Com quase três décadas de carreira na mesma empresa e “intercâmbio” na Suécia, executiva ressalta saúde mental e IA como desafios do RH na atualidade

Em um ambiente corporativo cada vez mais pautado pela dominância da tecnologia, a influência das relações humanas ainda é, todavia, considerada um fator decisivo para o sucesso dos negócios. Atual CEO da Zeiss no Brasil, Gabriele Carlos é uma defensora dessa ideia. Após passar mais de duas décadas no RH em diferentes posições, ela assumiu há cerca de um ano a principal cadeira da operação da companhia alemã no país. Nesse movimento, levou na bagagem importantes ensinamentos da área de recursos humanos para as decisões estratégicas.
Contrária à lógica comum do mercado, a trajetória da executiva mostra que é possível apostar na diversidade de habilidades ao privilegiar o RH – em vez de marketing ou finanças – na hora de eleger um profissional para ocupar a presidência executiva. Agora, à frente de uma empresa de 179 anos de existência, Gabriele reflete sobre a importância do reconhecimento dos profissionais de RH como ponto de virada estratégica para negócios que visam crescimento e sustentabilidade para além dos números.
Para ela, a sensibilidade ao lidar com pessoas e seus diferentes contextos é o que chancela a capacidade de uma liderança de RH assumir posições mais altas, como a presidência executiva.
Ter pessoas que gostam de pessoas numa posição de gestão executiva mais alta certamente humaniza as relações que hoje estão tão trincadas por questões diversas.
Na entrevista a seguir, Gabriele compartilha sua visão sobre o papel estratégico das skills comuns a profissionais de gestão de pessoas para o desempenho organizacional e a importância da busca por educação contínua. Ela também detalha os principais desafios à frente da Zeiss no Brasil, uma missão de gestão que passa por adaptações culturais e forte atuação social, e defende a importância de profissionais se manterem fiéis aos seus propósitos pessoais ao longo da carreira.
Meu objetivo era transformar vidas – e de, alguma forma, transformar os negócios. À medida em que fui me desenvolvendo dentro da psicologia, entendi também sobre o que eu dava conta ou não de fazer. Uma das coisas que entendi foi o meio organizacional e como ele funcionava – ou seja, ter um CNPJ que me paga por objetivos que precisam ser conquistados. Aquilo me trouxe a um lugar mais confortável do que seguir para a área clínica. Meu propósito de “transformar vidas” estava muito ligado a como eu poderia fazer pessoas serem mais produtivas, se desenvolverem e, consequentemente, evoluírem em suas carreiras, em cada negócio onde estive inserida. A partir daí, o processo, do ponto de vista de gestão, foi acontecendo naturalmente. À medida em que você vai crescendo na sua carreira, você vai assumindo novas responsabilidades — e o impacto que você causa nas pessoas acaba sendo maior. Então, passei por todas as áreas e níveis do ponto de vista de recursos humanos, até chegar ao cargo gerencial, mas não era algo que eu almejava em meu planejamento de carreira, ser uma diretora de RH. Acho que foi uma consequência de todo o trabalho e muito ligada a esse propósito que eu tinha lá atrás.
No final do dia, todos os movimentos que eu fiz vinham muito de encontro ao fato de saber lidar com gente em qualquer lugar, em qualquer segmento. Vejo o meu propósito me chamando para esses movimentos, independente do lugar onde eu estava inserida e do segmento do qual eu fazia parte. Mas é preciso entender os negócios e qual é o modo de trabalhar e ser das pessoas para saber se de fato você consegue mover o ponteiro em cada um deles. Falo muito de cultura, porque cultura é o modo de ser de cada organização. Existem algumas culturas que priorizam mais os processos, umas que priorizam mais os produtos, outras que priorizam mais a tecnicidade. A conexão de mostrar o quão central é o ser humano para o processo, qualquer que fosse a cultura, era o meu trabalho. Ou seja, trazer essa visão do colaborador ou do consumidor para o centro. Os desafios vão existir em qualquer negócio. Mas, a partir do momento em que você entende o que o consumidor precisa (e o colaborador também, consequentemente), você vai fazendo os ajustes que te levam para perto do sucesso.
Quem quer evoluir na sua carreira precisa estudar e precisa saber discutir temas diversos dentro do negócio para ir abrindo portas e possibilidades.
Ao longo dos últimos anos, trabalhei muito na minha formação, nesse entendimento do cenário de negócios como um todo. Busquei conhecer muito o segmento no qual estou inserida – não só o preço médio do meu produto, mas como funciona a concorrência, e o que os consumidores precisam. Isso é repertório. O que costumo dizer para as pessoas é que quem quer evoluir na sua carreira, precisa estudar e precisa saber discutir temas diversos dentro do negócio para ir abrindo portas e possibilidades. Fiz formações diversas na área de liderança, gestão de pessoas, e no contexto de recursos humanos também, além de formações complementares de gestão de negócios como governança corporativa, entendendo um pouco mais sobre finanças para conselho e entendendo um pouco mais sobre ESG. Isso tudo foi complementando a minha maneira de me posicionar frente ao negócio que eu estava.
