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Na BRF, adoção de IA para filtrar currículos reduziu tempo de contratação em até 25%

Desenvolvido dentro de casa, algoritmo ajuda empresa a selecionar candidatos para cargos com alto número de inscrições, como posições de vendas; para executiva, RH tem de adotar IA por ser justamente o lugar da mudança de mindset nas organizações

Bruno Capelas
25 de fevereiro de 2025
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Adotar ferramentas de inteligência artificial parece ser uma das palavras de ordem para o RH em 2025. Mas é preciso fazer esse passo com consistência, cuidado e atenção para os resultados. É uma lição que a BRF, que utiliza a tecnologia em diversas tarefas da área de pessoas desde 2018, tem ensinado ao mercado nos últimos anos. 

“Sempre tem algo para aprender”, diz Cristiane Costa, gerente executiva de atração, seleção e diversidade da empresa com mais de 100 mil colaboradores espalhados pelo Brasil. “Entendemos que o RH precisava ser agente da mudança de mindset. Seria mais fácil as pessoas entenderem a inovação se a experimentassem via RH, para depois extrapolar esse uso em outras áreas.” 

Na companhia, tarefas como gestão de feedback, entrevistas de offboarding e envio de atestados já podem ser resolvidas com ajuda de chatbots. Os sistemas também vem evoluindo: se antes muitos deles funcionavam por meio de árvores de decisão, hoje já contam com o uso de IA generativa, respondendo e dialogando com os colaboradores e candidatos. 

Em 2024, a empresa também passou a utilizar IA para filtrar currículos em processos seletivos de alta volumetria – em casos em que uma vaga pode ser disputada por até mil candidatos. “Ano passado, nós contratamos 36 mil pessoas no mundo – e analisamos 500 mil currículos”, mensura Cristiane. Para dar conta de todo esse trabalho hercúleo, a empresa criou um algoritmo capaz de ranquear candidatos de acordo com suas experiências prévias, facilitando o trabalho dos recrutadores. Segundo a executiva, a inovação propiciou uma redução de 25% no tempo gasto para uma contratação. 

Na entrevista a seguir, Cristiane dá mais detalhes sobre a jornada de IA da BRF nos últimos anos, incluindo muitos experimentos, aprendizados e considerações sobre a implementação da tecnologia. Ela também fala sobre os desafios à frente e explica como o uso de IA não necessariamente é um adversário dos esforços de diversidade: 

Sou detratora da ideia de que a IA tem viés. Quem tem viés é quem cria o algoritmo.

IA não é uma tecnologia nova, embora esteja em alta nos últimos anos. Como o uso de IA começou no RH da BRF? 

De fato: para nós, o uso de IA não é algo novo. Nosso primeiro projeto com a tecnologia surgiu em 2018: a criação da Flor, um chatbot que faz atendimento para os funcionários, respondendo perguntas básicas que uma pessoa de RH costuma responder 150 vezes ao dia. Naquela época, a Flor ainda funcionava no modelo de árvore de decisão, mas ela já trazia um impacto importante. Hoje, esse mesmo chatbot funciona em IA generativa, responde uma quantidade de processos gigantesca e em temas variados. Com a Flor, os colaboradores conseguem enviar atestados, pedir férias e holerites, entender benefícios e tirar dúvidas sobre políticas da companhia, além de ver a avaliação de performance e dar e receber feedbacks. É uma agenda que começamos a mover em diversas outras frentes, inclusive para o público externo e para os clientes. Para nós, a IA extrapola RH. Ela começou no RH porque entendemos que o RH precisava ser agente de mudança de mindset e de cultura das pessoas. Seria mais fácil as pessoas entenderem a inovação se a experimentassem via RH, para depois extrapolar esse uso para as diversas áreas da companhia. Hoje, temos mais de 8 chatbots atendendo transportadores, clientes finais, usuários de TI e assim por diante. A cada ano, nós embarcamos em novos projetos com o time de digital. 

A BRF é uma empresa gigante, com vagas em todos os tipos de locais: tem indústria, tem agro, tem corporativo, tem vendas… Como funciona a seleção para atividades tão diferentes? 

