Depois de quase duas décadas no varejo em gigantes como Carrefour e GPA, Cristiane Lacerda decidiu virar a chave. Em 2022, a executiva mineira assumiu a diretoria executiva de Gente, Cultura e Responsabilidade Social da Ypê com uma missão clara: atualizar processos, preservar a cultura e preparar a empresa para um novo ciclo de crescimento. “Cultura é algo dinâmico, que muda todo dia. O desafio é garantir que os valores sigam vivos, mesmo com a expansão”, diz.
Na conversa com a Cajuína, Cristiane fala sobre sua trajetória – que começou já na faculdade, quando escolheu a Psicologia mirando o RH –, sobre o que a atraiu na indústria brasileira e sobre os dilemas que atravessam a gestão de pessoas hoje. “É preciso ter um equilíbrio entre o mínimo de controle necessário e a autonomia exigida pelos profissionais atuais”, resume.
Da atualização de sistemas à atração de jovens em um mercado cada vez mais competitivo, passando pela convivência entre gerações, Cristiane aponta quais são os pontos de atenção para quem lidera áreas de Pessoas.
Temos metas de crescimento ousadas e precisamos que as pessoas cresçam aqui dentro para alavancar a companhia.
Cristiane, para começar: como você foi parar no RH?
Minha história é diferente da maioria: eu entrei no curso de Psicologia já sabendo que eu queria trabalhar com RH – tanto que nunca trabalhei em clínica, além do estágio obrigatório que precisamos fazer na faculdade. Tenho uma tia que era professora na Fundação Dom Cabral e consultora de gestão de pessoas. Quando adolescente, eu achava aquilo tudo muito inspirador, eu gostava das conversas que a gente tinha, então entrei para o curso já com a cabeça de que era aquilo que eu queria fazer. O mais engraçado é que meu filho acabou de entrar em Psicologia, mas buscando a área clínica – e com dois anos de curso, ele está feliz da vida fazendo estágio em empresas. As empresas têm uma dinâmica muito acelerada, além de serem um ambiente no qual é possível encontrar um propósito maior e mais coletivo – em comparação com a atuação individual da psicologia clínica. Por meio de uma empresa, você pode melhorar a vida de um grande número de pessoas. Quando encontrei esse mindset, isso deu um propósito maior para a minha carreira.
Antes de chegar à Ypê, você passou por diferentes setores e áreas do RH. Como foi essa trajetória e o que motivou suas mudanças de carreira?
Sou mineira, nasci em Belo Horizonte e fiquei lá até os meus vinte e poucos anos. Meu começo de carreira foi lá: um dos meus primeiros estágios foi no Credireal (Banco de Crédito Real de Minas Gerais), um banco de formação mista – metade público, metade privado. Quando entrei, havia um projeto de preparar o banco para ser vendido, e entrei num projeto de alavancagem de resultados das agências. Foi um projeto muito bacana, que me deu uma visão de negócios mais abrangente do que se eu tivesse só ficado dedicada ao RH. Viajei o Brasil inteiro, tive que aprender curva ABC, aprendi uma série de coisas para fazer esse preparo. Depois, fiquei um ano na Fundação Dom Cabral, fazendo esse mesmo trabalho para outros clientes. Aprendi muito, mas percebi que gosto de estar do lado de cá da mesa no RH. Na sequência, fui para a Stola, uma empresa do grupo Fiat, que na época estava se instalando em Belo Horizonte. Foi uma experiência muito bacana porque eu fui a terceira funcionária – na época, só havia o presidente, o diretor de RH e eu. Fiquei lá por quase quatro anos, do começo da unidade fabril até o desenvolvimento, até que veio um convite do Grupo Pão de Açúcar para vir para São Paulo. E não era o sonho da minha vida vir para São Paulo, não era meu objetivo.
Qual é a diferença de fazer RH em BH e fazer RH em São Paulo – isto é, em uma visão local ou uma visão nacional?
Muda muito, até porque eu tinha uma visão de dentro da fábrica. E quando o RH do GPA entrou em contato comigo, o que interessava a eles era a experiência que eu tinha na Fundação Dom Cabral, de mudança de gestão. Eles queriam montar uma área como essas no GPA, focada na melhoria do atendimento da marca Pão de Açúcar. Vim para uma entrevista e comecei a me encantar com as pessoas, com o ambiente de trabalho, com a grandiosidade. Acabei vindo e no primeiro dia já tive de comprar um daqueles guias de ruas de São Paulo, eu rodava a cidade para cima e para baixo com aquilo no colo – até porque não existia Waze na época. Fiquei quase 15 anos no GPA, sendo onze dedicada ao varejo e depois mais quatro nas Casas Bahia, dentro da Via Varejo. A Via foi um mundo que eu não conhecia. Depois disso, fundei uma startup com dois amigos voltada para a educação digital. Foi muito bacana, mas depois de dois anos vimos que íamos precisar de mais dinheiro do que tínhamos colocado e eu decidi voltar ao mundo executivo, porque eu sentia muita falta. Acabei indo para o Carrefour, fiquei por lá por quatro anos, até que veio o convite da Ypê.
Como foi o convite para trabalhar na Ypê?