Acho que tem um misto de coisas que aconteceram. A oportunidade veio e eu estava preparada para ela, e aí o convite surgiu. Houve uma movimentação interna onde o meu gestor assumiu novas áreas de responsabilidade, e ele não conseguiria, com as novas responsabilidades, continuar com essa atuação específica para o Brasil. Na época, ele me fez o convite, já chancelado pelo time global. Somado o tempo de casa que eu tinha, as entregas que tinha feito, os resultados que tinha atingido e a minha formação, entendeu-se que, dentro do cenário de executivos que nós tínhamos na organização, eu era a primeira escolha. Eu realmente não esperava e nem estava discutindo como um próximo passo de carreira, mas vi a possibilidade de novo de, linkada ao meu propósito, transformar vidas – não só no âmbito das pessoas que fazem parte da organização, mas de todos os stakeholders que se relacionam com a gente. Foi um momento de conjunção de oportunidades e de estar me sentindo preparada por conta de todos esses aspectos de entrega, de resultados e consequentemente de formação.
Com certeza. Grande parte da minha atuação em recursos humanos foi como business partner. Então isso me ajudou muito porque me exigia conhecimento não somente sobre subsistemas de RH, mas sobre o que eu estava discutindo na área pela qual eu fazia o trabalho acontecer. Isso contribuiu para ter essa visão mais ampla do ponto de vista, não só de negócios, mas dos processos de recursos humanos. Isso facilitou os movimentos que fiz ao longo da minha carreira, conectando as duas pontas: técnica e comportamental. Então, certamente a minha experiência como BP me ajudou a evoluir não só em recursos humanos, mas também na posição que eu assumo hoje.
Muito do que vivo aqui nas Zeiss está conectado com o que eu acredito, com os meus valores — e por isso acho que a evolução foi uma consequência. É uma empresa que tem como propósito ajudar as pessoas a verem o mundo de uma forma melhor. Então quando coloco o meu propósito de transformar vidas junto a isso, vira algo muito simbiótico. Além disso, é uma empresa extremamente tradicional, com 179 anos de existência. Tudo aquilo que é feito do ponto de vista de negócios, é feito de uma maneira muito consistente para manter a perpetuidade e a sustentabilidade a longo prazo, ao mesmo tempo em que incentiva a escuta e a diversidade. Lembro do meu primeiro dia de empresa, quando sentia que já estava há bastante tempo na organização, justamente por me conectar muito com os valores. Esse é um ponto chave para quando se busca uma oportunidade no mercado: estar sempre atento se os valores da empresa e sua cultura se conectam com aquilo que você acredita. Isso é muito importante para que você consiga de fato ser efetivo nas suas propostas, dentro ou fora do RH.
Nunca fui uma RH tradicional. Se você me perguntar se é uma surpresa estar onde estou, vou dizer que não, dado o caminho que eu trilhei. Mas é óbvio que quando olhamos pro mercado, isso não é o tradicional. Não é o movimento comum nas organizações. Por que falo do meu privilégio como indivíduo? Venho de uma família de pais nordestinos que sempre tiveram como foco o trabalho e que sempre colocaram valores muito sólidos, como a figura de mãe muito forte, e um pai que empoderou ela pra esse lugar. Isso me posicionou como eu sou hoje. Ser uma mulher forte, que valoriza os estudos e o trabalho, é algo que aprendi dentro de casa. Digo que sou privilegiada porque cheguei em um ambiente organizacional fértil e que valoriza esse tipo de coisa, onde eu tenho gestores que me empoderaram para estar onde eu estou, assim como eu tive o exemplo dentro de casa. É óbvio que me traz uma responsabilidade muito grande. Mas a minha responsabilidade hoje é mostrar que é possível desde que você se esforce, desde que você estude, desde que você se posicione, que você não se perca daquilo que você acredita como propósito. Quando eu falo muito de conhecer o negócio é você ir para campo, falar com cliente, ver as dores do consumidor. E muitas vezes a gente não tem essa realidade, não somente no RH. Muitas áreas acreditam que o simples fato de estar sentado no escritório é fácil, e acabam por propor coisas que muitas vezes elas não colaboram com o que efetivamente o negócio precisa. Então acho que esse é um pouquinho do cenário que eu estou inserida, e não, não é o natural.
Acho que de novo aí entra a minha responsabilidade de mostrar que é possível. Não só para quem está sentado na cadeira de RH, mas principalmente para os CEOs. Como abro esse espaço para poder trazer pessoas que têm sensibilidade com outras pessoas para sentar nessa cadeira? Esse é um diferencial para qualquer empresa, porque a pessoa que está em recursos humanos tem capacidade de entender da organização como um todo, não só do ponto de vista estrutural. Ela pode ver as dores e alegrias de ser quem somos. Então acho que esse espaço de conversa ou essa visão mais estratégica precisa ser de fato fomentada, porque são profissionais que têm uma condição de olhar para o negócio de uma maneira diferenciada. E no final do dia, quando você olha para o trabalho do CEO, vemos que é necessário ter pessoas com ele. Ele não fará nada sozinho. O CEO é o maestro de uma orquestra, mas cabe a cada um tocar seu instrumento da melhor maneira.
