Em meio a turbulência política, executiva defende que é hora de acelerar em pautas como inclusão e preservação ambiental; em junho, empresa assumiu metas para contratação de mulheres e pessoas pretas e pardas, além de investimentos na área social

Há mais de quatro séculos, o dramaturgo inglês William Shakespeare escreveu que “o mundo é um palco” – uma metáfora não só para as muitas narrativas da vida cotidiana, mas também para os vários papéis que todos nós desempenhamos no dia a dia, inclusive no universo corporativo. Para muita gente, trabalho e palco podem parecer universos muito distantes. Mas para o engenheiro português Nuno Saramago, diretor executivo da divisão de embalagens da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), eles estão extremamente ligados. Mais que isso: em sua visão, o teatro pode oferecer ferramentas riquíssimas para líderes e liderados.
É o que ele mostra em “Liderança em Cena”, livro lançado recentemente pela editora Portfolio-Penguin, parte do grupo Companhia das Letras. Resultado de um mestrado no Centro de Artes e Educação Célia Helena, o volume é um misto de memorial e livro de negócios, trazendo ensinamentos para qualquer profissional. “O teatro é a verdadeira ferramenta da inteligência emocional”, diz Saramago, mostrando como a arte pode ajudar alguém a moldar sua personalidade e entender que papel é necessário representar dentro de um determinado contexto no trabalho.
Na entrevista a seguir, o executivo conta como surgiu sua relação com o teatro – a princípio, uma mera curiosidade – e como ele se deu conta, em meio a um exercício dramático, de que a arte poderia ajudá-lo em questões de liderança. “O resultado que o meu grupo gerou – e os outros também geraram – não era compatível com a minha avaliação da qualidade humana das pessoas envolvidas. Havia uma descontinuidade, como se fosse um milagre”, relembra. “Meu trabalho, todos os dias, é o de avaliar grupos, projetos e resultados. E ali havia um grupo de pessoas que produziu um resultado muito acima da média.”
Ao longo da conversa, ele também aborda conceitos como autenticidade e representação, além de falar sobre a importância da obra do bardo inglês em sua carreira. “A experiência humana está de tal forma intrincada em Shakespeare que é sempre possível encontrar novos matizes da vida em suas peças”, ressalta o executivo, que dedica horas semanalmente à leitura (e releitura) de obras como Otelo, Hamlet, Henrique V, Como Gostais – do qual vem a frase que abre esse texto – ou O Mercador de Veneza. “Se houvesse viagem no tempo, eu mandaria o Nuno de 35 anos ler Shakespeare. Nele, estão as coisas que eu gostaria que tivessem me contado, que me fariam ter batido menos a cabeça.”
Meu encontro com o teatro foi um acaso que eu não sei explicar bem como aconteceu. Na infância, eu tinha uma relação muito mais próxima com o esporte. Nunca tive um relacionamento explícito com a arte, sempre fui um rapaz de Exatas e dos esportes. Mas em 2017, tive vontade de voltar a estudar. Tendo em consideração que estudei Engenharia numa escolha muito difícil em Portugal, numa experiência muito desafiadora e até traumatizante, achei essa vontade estranhíssima. Fui ver o que meus colegas da Faria Lima estavam fazendo e todos faziam as mesmas coisas, que não me despertaram grande interesse. Decidi que ia fazer um curso livre de teatro enquanto não decidia exatamente o que estudar. Escolhi um curso como quem escolhe um restaurante: abri o Google, pesquisei e fui. Nessa jornada, cometi vários erros que se transformaram em acertos.
O primeiro foi me inscrever num curso profissionalizante, acreditando que era um curso livre. Cheguei muito deslocado, ao mesmo tempo buscava alguma coisa que me tirasse da Faria Lima, em que eu encontrasse gente diferente das pessoas que eu encontrava todos os dias. Na Faria Lima, eu trabalhava com pessoas parecidas com os pais das colegas das minhas filhas, gente que frequentava o mesmo estúdio de pilates, um ambiente extremamente homogêneo e que estava me deixando um pouco claustrofóbico.
No primeiro dia do curso, perguntaram porque as pessoas estavam ali. Alguns queriam tirar o DRT, outros tinham indicações terapêuticas e eu queria conhecer pessoas diferentes. Foi uma fuga, em uma busca diferente do que sempre foi minha vida como executivo e estudante. Tudo o que eu fiz na vida era “vou fazer isto porque quero aquilo”. Fui estudar Engenharia porque queria uma carreira, fui expatriado para o Brasil porque xis, sempre havia uma razão para tudo. Já o teatro foi uma das poucas coisas que eu fiz na vida sem nenhum propósito específico.