Diferentemente de outras empresas, nossa área de atração, seleção e diversidade é centralizada e verticalizada. Tenho recrutadores na grande maioria das localidades, mas operamos de maneira centralizada: todo mundo responde para mim e todos seguem o mesmo modelo, o mesmo processo e as mesmas ferramentas. É algo que nos dá uma visão sistêmica do que acontece no Brasil e no mundo, entendendo onde temos que aportar mais recursos. Hoje, temos 100 mil funcionários, num segmento de alta rotatividade, porque o segmento da indústria da carne tem alta rotatividade. Não é uma dor da BRF, porém: do que observamos em relatórios para investidores, somos benchmark quando o tema é turnover. Mas é uma realidade que operamos num segmento de rotatividade alta, graças a um ambiente operacional desafiador. Só para se ter noção, em 2024 contratamos 36 mil pessoas no mundo. No Brasil, foram 33 mil pessoas. Para contratar essas 36 mil pessoas, mais de 3 milhões de perfis passaram pelo nosso sistema de talentos, enquanto 500 mil chegaram a se inscrever nas nossas vagas. É algo que traz uma demanda alta de trabalho para o RH. A distribuição não é igualitária, porém: tem vagas com mil inscrições e tem vagas que tem meio candidato por vaga. E aí chegamos ao desafio: como ser produtivos tendo muitos candidatos em um processo seletivo, podendo selecioná-los rapidamente, dando um retorno adequado, enquanto trabalhamos o desafio de atração em localidades com pleno emprego no Brasil. Muitas cidades fortes no agro hoje operam com taxas de desemprego inferiores a 3%. Há um desafio grande de mão de obra operacional para sustentar nossas operações. 

Vocês já estão usando IA para melhorar o contato com esse público? 

No nosso dia a dia, fazemos muita experimentação, muita prova de conceito, testamos com startups. Nem sempre implementamos, mas sempre aprendemos muito. Em 2022, fizemos uma experimentação que foi o início dessa conversa para recrutamento: um chatbot para falar com os candidatos. Nós entendemos na época que os candidatos de perfil operacional não funcionam bem com e-mail. Muitos chegavam na porta da fábrica para pedir emprego enquanto nosso sistema todo de contratação era baseado em cadastro via e-mail. E em muitos casos, o primeiro passo para o processo seletivo, mesmo no offline, era criar um e-mail para o candidato. Por outro lado, percebemos que esse candidato funcionava bem nas redes sociais, com conta no Facebook e WhatsApp. Esse piloto de 2022 tinha a meta de oferecer posições via WhatsApp para as pessoas que já estavam cadastradas no nosso banco de talentos, mas que não liam os e-mails que mandávamos. Passamos a fazer o convite via WhatsApp e o retorno foi muito maior. Percebemos que era um canal que precisava ser utilizado. Esse chatbot depois ganhou o nome de Theo, e por algum tempo funcionou levando o candidato para o site, num modelo tradicional de inscrição. Ao longo do tempo, o Theo evoluiu para fazer o cadastro e as inscrições dos candidatos.

Voltando à questão da seleção: seja qual for o número de vagas, 500 mil currículos é um número que pode deixar muita gente de cabelos em pé. Como vocês começaram a implementar IA para lidar com essa demanda tão grande? 

Enquanto o Theo se desenvolvia, nós fizemos uma série de testes para melhorar outras etapas do processo seletivo. Experimentamos muitas soluções de startups com relação ao uso de IA para acelerar nosso processo de triagem. Não achamos uma boa solução, os testes eram inconclusivos e não mostravam uma boa qualidade de seleção. Com esse incômodo, o RH e o time de digital, junto dos nossos cientistas de dados, começaram a propor a criação de um algoritmo de seleção. Inicialmente, experimentamos em dois cargos que tivessem alta volumetria de contratação, em casos que nós conseguíssemos domar o experimento. Foi assim que nasceu o ExperiencIA, que está rodando há quase um ano. Os dois primeiros cargos eram promotor e vendedor, na área comercial. 

Leia também: Por que estão falando tanto de… como a IA afeta o recrutamento

No que consiste esse algoritmo? 