Meu desafio, principalmente ao vir uma cadeira de RH, é mostrar que é possível aproveitarmos as oportunidades de mercado e continuar evoluindo a partir justamente desse olhar de negócios. É sobre manter a minha equipe integrada, fortalecendo a cultura. Queremos mostrar que o Brasil, para a operação global da Zeiss, tem um potencial imenso e inúmeras possibilidades para atingir. Isso vai além de estar no mercado da saúde, mas pelo impacto. Até 2050, metade da população mundial vai ser míope. Então tenho espaço para trabalhar com a questão da saúde visual de uma maneira muito mais forte. Não se trata apenas da venda da lente, mas principalmente da educação. Como educamos os consumidores a fazer um trabalho de prevenção e consequentemente entender que a lente é importante num processo de escolha de óculos? Meu desafio está muito pautado nesse crescimento.
Sempre falo para que não se percam do seu propósito. Tenha muito claro porque você está fazendo e onde você quer chegar. Porque eu acho que o planejamento vai ser consequência desta clareza. Além disso, não deixe de estudar. É muito importante aumentar o repertório e ampliar o networking. Tem um livro que eu gosto muito que é o Diário de um CEO, no qual o autor fala das bagagens que a gente tem que carregar ao longo da caminhada. A primeira bagagem é o conhecimento. A segunda bagagem chamamos de prática, afinal, não dá para galgar novos espaços sem colocar em prática tudo aquilo que sabemos, e consequentemente ter resultados. A terceira, está ligada com o networking. É importante ter uma rede sólida, um ecossistema que você consiga não só se apoiar, mas ampliar as possibilidades e portas para que você possa entrar. A quarta bagagem é o poder de escolha. Porque à medida em que você consegue colocar em prática, ter resultados e ter um networking bacana, você consegue escolher possibilidades para a sua carreira. A última bagagem é a reputação. Não dá para ter reputação sem antes ter passado por todas essas etapas anteriores. E essas são as dicas que eu dou, porque eu acho que de alguma forma foi um pouco do que eu construí ao longo da minha carreira.
Com certeza. E acho que todos os movimentos que eu fiz posteriores, do ponto de vista de formação, sempre foram muito ligados à essa questão do propósito. Independente da área ou do segmento em que estive inserida, sempre olhava muito para esse contexto de transformação de vidas, de evolução das pessoas, do quanto meus movimentos nas organizações ajudariam-as a continuar crescendo através das pessoas. Então, tudo o que eu fui fazendo, principalmente o fato de passar a olhar por esse ponto de vista mais administrativo, tinha muito da preocupação de entender a linguagem dos negócios. Porque são as pessoas que fazem os negócios acontecerem. Entendendo a linguagem do negócio, vou conseguir propor alternativas que impactem essas pessoas que fazem parte desses negócios para eles serem mais produtivos. De alguma forma, a conexão continua a mesma do ponto de vista de propósito. E isso continua me dando possibilidade de fazer novas coisas.
A virada de chave neste mundo extremamente tecnológico começa num momento em que começamos a olhar com um pouco mais de cuidado para as relações.
Mais que falar da área, ressalto a competência de gestão de pessoas. As empresas têm a ganhar pelos relacionamentos. De novo, como falamos que o negócio é feito por pessoas, no final do dia tudo é sobre relacionamento. Conseguimos evoluir pela questão da confiança, pela questão dessa conexão que as pessoas conseguem fazer umas com as outras. Ter pessoas que gostam de pessoas numa posição de gestão executiva mais alta certamente humaniza as relações, que estão tão trincadas por questões diversas. A virada de chave neste mundo extremamente tecnológico começa num momento em que começamos a olhar com um pouco mais de cuidado para as relações. Essa é a chave para o sucesso dos negócios de um modo geral. Assim, ter um RH na cadeira de CEO é olhar para as pessoas e humanizar negócios.
Acho que esse livro que eu comentei, o Diário de um CEO, é um bom livro. E eu recentemente assisti a série The Chosen, que fala sobre a história da vida de Jesus. Acho que é interessante, porque mediante a tantos problemas que ele vai contando ao longo da trajetória, isso volta ao tema do propósito. Ele não se perde do porquê que ele veio pra cá, e isso é o que vai dando a ele condições de ampliar a caminhada, ampliar sua voz e fazer o que precisa ser feito. Acho que as pessoas muitas vezes se perdem muito por considerar apenas o que querem conquistar, sem se dar conta do que essas conquistas deveriam trazer. No final do dia, a minha mensagem é sobre isso: pensar efetivamente qual é o seu propósito, que legado que você quer deixar e como quer ser lembrado quando você não tiver mais aqui. Se as pessoas começarem a ter consciência disso, certamente os comportamentos vão mudar um pouco do que a gente tem visto ao longo da caminhada aí no mercado corporativo.
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