Todo mundo fala para um líder jovem que é preciso saber escutar para ser um bom líder. Mas quem é que sabe o que aprender a escutar? E no teatro eu descobri.
Na primeira aula, eu achei tudo muito doido. Mas a verdade é que eu voltava melhor para casa. Apesar de ser tarde, de ser numa segunda-feira, de ter uma noite mais curta de sono, eu voltava melhor – e isso me fazia voltar na próxima aula, mesmo sem entender o que estava acontecendo. Além disso, eu tive sorte de ir para uma escola que tinha um público realmente diferente do que eu estava acostumado. O Teatro Escola Macunaíma é uma ótima escola, com um público popular. Tinha gente com dificuldade de pagar a inscrição, que vinha de diferentes lugares. E depois de algumas semanas com exercícios e jogos teatrais, nós tivemos de contar uma história a partir de uma música. Meu grupo escolheu “Faroeste Caboclo”, da Legião Urbana.
Eu comecei participando de uma forma meio blasé, sem a necessidade de protagonismo que eu tinha na empresa. Mas conforme fomos fazendo o exercício, tive um choque. O resultado que o meu grupo gerou – e os outros também geraram – não era compatível com a minha avaliação da qualidade humana das pessoas envolvidas. Havia uma descontinuidade, como se fosse um milagre. Isso me deixou espantado! Meu trabalho, todos os dias, é o de avaliar grupos, projetos e resultados. E ali havia um grupo de pessoas que produziu um resultado muito acima da média. Para mim, havia algo fora do lugar. E descobri que tinha muito pouca gente falando desse assunto – o uso do teatro para formar equipes – no mundo. É algo muito forte, e um dos exemplos mais flagrantes que eu tenho para provar está no livro. Todo mundo fala para um líder jovem que é preciso saber escutar para ser um bom líder. Mas quem é que sabe o que aprender a escutar? E no teatro eu descobri. Um engenheiro como eu acha que é preciso ficar calado para escutar – e não é verdade. A escuta é um dos elementos básicos do teatro, é um exercício de atenção profunda com o interlocutor.
Na empresa, muitas vezes não escutamos, mas sim pensamos em como combater o interlocutor. E no teatro não: é preciso escutar e construir em cima do que o outro propõe. Ali, eu descobri uma ferramenta poderosa – e o teatro está repleto delas, como jogos de poder, jogos de status, storytelling, arquétipos. O teatro é uma caixa de ferramentas que livros clássicos de liderança não tinham me dado. Foi aí que eu comecei a querer usar o teatro no dia a dia corporativo. No teatro, essas ferramentas são usadas para criar um espetáculo-arte, mas o mesmo esforço pode ajudar uma equipe a resolver qualquer problema – de uma campanha de promoção à resolução de um problema numa fábrica.
No mundo corporativo, um preconceito enraizado é o da autenticidade: há quem diga que se a pessoa não está sendo autêntica, ela está representando, está fingindo. O teatro ensina que não é assim: ele traz uma flexibilidade do caráter, permitindo que cada um possa escolher o personagem que deseja em cada circunstância. É como Stanislavski fala: tu tens que ser tu mesmo, mas na circunstância do papel. Isso vale no palco e vale na relação de trabalho – senão, para quem é martelo, tudo é prego.
O teatro é a verdadeira ferramenta da inteligência emocional.
Vou falar algo que parece contraditório, mas não é: o teatro te ensina a ser quem tu achas que não és. Nós todos nos habituamos a viver de uma certa maneira e achamos que somos uma coisa, mas nenhum de nós é exclusivamente de uma só forma. Isso é importante porque permite que as pessoas se abram mais. É como ter uma paleta de cores no meu caráter. Não preciso ser sempre um executivo sisudo.
Às vezes, posso ser mais prático, mais engajado, mais animado. Mas isso não significa fingir. Representar fingindo é mau teatro. O que faço é descobrir em mim mesmo outras características que me permitam transitar com naturalidade nesse papel. O teatro pode moldar a personalidade. Gosto de um exemplo que trago no livro: um líder pode ser técnico, mas ter dificuldades de ser inspirador. Porém, se essa pessoa fizer o papel de Henrique V numa peça de Shakespeare, ela vai ter de aprender a ser um líder inspirador. É algo que exige força e determinação, mas que ajuda a acessar esse tipo de emoção. O teatro é a verdadeira ferramenta da inteligência emocional.