Foi um convite muito bacana. Na época, eu estava buscando alguns elementos para minha carreira: queria viver um segmento diferente, queria ir para o lado da indústria depois de passar quase minha vida toda no varejo, queria trabalhar em uma empresa brasileira e que tivesse essa característica de dono. Descobri que é um ambiente que eu gosto muito, porque dá uma produtividade, uma agilidade de resposta, muito maior do que nas multinacionais.
E qual era o contexto quando você chegou à empresa?
Na minha entrevista, o ponto mais relevante que foi trazido foi a cultura. Era a maior preocupação dos sócios, porque a Ypê estava crescendo muito e eles queriam ter segurança de que, mesmo com o crescimento, a empresa seguiria tendo os mesmos valores – simplicidade, cuidado com as pessoas e humildade para aprender são pautas fundamentais. A preocupação deles é que a empresa estava perdendo a proximidade: durante muito tempo, eles conheciam todos os colaboradores, mas naquele momento a empresa já tinha 8 mil pessoas, a realidade tinha mudado. Acredito que era meu grande desafio e é até hoje, porque cultura é algo dinâmico, que muda todo dia. Ao mesmo tempo, encontrei também uma empresa que cresceu muito e que precisava de processos atualizados, revisados, porque os que existiam não acompanharam o crescimento da época. Tive de fazer um trabalho de base grande, e posso dizer que agora, três anos depois de chegar, estamos finalizando a migração dos sistemas, com processos capazes de sustentar o crescimento da companhia. O maior desafio que eu tenho segue sendo esse: fazer com que as pessoas consigam crescer aqui dentro para alavancar o crescimento da companhia. Temos metas de crescimento ousadas e preciso que as pessoas facilitem esse desenvolvimento.
Os processos em RH têm mudado muito nos últimos anos, tanto por conta de mudanças comportamentais quanto de mudanças tecnológicas. Como foi organizar e reconstruir os processos da Ypê, ao mesmo tempo em que era preciso atualizá-los para o estado da arte?
Foi desafiador, porque é preciso encontrar a medida certa do que é o básico bem feito. Era preciso ter um equilíbrio entre o mínimo de controle necessário para a operação, com a abertura suficiente e a autonomia exigida para os profissionais de hoje em dia – além de pensar na camada tecnológica para garantir produtividade. Foi necessário estruturar os processos e, ao mesmo tempo, buscar as oportunidades de automação ou de uso de inteligência, buscando não só a produtividade, mas também a qualidade das entregas. E é preciso também abrir a cabeça das pessoas para a mudança. Há sempre um grupo de pessoas mais tradicionais que têm medo de mudar a forma de fazer as coisas – até por medo de perder a oportunidade de trabalho. Não é o que acontece: quando você muda, surgem inúmeras outras atividades que precisarão ser feitas, com o melhor uso do tempo.
Nosso trabalho como marca empregadora também tem que mostrar que somos uma empresa brasileira, que compete de igual para igual com as grandes multinacionais.
É preciso ter um alinhamento muito grande. Temos uma cultura forte de integridade no que diz respeito à ética e ao compliance, a empresa é muito cuidadosa com esse aspecto. Ao mesmo tempo, como marca empregadora, temos que aproveitar nossa representatividade: hoje, a Ypê está em 95% dos lares brasileiros. Nosso trabalho como marca empregadora também tem que mostrar que somos uma empresa brasileira, que compete de igual para igual com as grandes multinacionais. Isso também é um orgulho para nós. E isso converge com o ponto que você trouxe: em meio a tantos problemas que o Brasil enfrenta, com todos os questionamentos e com a falta de transparência, mostrar que somos uma empresa brasileira que trabalha com muito rigor e com muita ética é um ponto importante também. Para completar, tem outro ponto de marca empregadora que preciso ressaltar: a cultura de aprendizagem. O primeiro é mostrar que as pessoas podem entrar e aprender aqui para crescer com a gente – e que se coloca, por exemplo, no ponto de trazer uma plataforma de aprendizagem com cursos liberados para 100% dos colaboradores. Nós não temos interesse em trazer profissionais de fora se pudermos evoluir quem está aqui dentro com a gente.
Como a Ypê olha para a presença de diferentes gerações trabalhando juntas?
O desafio multigeracional é muito relevante. Todas as empresas vão ter de encontrar o equilíbrio entre o vigor, a energia e a abertura do jovem com o conhecimento das pessoas mais experientes. Ninguém mais vai se aposentar aos 50 anos, as pessoas têm muito tempo pela frente. O maior desafio que temos é conseguir desenvolver jovens e maduros, tirando o melhor dessa convivência – ainda mais porque hoje, temos um desafio de atração do jovem. Ela não compromete nossa operação, mas é cada dia mais desafiadora. Hoje, concorremos com o Rappi, com o iFood, com o jovem que no início de carreira antes trabalharia na fábrica, mas hoje entende que tem benefícios atuando como entregador. Vamos ter que repensar nossos modelos, nossa jornada, nossos benefícios, para sermos de fato mais atrativos para alguns públicos.
Para fechar, Cristiane: você tem alguma dica de leitura ou podcast?
Ultimamente, sou a louca dos podcasts – e também dos audiolivros, que comecei a testar recentemente. Um trabalho que eu gosto muito é o do Conrado Schlochauer, um estudioso de aprendizagem que já escreveu vários livros sobre aprendizagem. Os dois livros que eu indico dele são o Lifelong Learners e o Aprendizado Incidental, que estão na minha cabeceira neste momento e têm muito a ver com o que conversamos ao longo da entrevista.