Especialista em felicidade corporativa discute a importância das empresas pensarem no bem-estar dos colaboradores, valorizando relações de trabalho e equilíbrio entre vida pessoal e profissional

Entre os diferentes recortes de diversidade, um dos menos discutidos pelas empresas hoje em dia é o da neurodiversidade – escopo que engloba condições variadas de funcionamento cognitivo ou distúrbios do desenvolvimento, como Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), dislexia, dispraxia e Transtorno do Espectro Autista (TEA). Na indústria farmacêutica Takeda, porém, esse tema já faz parte do cotidiano há algum tempo: desde 2021, a empresa se preparou para receber colaboradores que estão no transtorno do espectro autista.
Presente há 70 anos no Brasil, a companhia japonesa tem cerca de mil colaboradores no País, divididos entre um escritório em São Paulo, uma fábrica em Jaguariúna e o time de campo da empresa espalhado pelo território nacional. Destes, cinco são profissionais neurodiversos, contratados pela farmacêutica em um programa feito em parceria com a consultoria Specialisterne e ocupando posições em áreas como RH, comunicação e business operations.
Se à primeira vista o número pode parecer pequeno, ele traz consigo um grande esforço da companhia para se preparar para receber esse público, que traz demandas específicas para a liderança e também para a rotina dos times. “Nas reuniões, é preciso manter o foco, direcionando a palavra e o olhar para a pessoa. É importante também evitar barulho extremo, dependendo do grau de sensibilidade da pessoa. Em alguns casos, se vamos receber uma visita ou fazer uma reunião grande, não necessariamente a pessoa vai ser chamada para fazer parte da reunião”, explica Eliane Pereira, diretora executiva de Recursos Humanos da Takeda no Brasil.
Na entrevista a seguir, Eliane conta mais detalhes sobre o programa, que começou a ser gestado em 2019, mas foi interrompido por conta da pandemia. Ela destaca as mudanças feitas pela empresa para se adaptar às rotinas dos colaboradores neurodiversos e também os ganhos que a Takeda teve com esse grupo. Detalhes sobre as orientações para a liderança e a conexão com a cultura da companhia, parte de um setor bastante tradicional, também surgem na conversa. “Na nossa cultura, tomamos a inclusão como um princípio inegociável”, diz a executiva.
Começamos com o programa em 2019, a partir da provocação de um dos colaboradores, que levantou essa pauta. Até então, a gente não tinha muito conhecimento. Buscamos a parceria da Specialisterne, tentando entender o que era o problema, o que era necessário para atender esse público e o que poderia ser feito. Era para o programa ter começado para valer em 2020, mas aí veio a pandemia, e nós atrasamos nosso piloto, porque a consultoria sugeriu que a gente postergasse. Segundo eles, seria melhor fazer a inserção das pessoas neurodiversas no ambiente presencial.
Nós precisávamos treinar os gestores para receber esse público, e esse treinamento é muito humanizado. Era preciso que a consultoria viesse, explicasse como é uma pessoa com transtorno do espectro autista, como é preciso lidar, tem muitas questões básicas que são diferentes. Dependendo do nível de barulho, por exemplo, há pessoas no espectro que se incomodam muito e podem ter crises de ansiedade. Outras questões são de sociabilidade: às vezes, esse grupo é muito direto nas suas respostas, o que pode ser entendido por muita gente como falta de educação.
Sim. E quem está no espectro fala exatamente assim: é “não” e ponto, eles não vão arranjar uma desculpa. Quem não entende bem o que está acontecendo pode levar isso para o pessoal. Enfim: queríamos ter certeza que o ambiente estava seguro para receber as pessoas neurodiversas. Por isso, treinamos todos os gestores e as áreas que iam receber as pessoas. Só quando o ambiente estava pronto é que nós fizemos a seleção das pessoas junto com a Specialisterne.
Não, o treinamento era igual para todos que passaram por eles. Mas o começo do programa foi com a alta liderança: se não tiver a alta liderança engajada, o programa não vai adiante. Para qualquer nova iniciativa, tem que entender, preparar o terreno, preparar a liderança e depois implementar. O treinamento em si tinha várias questões interessantes, focando sobre como era preciso falar com esse público, como pedir o trabalho sem que a pessoa se sinta pressionada. Normalmente, neurodiversos são pessoas de muito foco nas atividades, então era importante saber como pedir para que a pessoa entenda que tem, por exemplo, três tarefas e que elas têm uma ordem de prioridade. Também tem uma questão de pedir isso do jeito certo, no tempo certo: em muitos casos, por conta do foco total, as tarefas vão ser entregues rapidamente. Outras questões são mais culturais: o brasileiro é muito do toque, muito carinhoso, mas às vezes o jeito da gente falar, o beijinho no rosto, isso tudo pode assustar quem faz parte desse grupo.