Quem faz Shakespeare nunca mais volta a ser a mesma pessoa. É uma experiência muito profunda. Não existe uma vida suficientemente longa para entender Shakespeare. A experiência humana está de tal forma intrincada em Shakespeare que é sempre possível encontrar novos matizes da vida em suas peças. Ele retratou o ser humano num nível de profundidade muito forte. Eu costumo dizer que tenho duas descobertas. Uma é o teatro, a outra é Shakespeare, que eu só vou descobrir quando decidi fazer um mestrado em artes da cena. Para se ter uma ideia, eu tenho um compromisso semanal comigo que é ler Shakespeare. E eu já li de diversas formas: primeiro em inglês moderno, depois no inglês elizabetano, depois leio a fortuna crítica, depois volto para as peças. Sempre me aprofundo e descubro algo novo.
É tão interessante que depois, só consigo ver a vida como se fossem quadros e cenas de Shakespeare. É como se eu tivesse ganho um mapa da natureza humana – das emoções boas e más, do amor e do ciúme, da raiva e da inveja, está tudo ali. Hoje, a qualquer problema doméstico que surge, vou com as minhas filhas ler uma peça dele, para descobrir uma ferramenta nova. Se houvesse viagem no tempo, eu mandaria o Nuno de 35 anos ler Shakespeare. Nele estão as coisas que eu gostaria que tivessem me contado, que me fariam ter batido menos a cabeça. Se eu tivesse lido Júlio César, por exemplo, eu teria me comportado menos como Brutus quando saí da última empresa que eu estive.
No começo da minha experiência, preciso dizer que as primeiras abordagens que eu trouxe eram bem básicas. Eu queria apenas aplicar a técnica de ensemble, de jogos teatrais. É o básico do teatro, é a primeira ferramenta. E eu não diria que o RH concordou comigo, mas eu pude usar do meu prestígio como executivo para começarmos – como se fosse uma excentricidade minha, uma liberalidade que eu poderia usar como líder. Não são todas as pessoas que têm esse espaço. Assim, um dos meus objetivos de ter escrito esse livro é permitir que esse conhecimento esteja disponível para as pessoas.
Durante as experiências, o que eu buscava era ser muito cuidadoso para que as pessoas entendessem que o que eu propunha era um processo voluntário, que as pessoas não precisavam participar compulsoriamente. E acabou dando muito certo: três anos depois de receberem os treinamentos, quando fui fazer o mestrado e depois o livro, fui conversar com essas pessoas e elas ainda se lembraram vivamente dos detalhes. Elas fizeram inúmeros outros treinamentos naquele ano, mas só o teatro as marcou dessa forma. Para mim, é um sinal muito significativo.
É preciso dizer que há um preconceito duplo: há o preconceito da empresa com o teatro, mas também o dos artistas com as empresas. Tem gente que olha o que eu estou falando e acha que esse uso utilitário da arte, a favor da corporação, é uma prostituição. Eu sinto preconceito dos dois lados – não só da Faria Lima, mas também do teatro. É de fato um ambiente de aproximação de dois mundos que se estranham muito. Mas a grande vantagem é que todo mundo que escreve sobre a utilização do teatro nas empresas são acadêmicos ou artistas e que, por algum motivo, migraram para um trabalho de consultoria nas empresas. Não tem ninguém que tenha vindo do meu ponto de vista: uma pessoa corporativa que descobriu o teatro, do meu lugar de fala.
E isso é muito importante, porque eu tenho um lugar de fala, um currículo como executivo, e dirijo 2 mil pessoas numa empresa, divididas em seis fábricas. O maior desafio é quebrar esse preconceito, essa estranheza. Caso contrário, as escolas de teatro não teriam lugares para treinar os artistas porque as empresas lotariam as vagas. É uma ferramenta muito potente.
Daria para ser uma lista só de Shakespeare. Mas para não ficar só em Shakespeare, pelos dias que estamos vivendo hoje, eu indico O Inimigo do Povo, do Henrik Ibsen. Depois, a lista vai ser toda de Shakespeare, porque todas as suas peças são sobre conflito e transformação. Aí vai depender da situação de cada um. Para empresas familiares que vivem um processo de transição geracional, indico Rei Lear. Para discutir o que é uma liderança inspiradora, bem como se a liderança é treinada ou inata, é preciso ler Henrique V.
Para tratar de aspectos relacionados à ambição e seus limites, é preciso ler Macbeth. Se a discussão é sobre assuntos jurídicos e sobre o tratamento de quem é diferente, é importante passar por Otelo e por O Mercador de Veneza. Se a pauta é liderança feminina, em Shakespeare é possível encontrar várias naturezas diferentes – mas aqui destaco Como Gostais e Marco Antônio e Cleópatra. Já passei das cinco, mas se for pra fechar, preciso ainda falar do Hamlet e do Ricardo III, que também são peças importantíssimas.
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