Ele é um algoritmo que parte de uma nuvem de palavras específicas para buscar aquele monte de informações que um RH busca no currículo de um candidato. Qual é o processo de IA? Hoje, o candidato faz seu processo de cadastro, faz inscrição e envia o currículo para o sistema. O sistema, por sua vez, faz a leitura rápida do currículo, resume e entrega para o recrutador. Nesse ínterim, ele faz o match do currículo com a descrição do cargo, considerando as prioridades de triagem dentro da nuvem de palavras. Por fim, ele ranqueia os candidatos e entrega essa triagem para o recrutador. É um mecanismo que diminui a necessidade de leitura de currículos e de contatos, uma vez que o recrutador vai chamar para as entrevistas apenas os candidatos que estiverem melhor pontuados no ranking. O recrutador, por sua vez, vai fazer outras verificações que não estão no currículo: expectativa de remuneração, modelo de trabalho, que não estão escritas no currículo. O uso de IA acelera o tempo de entrega do shortlist para o gestor fazer a escolha do candidato final. Foi algo que começou pequeno, mas o experimento deu certo. 

Que resultados vocês já colheram com esse algoritmo? 

Percebemos uma redução de 25% no tempo de contratação nesses dois tipos de cargo que começamos a trabalhar. Aos poucos, fomos expandindo as nuvens de palavras e criamos algoritmos para outros postos. Hoje, temos 69 cargos diferentes sendo triados sob esse sistema, mas ele não funciona para todos os postos. É um sistema mais fácil de criar quando a volumetria do cargo é maior. Além disso, é preciso ter um tempo de adaptação no processo. Em alguns casos, o sistema pode dar nota 9 para um candidato, mas ele chegar na entrevista e não ser exatamente o ideal. Na verdade, a todo o tempo é preciso fazer ajustes finos no processo.

Nesse processo, o que deu errado? O que vocês aprenderam e tiveram que ajustar com o tempo? 

Sempre tem algo para aprender. Passamos meses calibrando o sistema de IA para seleção. Um dos primeiros erros foi um erro clássico: no começo, o sistema rotulava muitos candidatos como nota 10 para o cargo de vendedor, mas que eram rejeitados na hora da remuneração. Isso acontecia porque na verdade o candidato já estava no nível de gerente de vendas. Rapidamente, aprendemos que o sistema não podia olhar só para as experiências do currículo, mas também para a diferença no tempo. É uma coisa fácil de consertar no algoritmo, mas que nós não olhamos. Durante o processo de validação, nós elegemos um grupo de recrutadores para ser um comitê de checagem: eles olhavam uma amostragem dos currículos, viam a nota da IA e diziam se fazia sentido ou não. Com isso, fomos fazendo ajustes finos ao longo do tempo, até para evitar aquela reação do “joga fora que isso não funciona”. Nos chatbots, por outro lado, estamos trabalhando com uma curadoria para que eles entendam formas diferentes das pessoas perguntarem as coisas. Muitos candidatos, por exemplo, enviam áudios para o chatbot, que está preparado só para lidar com textos. Outro caso é que a pessoa buscava o chatbot não dizendo que estava atrás de uma vaga, mas sim mandava o print de uma divulgação de uma vaga e não recebia nenhuma resposta, porque o chatbot não lê imagens. Tudo isso é algo que você aprende com o dia a dia. O importante é que é preciso ser ágil e ter aprendizagem contínua – e é aí que, por exemplo, a IA generativa tem muito valor. 

Quais são os desafios para a expansão desse projeto? E os horizontes? 