Depois do treinamento, tivemos uma seleção em que havia uma pessoa do RH, um gestor da área que a pessoa seria alocada e um consultor da Specialisterne. Foi uma seleção bastante focada: não bastava saber que a gente precisava de uma pessoa para a área médica, mas sim focar nas tarefas. Dentro do rol de tarefas, a pessoa da Specialisterne conseguia fazer um filtro com os candidatos, a partir de um banco que eles trabalham constantemente. Uma pessoa que vai lidar com planilhas é diferente de quem vai lidar com o ambiente mais dinâmico em comunicação, por exemplo. A seleção aconteceu em 2021 e contratamos quatro pessoas na época, para RH, comunicação, neuro e para a área médica. Agora, também temos também uma pessoa na área de digital e outra em business operations. A parceria com a Specialisterne foi importantíssima, nesse caso: quando a gente não tem expertise, a gente precisa ter bons parceiros de trabalho.
Não necessariamente. Uma coisa que nós criamos é que todas as pessoas com transtorno do espectro autista têm um “anjo da guarda”, uma pessoa que faz a ponte entre eles e a liderança, para dar mais segurança para eles. A Specialisterne faz um acompanhamento, mas toda pessoa que contratamos tem um ponto de contato dentro do departamento, com quem ela sabe que pode contar. É um ponto que nós definimos nos treinamentos, também.
De um lado, nós nos adaptamos à condição deles. Houve um caso, por exemplo, em que percebemos que uma pessoa não respondia bem de manhã, mas preferia trabalhar à tarde, então entendemos o horário para ele entrar mais tarde. Do outro, também começamos a adaptar as equipes e as rotinas: nas reuniões, é preciso manter o foco, direcionando a palavra e o olhar para a pessoa. É importante evitar barulho extremo dependendo do grau de sensibilidade da pessoa. Em alguns casos, se vamos receber uma visita ou fazer uma reunião grande, não necessariamente a pessoa vai ser chamada para fazer parte da reunião. No RH, às vezes você quer ser tão inclusivo que pode dar problema: tivemos uma festa de aniversário no escritório em que o barulho do parabéns provocou uma crise de ansiedade na pessoa com transtorno do espectro autista. Felizmente, um dos colaboradores percebeu e tirou ele da sala, ele teve esse olhar – e que bom, porque muitas vezes a pessoa não vai falar. Às vezes, a busca por ser inclusivo não é o que trabalha melhor para esse público, ao menos no senso comum. Por outro lado, uma coisa que é interessante é que nós temos muitos funcionários com filhos nessa condição, e o relato deles é que eles se sentem felizes porque veem que os filhos podem ter espaço no futuro, no mercado de trabalho.
Posso falar pelo lado do RH: nessa questão dos anjos da guarda, nós tivemos um caso que não funcionou. Durante o treinamento, um colaborador levantou a mão e disse que queria ser o anjo da guarda, mas não deu certo. Essa pessoa não tinha a paciência necessária, não fazia o acompanhamento. Com o tempo, os demais integrantes do time perceberam e sugeriram que era preciso tocar, que a pessoa designada não estava dando o olhar necessário. Tem gente que tem a humildade de falar que não sabe lidar, mas não é todo mundo – e o pior que pode acontecer é a pessoa no espectro ficar de lado ou ser esquecida. É preciso tomar cuidado, porque estamos lidando com pessoas. Em outros casos, muitas vezes o líder tem que entender que a tarefa feita por uma pessoa neurodiversa pode não sair do modo, do jeito e no tempo que se espera – mas isso não significa que vá ser ruim. O treinamento passa por isso também, buscando alinhar expectativas e realidades.
Lançamos este ano um programa chamado Evoluir, justamente pensando nos neurodiversos e também nas pessoas com deficiência que contratamos na empresa. O foco do programa é quem ocupa as posições de assistente e de analista júnior, oferecendo graduação, idiomas e treinamento específico. O programa começou em abril, no início do ano fiscal, e conta ainda com treinamentos de liderança, porque não queremos que esse público entre como assistente e seja assistente na companhia a vida toda. Além disso, seguimos recrutando pessoas para vagas com esse foco.
Na nossa cultura, tomamos a inclusão como um princípio inegociável. Independentemente de sermos uma empresa japonesa, trazemos a cultura do Brasil para casa, e a inclusão hoje faz parte da cultura da Takeda no Brasil. Acho que isso faz parte do letramento e do trabalho que fazemos desde 2019, quando decidimos ter uma área dedicada para diversidade, não sendo apenas uma iniciativa do RH. Além disso, essas ações têm tudo a ver com pilares da cultura da Takeda, como a honestidade, a perseverança e a integridade. Acredito que o sucesso dessa ação está baseado em uma mistura de força de vontade e humildade, além de procurar ajuda. O básico da vida é semear o terreno para depois plantar, e foi exatamente isso o que a gente fez.
O básico da vida é semear o terreno para depois plantar, e foi exatamente isso o que a gente fez.
Tem um livro que eu gosto muito no tema da diversidade e do diálogo, que é o Crer ou Não Crer, do Leandro Karnal e do padre Fábio de Melo. É um livro que fala sobre o respeito entre pessoas com crenças totalmente distintas, mostrando que o diálogo é possível, reforçando a importância da inclusão em todos os espaços.
As mais lidas