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Influencers de Educação Financeira versus “Vender o Almoço para Comprar a Janta”

Vitor Del Rey, professor convidado da Fundação Dom Cabral, discorre sobre o acesso de pessoas pretas à educação financeira

Convidado Fundação Dom Cabral
27 de agosto de 2024
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Por: Vítor Del Rey*

A educação financeira tem sido amplamente promovida como um instrumento crucial para a melhoria da situação econômica das pessoas, sendo frequentemente reconhecida como um passo fundamental para a autonomia financeira e a superação da pobreza. A premissa básica dessa ideia é simples: ao adquirir conhecimentos sobre como administrar melhor o dinheiro, as pessoas poderiam evitar armadilhas financeiras e construir um futuro mais estável. Contudo, há um aspecto central que passa ao largo neste discurso: a dificuldade, quase insuperável, que pessoas negras e pobres enfrentam ao tentar pensar a longo prazo, devido às pressões e desafios diários impostos pela pobreza.

Em 2013, a Universidade da Pensilvânia publicou um estudo conduzido por Bertrand, Mullainathan et al., que destaca uma realidade crucial que subverte essa narrativa otimista. Indivíduos que vivem na pobreza estão em uma constante batalha diária que consome a maior parte de sua energia mental e emocional. Para essas pessoas, a vida não é linear, ao contrário, é um ciclo interminável de resolver problemas imediatos, como pagar o aluguel, a conta de luz, a internet, comprar comida, garantir o gás para cozinhar e dar um mínimo de lazer e diversão para si e seus filhos. Esses desafios do cotidiano sufocam qualquer tentativa de planejamento futuro, criando um cenário onde a capacidade de pensar a longo prazo acaba sendo um privilégio que essas pessoas não têm.

Alguns influencers da educação financeira muitas vezes falham em reconhecer essa realidade. Acreditam que, com as ferramentas certas, qualquer pessoa poderia fazer um planejamento financeiro adequado, investir em poupança ou até mesmo começar a empreender. No entanto, essa visão simplista não leva em conta as urgências diárias que primeiro sufoca e, depois, ofusca qualquer possibilidade de olhar para o futuro.

A pesquisa da Universidade da Pensilvânia é clara ao afirmar que as preocupações imediatas com a sobrevivência reduzem drasticamente a capacidade cognitiva de se considerar o futuro distante. Quando a escolha é comprar comida ou poupar para emergências futuras, a escolha não é realmente uma escolha – a sobrevivência sempre vencerá, e isso também deve ser considerada uma escolha racional.

É importante destacar que essa “limitação cognitiva”, provocada por racismo estrutural, desigualdades e pobreza, não é um mero problema individual. Trata-se de uma questão profundamente enraizada nas desigualdades sistêmicas que moldam a vida das pessoas pretas e pobres. Décadas de desigualdade econômica e social criaram barreiras intransponíveis que impedem a maioria dessas pessoas de quebrar o ciclo da pobreza.

Nesse sentido, sugerir que a educação financeira, por si só, pode resolver o problema é ignorar a complexidade estrutural envolvida; é aquilo que Pierre Bourdieu chama de “saber espontâneo” e que nós conhecemos como pensamento de senso comum. É uma perspectiva que desconsidera o impacto devastador das desigualdades históricas e a realidade cotidiana de quem vive “vendendo o almoço para comprar a janta”.

Além disso, essa narrativa pode perpetuar uma espécie de culpa individualizada, na qual se coloca a responsabilidade pelo fracasso financeiro sobre os ombros daqueles que já estão mais sobrecarregados pela vida, esse pensamento é um flerte direto com as ideias de meritocracia, tão propagada no Brasil pelos teóricos liberais. Se a educação financeira não tem impacto positivo significativo sobre suas vidas, a falha parece ser deles, e não do sistema que continuamente os oprime. No entanto, conforme enfatizado na pesquisa, o verdadeiro problema reside no fato de que as urgências e necessidades diárias frequentemente impedem que essas pessoas implementem os princípios ensinados pela educação financeira.

Portanto, é fundamental que políticas públicas sejam formuladas para reconhecer e mitigar esses desafios diários. A educação financeira, embora bem-intencionada, não conseguirá romper o ciclo de pobreza se for oferecida de forma isolada, sem um suporte que alivie as pressões econômicas imediatas. A pesquisa da Universidade da Pensilvânia destaca a necessidade de estratégias integradas que combinem educação financeira com políticas de suporte econômico imediato. Essas políticas devem ser desenhadas para proporcionar um alívio tangível às dificuldades diárias, de modo que as pessoas possam começar a olhar para o futuro sem estarem completamente presas ao presente.

Por fim, lembro que políticas, especialmente as de transferência de renda imediata, como o Auxílio Emergencial e o Bolsa Família (agora Auxílio Brasil), têm sido cruciais para garantir a sobrevivência de milhões de brasileiros em momentos de crise. No entanto, apesar de seu impacto positivo, essas medidas muitas vezes carecem de perenidade e se apresentam como paliativos que não abordam as causas estruturais da pobreza. Elas fornecem um alívio temporário, mas falham em garantir a continuidade e ampliação dos direitos fundamentais, como saúde, educação, transporte público de qualidade e moradia digna.

A crítica central reside no fato de que essas políticas, embora essenciais, são frequentemente implementadas de forma isolada, sem uma integração efetiva com outras áreas que poderiam promover uma transformação social mais profunda. Sem o fortalecimento simultâneo desses direitos básicos, os programas de transferência de renda acabam perpetuando uma dependência que não resolve as desigualdades em sua raiz. A falta de uma política integrada e de longo prazo faz com que os avanços conquistados por essas iniciativas sejam vulneráveis às mudanças políticas e econômicas, comprometendo a construção de uma sociedade mais justa e equitativa.

Referência: O estudo citado no texto é associado a pesquisa conduzida por Sendhil Mullainathan e Eldar Shafir,  “Scarcity: Why Having Too Little Means So Much”.

Vitor Del Rey* é bacharel em Ciências Sociais pelo CPDOC/FGV e mestre em Administração Pública pela EBAPE/FGV. Alumni do MIT, MBA em Finanças de Impacto pela Universidad Torcuato Di Tella, Argentina, Alumni do PDC, na Fundação Dom Cabral, e Alumni em ESG na Saint Paul. É Professor Convidado na Fundação Dom Cabral, Presidente do Instituto GUETTO e Fundador da Escola da Ponte para Pretxs. Ele cursou o ensino fundamental e médio em escolas públicas e, desde 2019, tem como missão capacitar pessoas pretas e pardas para o mercado de trabalho. Seu compromisso com a igualdade e a inclusão é uma parte fundamental de sua trajetória.

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