideranças. Para mim, enxergar cultura como produto é antecipar o fato de que, tal como um produto, a empresa vai evoluir. E isso acontece mesmo se a empresa não vai crescer, se vai manter o mesmo nível de receita ou de funcionários. De novo, volto à inspiração da Amazon. Eles tinham 14 princípios de liderança, e depois atualizaram para 18. Não é que a empresa precisava da mudança, mas houve ali a compreensão de que a mudança precisa acontecer com frequência. A grande importância por trás dessa filosofia é entender que os ciclos têm que ser respeitados e as empresas precisam se reavaliar com frequência, e isso independe do tamanho delas. 

Para fechar: você tem alguma dica de livro que indicaria para quem está lendo essa entrevista? 

Há algumas ideias que podem ajudar nesse entendimento. Um é o Working Backwards, de Colin Bryar e Bill Carr, e fala muito sobre a cultura da Amazon e como as empresas tomam decisões. Outra influência clássica pra gente foi o A Regra é Não Ter Regras, do Reed Hastings e da Erin Meyer. Outro nome que a gente gosta muito é o Bryan Chesky, CEO do Airbnb, e eu recomendo muito o episódio que ele participou no podcast Diary of a CEO, no qual ele fala bastante sobre a cultura do Airbnb.

Bruno Capelas é jornalista. Foi repórter e editor de tecnologia do Estadão e líder de comunicação da firma de venture capital Canary. Também escreveu o livro 'Raios e Trovões – A História do Fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum'.