Um dos desafios que temos para o futuro é o de aproveitar melhor os candidatos. Hoje, se eu tenho mil candidatos para uma vaga, a IA vai ranquear e o recrutador vai chamar um determinado número – cinco, dez – para as entrevistas. Mas o que acontece com os outros 995, que eu já tive o trabalho de atrair para a minha empresa? Eles já estão no banco de talentos e querem trabalhar com a gente. Nosso projeto para 2025 é entender como pegar os 995 e descobrir as posições que dão match com os currículos deles. É um lugar ideal que não desperdiça todos os recursos que investimos em atração, além de melhorar nossa imagem como marca empregadora. É uma solução que ainda não se oferece no mercado, então estamos tentando criar dentro de casa. Além disso, tem outras coisas que talvez o mercado não esteja fazendo. Hoje, eu cuido também do offboarding – e uma das coisas que nós desenvolvemos em 2024 foi a entrevista de desligamento por IA generativa. Antes, nós tínhamos um formulário que levava sempre a entrevista para um mesmo caminho e não ajudava a entender as causas de turnover. Começamos o experimento com pessoas “informatizadas” e depois expandimos para os cargos operacionais no WhatsApp. Conseguimos comprovar que a entrevista de desligamento com IA generativa trazia mais as causas raiz do turnover que a entrevista feita por um humano. Como o colaborador não fala com outra pessoa, ele fica menos melindrado. São exemplos de como temos uma agenda grande. Mas não basta ter só uma ideia: todas as ideias precisam trazer redução de tempo ou redução de custo, deixando o trabalho mais simples, mais ágil e mais eficiente. A tecnologia tem um custo e o processo precisa se pagar em termos de valor e de experiência. 

Muita gente critica o uso de IA por conta dos vieses que a tecnologia tem e como eles podem atrapalhar o avanço de políticas de diversidade. Como vocês trabalham para lidar com essa questão? 

Sou detratora da ideia de que a IA tem viés. Quem tem viés é quem cria o algoritmo. Nosso maior cuidado nesse sentido é que a triagem e o ranqueamento sejam feitos com base na experiência do candidato, no que ele escreveu no currículo quanto aos pré-requisitos da vaga. Não olhamos para fator demográfico ou fator de gênero, cor, etc. Na IA, ninguém tem foto, cara ou gênero, todo mundo tem currículo. Muita gente pode alegar que pessoas dos grupos minoritários têm um currículo que pode ser prejudicado com relação à experiência por conta dos acessos e oportunidades. É verdade – mas aí não tem IA que consiga lidar com isso. Esse mesmo problema aconteceria com um recrutador ou um gestor, que é onde está o viés. Em todos os pilotos que fizemos, sempre olhamos para as prioridades de diversidade e comparamos o desempenho da máquina com o do humano quanto ao recrutamento por gênero, raça, PCDs ou refugiados e imigrantes. A verdade é que não encontramos diferença. Pelo contrário: o processo feito por uma IA trouxe resultados melhores para todos os grupos minoritários. É por conta disso que não acredito na tese de que a IA prejudique a diversidade. 

Você comentou que a BRF tem um grande problema com turnover. A retenção melhorou com as pessoas que foram recrutadas nesse processo que utilizou IA? 

Dá para medir, mas a verdade é que os cargos em que a gente utiliza IA no recrutamento não são os cargos de turnover alto. A principal dor em turnover é operação – e mais especificamente no cargo de entrada, operador de produção. Isso quer dizer que não tem turnover com promotor de vendas? Claro que existe. Foi melhor ou pior após o uso de IA? Na verdade, foi algo que se comportou de maneira parecida, com tendência de estabilidade. Para o time de atração e seleção, o turnover que importa é o chamado turnover de 180 dias – ou seja, quando o colaborador sai em até seis meses. É onde grande parte da responsabilidade pelo turnover pode ser um erro de seleção. Depois, pode ser uma questão ligada à liderança, à remuneração, à competitividade no mercado. O grupo de cargos que tem o ranqueamento via IA não são cargos que têm alto turnover de 180 dias. 

Para fechar, Cristiane: você tem alguma indicação de livro ou podcast sobre esse tema? 

Tem dois livros que eu gostaria de compartilhar. Liderando o Futuro – Visão, Estratégia e Habilidades, da Martha Gabriel, e Generative AI – The Future of Everything, de Sharad Gandhi e Christian Ehl. Gosto muito também do The AI Podcast e recomendo muito o bootcamp de IA para RH, feito pelo Marcelo Nóbrega e pelo Antonio Salvador. Mas minha principal dica para quem é de RH é não ficar de fora dos diversos grupos e fóruns de discussão. Hoje, as pessoas e as empresas estão ligadas em hubs e tem muita coisa boa acontecendo. É preciso estar antenado nesses fóruns para não se perder.

Bruno Capelas é jornalista. Foi repórter e editor de tecnologia do Estadão e líder de comunicação da firma de venture capital Canary. Também escreveu o livro 'Raios e Trovões – A História do Fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum'.

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